Por volta do ano 2000 a.C., um exército invasor de reis orientais derrotou os insignificantes monarcas de Sodoma e Gomorra e se retirou cheio de espólios em direção ao norte, para fora da Palestina. Lot, sobrinho de Abraão, estava no comboio de cativos com toda a sua família, seus escravos e bens. A notícia do infortúnio chegou ao seu tio. Então, Abraão organizou seus servos, perseguiu os exércitos que estavam em retirada e por meio de um ataque noturno resgatou seu parente Lot. Um incidente ocorrido no retorno do vencedor é relatado em Gênesis 14,18-20:

E Melquisedec, rei de Salém, trouxe pão e vinho e, como sacerdote de Deus Altíssimo, abençoou a Abrão, dizendo: “Bendito seja Abrão pelo Deus Altíssimo, criador do céu e da terra. Bendito seja o Deus Altíssimo, que entregou teus inimigos em tuas mãos”. E Abrão entregou-lhe a décima parte de tudo.

A história é mencionada centenas de vezes na Tradição católica, e nos primeiros sete capítulos da Carta aos Hebreus há uma longa discussão sobre Melquisedec. O propósito desta investigação é discutir em que medida Cristo é “sacerdote segundo a ordem de Melquisedec” e, em particular, qual o sentido desta frase na Carta aos Hebreus

“Abraão e Melquisedec”, por Marten de Vos.

I. A história no Livro do Gênesis é um simples relato dos fatos: a narrativa é uma história, não uma profecia, até onde podemos saber a partir do próprio texto. Na mente de Deus, os eventos podem ter pouco ou muito significado. Não podemos saber isto a partir da leitura dos versículos. O simples fato é que um sacerdote do verdadeiro Deus, cuja oferta é pão e vinho, abençoou o Patriarca Abraão. Melquisedec abençoou a fonte e manancial de toda a nação de Israel, a eleita de Deus, tanto seus sacerdotes quanto seu povo. Na quarta geração, a família de Abraão era composta pelos doze filhos de Jacó, de quem deriva toda a nação. Embora esta raça tenha progredido e crescido ao longo dos séculos, só passou a ter um sacerdócio designado por Deus mais de 500 anos depois de Abraão, seu fundador. Foi no monte Sinai, na metade do século XV a.C. [i], que Deus designou a tribo de Levi para cuidar do culto da nação. Todos os sacerdotes de Israel deveriam vir de uma família daquela tribo, a de Aarão. Na verdade, o próprio título de sangue e nascimento fazia de todo levita do sexo masculino um servo do santuário. Além disso, todo filho de Aarão do sexo masculino era abençoado com a dignidade superior do sacerdócio. Ora, durante os 500 anos anteriores à instituição desse sacerdócio de Aarão, não há uma palavra sequer de que outro sacerdócio tivesse lugar de honra na nação. Em contraste, os livros de Êxodo e Levítico dedicam longas seções às leis, direitos e efeitos do sacerdócio aarônico.

Esse sacerdócio de Israel, fundado no Sinai, foi praticado no santuário da nação por quatorze séculos. José Caifás, instigador da morte de Cristo, podia exibir as tábuas de uma genealogia que remontava a Aarão, por mais indigno que fosse em outros aspectos. Nenhum outro sacerdócio era legítimo na nação, e a nenhum outro era permitido servir nos altares. Durante o longo período de 2000 anos que vai de Abraão a São Paulo, só se ouviu falar de Melquisedec uma única vez.  

A voz que irrompeu na metade do silencioso período de dois milênios é a de Davi, salmista real de Israel. O nome de Melquisedec é pronunciado num único verso de todas as suas canções. À primeira vista, é muito estranho que o rei, cuja corte e nação são guiadas por um sacerdócio aarônico, subitamente tenha erguido a voz e falado de outro sacerdócio, que era eterno: “Jurou o Senhor e manterá sua palavra: ‘Tu és sacerdote eternamente, segundo a ordem do rei Melquisedec’” (Sl 109,4). Ora, o tema deste salmo é o Messias, o Ungido ou o Cristo, prometido à nação em centenas de profecias.

O Messias, portanto, tem de ser um sacerdote, mas não da ordem de Aarão, não do já estabelecido sacerdócio nacional de Israel. Deve ser de outra natureza, de outra ordem. Seu sacerdócio é regido por uma constituição e um estatuto diferentes. Deve ter outras condições, outros requisitos, propriedades e, especificamente, outros efeitos. Além disso, outras profecias nos informam que o Cristo não deve ser do sangue de Aarão ou Levi; deve surgir da tribo de Judá e da linhagem de Davi. No salmo, portanto, fica aberta a sugestão de que, com o Cristo, a linhagem aarônica deixará de ser o sacerdócio designado por Deus. Em determinado momento da trajetória do Messias, quando algum ato ou efeito tiver sido alcançado, o novo sacerdócio tomará o lugar do antigo. E esse novo sacerdócio de Cristo deve ser “segundo a ordem de Melquisedec”. Isto é o que o salmo sugere até aqui.  

Nos dez séculos entre Davi e São Paulo, muitas profecias, especialmente a de Malaquias 3,10, transmitem mais revelações sobre a pessoa, o sacrifício ou os efeitos do sacerdote, Cristo. Mas à medida que a Revelação expande e progride, o sacerdote Melquisedec não é mencionado, tampouco sua relação com Cristo é explicada em detalhes. Até quando a instituição do Santíssimo Sacramento é descrita nos Evangelhos, quando Cristo tomou pão e vinho e pronunciou as palavras que os transformaram em seu Corpo e Sangue, não há uma única palavra sobre o sacerdote-rei do passado então obscuro e distante. Até este momento da Revelação, conhecemos três sacerdócios: o de Melquisedec, o de Aarão e o de Cristo. Cada um tem seus componentes, condições, propriedades, qualidades e efeitos próprios. Numa palavra, cada um é de uma ordem sacerdotal. Mas, com exceção da sugestão do salmo, as inter-relações dessas ordens não são explicadas.   

“Última Ceia”, por Simon Dewey.

II. Conhecemos a constituição do sacerdócio de Cristo. Ele era homem, qualidade que compartilha com todos os sacerdotes; pois “todo pontífice, tomado dentre os homens, é constituído a favor dos homens naquelas coisas que se referem a Deus” (Hb 5,1). Mas o sacerdote Cristo é Deus e homem; portanto, é eterno e atemporal. Possui um sacrifício, como todo sacerdócio deve possuir; mas a vítima dele tem um valor único e excepcional. É oferecida uma única vez, e ganha por meio de sua oblação singular um tesouro inesgotável de graças redentoras. Ele é, de modo singular, o sacerdote e a vítima de seu próprio sacrifício: Victima sacerdotii sui et sacerdos suæ victimæ, como diz tão belamente São Paulino [ii]. Os outros sacerdotes que o seguem não podem oferecer outra vítima aceitável que não a sua, isto é, Ele mesmo. E como essa única vítima à disposição pertence tão intimamente a Ele, todos os outros só a oferecem em seu nome e em sua pessoa. Centenas de sacerdotes o oferecem diariamente no santo sacrifício da Missa. Mas a única vítima sendo oferecida é Ele, Jesus Cristo; e o homem consagrante, a quem Deus se digna conferir o poder de pronunciar as santas palavras da consagração, está no altar agindo como ministro do próprio Jesus Cristo.

De todos esses elementos essenciais, porém, quais são as propriedades ou efeitos do sacerdócio de Cristo que fazem dele sacerdote da ordem de Melquisedec? Certamente, não o fato de Ele ser homem. Pois todos os sacerdotes são homens, sejam eles fiéis ou não a um determinado padrão; sejam eles designados por Deus ou escolhidos por homens para cumprir as necessidades religiosas de uma natureza perdida. Não, também, o fato de Ele oferecer um sacrifício, pois o sacrifício é inerente a todo sacerdócio — e não deixa de ser uma contradição do pensamento moderno falar em sacerdócio sem sacrifício. (Muito mais lógica é a teologia de alguns protestantes, que rejeitaram o sacerdócio por terem rejeitado o sacrifício.) Para encontrar a resposta à nossa pergunta, temos de nos voltar para a Revelação. Na Tradição católica encontramos um motivo pelo qual Cristo é sacerdote segundo a ordem de Melquisedec; na Carta aos Hebreus, outro. As duas fontes de informação aceitam o sacerdote-rei Melquisedec como tipo de Cristo. Cada uma delas amplia um atributo principal do tipo que é encontrado em Cristo, o antítipo.

“O encontro de Abraão e Melquisedec”, por Adriaen Collaert.

III. Na discussão será necessário recordar os elementos essenciais de um tipo bíblico. Um tipo é uma pessoa ou coisa, mencionada pelo autor humano da Sagrada Escritura, por meio da qual Deus, o autor divino, tem a intenção de simbolizar alguma outra pessoa ou coisa. Assim, Moisés levantou a serpente de bronze no deserto; ela curava os que a olhavam. Mas, além dos efeitos milagrosos produzidos, Deus determinou que esse evento prefigurasse a elevação de Cristo na Cruz, a elevação gloriosa da Ressurreição e a cura de doenças espirituais após a Redenção. Que Deus quisesse indicar tais eventos na vida de Cristo, sabemo-lo pela revelação do fato no Evangelho de São João [iii]. Deve-se notar que o tipo (pessoa ou coisa) possui uma realidade e uma verdade próprias; acima disso, o tipo prefigura alguma outra pessoa ou coisa (segundo a intenção de Deus).  

É óbvio que as palavras “por meio da qual Deus… tem a intenção de simbolizar alguma outra pessoa ou coisa” têm importância primordial na definição do tipo. Essa divina intenção é um fato de ordem sobrenatural. Portanto, só é conhecida a partir de fontes sobrenaturais de informação, que por sua vez são duas: a Sagrada Escritura e a Tradição da Igreja. A verossimilhança ou adequação de um tipo pode atrair os sentidos e o entendimento humanos, ou pode ser tão sutil a ponto de escapar à nossa percepção.

Assim, o maná dado por Deus ao longo de quarenta anos no deserto é um tipo da Santíssima Eucaristia, obviamente congruente com a avaliação humana. O cordeiro pascal também é um tipo da morte salvífica de Cristo. Por outro lado, alguns tipos são mais sutis e só se tornam perceptíveis depois de alguma reflexão. Seja como for, os nossos padrões de conformidade não são a norma pela qual julgamos se determinada passagem tem ou não o sentido de tipo. Isso depende da intenção divina, e só conhecemos a intenção quando ela nos é revelada

No caso de Melquisedec, é óbvia a semelhança de algumas características com certas qualidades do sacerdócio de Cristo. Já a semelhança de outras características não é tão óbvia. Que a oferta de pão e vinho, que foi a oblação de Melquisedec, tipifique em alguma medida o sacrifício incruento do Calvário, é fato bem conhecido. Os Padres da Igreja afirmam de forma unânime que Deus quis que o sacrifício do sacerdote-rei fosse uma prefiguração do sacrifício de Cristo [iv]. Acertadamente, o Pe. de la Taille, S.J., dá uma grande ênfase nessa característica do tipo, que é desenvolvida na Tradição católica. Mas eu não considero que seja este o único atributo principal do tipo. Ao contrário, tenho a impressão de que muitos atributos pertencem a Melquisedec e a Cristo, e dois deles são essenciais. Um deles, a oferta, é mencionado na Tradição. O outro atributo principal e muitos outros menores são desenvolvidos por São Paulo. Voltemo-nos para ele agora.

Depois de muitas referências a Cristo como sacerdote segundo a ordem de Melquisedec, São Paulo começa a explicação do tipo no capítulo 7:

Este Melquisedec, rei de Salém, sacerdote de Deus Altíssimo, saiu ao encontro de Abraão [v], quando este regressava da vitória sobre os reis, e o abençoou. Abraão entregou a ele o dízimo de tudo. Primeiro, seu nome significa “Rei de Justiça”; e ele é também “Rei de Salém”, isto é, “Rei da Paz”. Sem pai, sem mãe, sem genealogia, sem início de dias nem fim da vida, ele se assemelha ao Filho de Deus e permanece sacerdote para sempre (vv. 1-3).

Temos aqui um breve resumo dos fatos narrados no Gênesis. O detalhe a respeito da oblação do sacerdote-rei, pão e vinho, é omitido. Mais adiante direi algo a esse respeito.

“O encontro de Abraão e Melquisedec”, por Peter Paul Rubens.

O segundo versículo considera duas características menores do tipo. O nome Melquisedec significa “Rei de Justiça”. Cristo é o verdadeiro Rei de Justiça. No exemplo em questão, São Paulo não desenvolve esse atributo. Caso queiramos saber qual é a teologia do Apóstolo sobre o tema da justificação (pois a palavra traduzida por “justiça” aqui é a mesma traduzida por “justificação” em outro lugar), devemos ler a Carta aos Romanos. Ao mesmo tempo, o nome da cidade do sacerdote-rei significa “Paz”. São Paulo escreve detalhadamente sobre a paz de Cristo na Carta aos Efésios. Como essa paz é mencionada brevemente na Carta aos Hebreus, embora não nessa seção, vamos explicá-la de forma resumida. Fundamentalmente, a paz de Cristo tem uma dupla dimensão: a reconciliação dos pecadores com Deus e a restauração da igualdade de todos os homens perante Deus, “derrubando o muro da inimizade” (Ef 2,14) entre a privilegiada Israel e as desprivilegiadas nações dos gentios. Já não há mais nenhuma raça exclusivamente eleita, como foi Israel antes da vinda de Cristo. Essa nova paz de Cristo é a absoluta harmonia e igualdade de privilégios que todos os homens compartilham através da união no Corpo Místico de Cristo.

O terceiro versículo explica o segundo atributo principal do tipo, Melquisedec, e introduz o tema do sétimo capítulo. O versículo enfatiza dois pontos por meio da repetição. Primeiro, Melquisedec não tem pai, mãe nem genealogia. Segundo, as datas de nascimento e morte dele não são mencionadas. Nesses aspectos, São Paulo diz que ele se assemelha ao Filho de Deus e permanece como sacerdote para sempre. Tais afirmações aparentemente estranhas precisam de alguma explicação. 

Não tiveram seguidores os pouquíssimos exegetas que tomavam o texto em sentido literal, entendendo que Melquisedec de fato não teve pai nem mãe. Ele teve pai e mãe. Indubitavelmente, como era sacerdote e rei, tinha uma genealogia muito honrosa. Porém, pai, mãe e genealogia não são mencionados no texto sagrado. Ora, a reflexão mostra que há algo notável nessa omissão. Pois a genealogia dos homens eminentes geralmente está nas histórias sagradas, e a dignidade deste sacerdote é tamanha, que, segundo os desígnios de Deus, ele abençoa o próprio pai e patriarca do povo eleito. Abraão se ajoelha diante de Melquisedec e paga a ele dízimos de tudo o que conquistou. Ademais, o sacerdócio no Oriente antigo geralmente vinha por meio da ascendência sanguínea. Estamos diante de um sacerdote do Altíssimo, sobre cuja linhagem e título de sucessão não há nenhuma palavra. Embora a omissão seja notável, não devemos fazer absolutamente nada em relação a ela, a menos que seja intenção divina que ela signifique alguma coisa. A inspiração da Carta aos Hebreus e a menção dela a esse tipo são a garantia absoluta de que Deus realmente quis simbolizar algo através da omissão na narrativa.

Ora, o sacerdócio aarônico provou todo o seu direito ao ofício sagrado de que era incumbido, pelo título específico da linhagem. Em sentido contrário, o sacerdócio de Cristo é realmente aquilo de que o sacerdócio de Melquisedec é apenas uma imagem: um sacerdócio sem linhagem. Cristo não herdou seu ofício sacerdotal pelo título de ascendência sanguínea, e seu sacerdócio tampouco se multiplica dessa forma. Linhagem e sucessão hereditária significam multiplicidade; a posteridade que sucede tem poderes iguais aos do progenitor. Mas quando linhagem e título hereditário estão ausentes só há um sacerdote: Cristo. Não há posteridade múltipla com poderes iguais aos dele. Caifás, pertencente à linhagem de Aarão, tinha os mesmos poderes que ele. Era um sacerdote equivalente ao ancestral do qual descendia. Mas nenhum sacerdote de Cristo é equivalente a Ele. O sacerdote católico é um ministro de Cristo, a quem Cristo confere certos poderes. Mas Caifás não era ministro de Aarão.

Tendo em vista o presente escopo, não precisamos fazer mais do que aludir ao desenvolvimento mais pleno da unicidade do sacerdócio de Cristo, pressignificado no fato de que vimos haver um só sacerdote na linha de Melquisedec. Uma leitura do capítulo 7 mostra como São Paulo enxerga nessa unicidade um sinal da superioridade do sacerdócio de Cristo sobre o de Aarão e o das miríades de sacerdotes de Israel. Portanto, chamamos a atenção para o fato de que o sacerdócio segundo a ordem de Melquisedec significa essa marca essencial do sacerdócio de Cristo: sua consumação e perfeição plenas num único sacerdote, Cristo. Aquilo que Melquisedec é em imagem Cristo é de fato: o único sacerdote de toda a humanidade.

Estátua de Melquisedec na Catedral de São Pedro e São Paulo, em Nantes.

Mas a ideia de unicidade deixa algo a desejar, se não lhe acrescentamos a noção de perpetuidade. Que valor tem um sacerdócio cujos poderes e efeitos morrem com o único membro? São Paulo prossegue no versículo 3: “sem início de dias nem fim da vida”. Mais uma vez, isso não significa que Melquisedec não tenha nascido ou morrido. Ele realmente nasceu e morreu. Ora, nascimento e morte são os limites da vida; eles nos inserem de pronto na estrutura dos séculos; eles marcam o tempo; restringem os anos de nossa estadia [na terra]. Mas Melquisedec (tal como é descrito) não possui esses limites e marcas temporais. Por omissão, ele é atemporal. Essa atemporalidade do tipo simbolizava, por meio da intenção divina, a verdadeira eternidade de Cristo, o antítipo. Com que ênfase São Paulo expressa no atual contexto a eternidade de Cristo sacerdote! Ao longo de vinte e oito versículos ele recorre a ela pelo menos quinze vezes, repetindo e explicando de forma abundante o “eternamente” de Davi.    

O mesmo ponto é expresso de forma muito delicada nas últimas palavras do nosso texto: Melquisedec “se assemelha ao Filho de Deus e permanece sacerdote para sempre”. Poderíamos esperar aqui algum epíteto que denotasse diretamente a natureza humana de Cristo, pois Ele é sacerdote porque é homem. Em vez disso, São Paulo usa o epíteto “Filho de Deus”. E, embora seja óbvio que a Pessoa que é tanto Deus quanto homem possa ser chamada por epítetos que denotem uma ou outra natureza, o autor usa o nome que denota a natureza divina. Qual seria a razão neste contexto? Precisamente, porque ele tem em mente a eternidade do sacerdócio. Cristo é sacerdote porque é homem, mas só é sacerdote eterno porque é Deus e Filho de Deus.  

Portanto, o fato de Cristo ser sacerdote segundo a ordem de Melquisedec significa que Ele é o único e eterno sacerdote de todos os homens. O tipo é único e atemporal, tal como apresentado na Sagrada Escritura; o antítipo, Cristo, é realmente singular e eterno. Portanto, em São Paulo encontramos a explicação completa do “eternamente” expresso um milênio antes por Davi: “Tu és sacerdote eternamente, segundo a ordem do rei Melquisedec”. Não apresentamos aqui o desenvolvimento pleno desses títulos, descritos de forma tão magnífica na Carta aos Hebreus. Permitam-me resumir os profundos pensamentos propostos pelo Apóstolo. Cristo, o único sacerdote, oferece um único sacrifício, mas este tem uma eficácia perene, não só na redenção dos homens mortos muito tempo antes de sua conclusão no Calvário, mas na remissão de todos os pecados até o fim dos tempos. O poder desse sacrifício é ilimitado; ele se estende de um extremo a outro poderosamente, erguendo o homem caído na aurora da criação e ficando disponível até ao último coração que se arrepender ao toque da trombeta. Cristo, aspergido com o sangue de sua própria vítima, adentra e santifica o santuário celestial, o Céu. Lá Ele é o nosso precursor e perpétuo intercessor. É a âncora segura das nossas esperanças, de cujo trono de graça e misericórdia somos convidados a nos aproximar com confiança. Pois “[Cristo] é o resplendor da glória do Pai, a expressão do seu ser. Ele sustenta todas as coisas com a sua palavra poderosa. Tendo feito a purificação dos pecados, sentou-se à direita da majestade, nas alturas” (Hb 1,3). Desta forma, nas primeiras palavras da Carta são reveladas a fonte da eternidade do sacerdócio de Cristo, a tremenda obra realizada por ele e o exercício perene do mesmo, que continua incessantemente no trono de Deus. 

IV. Em São Paulo encontramos a explicação da eternidade do sacerdócio de Cristo, tal como retratada no tipo, Melquisedec. Na Tradição, a oblação do antigo sacerdote é enfatizada. Assim, tanto em sua pessoa quanto em sua oblação, Melquisedec prefigura o Cristo. São Paulo não menciona a oblação; na verdade, a omissão do detalhe é apontada de alguma forma. Ora, tal omissão se tornou suporte para uma interpretação sinistra da Carta. O protestante Westcott diz que, numa epístola em que tanto espaço é dedicado ao sacrifício de Cristo, é incrível que o autor não mencione o pão e o vinho, se eles [de fato] têm alguma relação com o sacrifício de Cristo. Supostamente a Carta teria apresentado Melquisedec, e de propósito, como sacerdote “que abençoa ao invés de oferecer um sacrifício”, e a tradição contínua da Igreja teria tornado “o silêncio do Apóstolo [ainda] mais significativo”.

Quem tira conclusões a partir do silêncio de um autor pode muito bem ultrapassar os limites da lógica legítima. É errado concluir ou sugerir que São Paulo pensava no pão e no vinho de Melquisedec como uma simples oferta de hospitalidade só porque ele não escolheu tratar disso na Carta. Acrescentemos duas razões pelas quais é errado forçar a Carta numa direção oposta à unânime Tradição da Igreja — além da verdade geral de que cada uma dessas fontes (derivadas da Verdade eterna) devem estar em harmonia entre si.

Primeiro, a doutrina da Sagrada Eucaristia era conhecida naquela época e na Igreja dos destinatários [das epístolas canônicas]. Tenho para mim como certeza histórica que São Paulo é o autor da Carta; portanto, ela foi escrita antes de 67 d.C. A melhor data é provavelmente 64 [vi]. Ora, no ano 64 dois dos Evangelhos sinóticos, a saber, o de São Mateus e o de São Marcos (e muito provavelmente o de São Lucas), já haviam sido escritos. Estes Evangelhos relatam a instituição da Santíssima Eucaristia na noite da Quinta-feira Santa. Em todos eles está presente a ordem: “Fazei isto em memória de mim”. Dez anos antes dessa data, o próprio São Paulo escreveu aos coríntios sobre o Santíssimo Sacramento. A Carta aos Hebreus resume toda a história da instituição da Eucaristia e fornece inúmeros detalhes sobre a ceia chamada ágape. A recepção da Sagrada Comunhão pelos fiéis é mencionada com clareza na passagem (cf. 1Cor 11,17-34). É óbvio, portanto, que a ignorância (ou hostilidade) em relação à doutrina da Santíssima Eucaristia não pode ser a causa do silêncio do escritor.  

Ícone bizantino de Cristo sacerdote.

Nossa segunda resposta é a verdadeira resposta ao argumento ex silentio; para tanto, concentremo-nos em investigar o propósito do autor. A própria Carta sugere o motivo do silêncio em relação ao pão e ao vinho. Embora seja questão de opinião, podemos dizer que no contexto específico do capítulo 7 esse atributo do tipo (Melquisedec) não poderia ser usado no argumento do escritor. Para esclarecer isto, devemos seguir a linha de argumentação. Falamos acima da beleza e profundidade da Carta; veremos que não merecem menos elogios o encerramento e a sutil argumentação dela.   

Os “Hebreus” a quem São Paulo dirige sua Epístola são os membros de uma igreja judaico-cristã. Comparada às novas comunidades de Éfeso, Filipos e Corinto, essa igreja já estava estabelecida há um bom tempo, o que naquela época significava no máximo trinta anos. Esses cristãos haviam sofrido perseguições menores por causa da fé, tais como ridicularização e desprezo, e até encarceramento e confisco de seus bens. Mas naquela ocasião corriam o risco de perder a fé, e mesmo de cair em apostasia, por causa de sua própria negligência e falta de fortaleza. Para enfrentar essa crise, São Paulo se mantém fiel a dois propósitos: alertar seus leitores sobre o perigo das tentações contra a fé e o absoluto desespero do apóstata que rejeita Cristo; e encorajar e revigorar uma fé perseverante que os sustentará até o fim.     

Ora, o apóstata judaico-cristão não regredia para um paganismo que São Paulo abominava antes e depois de sua conversão, praticamente na mesma intensidade. Ele retornava ao seu povo e à sua antiga religião. São Paulo sabia disso, que em sua época era algo mais verdadeiro do que hoje. Deste modo, para evitar recaídas, todo o argumento dele prova a futilidade do sacerdócio e do sacrifício judaicos, para os quais o apóstata retornaria. Este sacerdócio é absolutamente indigno e ineficaz se comparado ao sacerdócio e ao sacrifício de Cristo — completamente suficientes. O homem que “calcou aos pés o Filho de Deus”, como diz São Paulo (Hb 10,29), não tem uma vítima capaz de redimir seus pecados; em vão ele procurará por um sacrifício eficaz no ultrapassado e desacreditado santuário de Aarão.  

Essa afirmação da inutilidade do sacrifício aarônico é uma tese repetida incessantemente nos dez primeiros capítulos da Carta. A todo momento ela é contrastada com a superioridade absoluta do sacerdócio de Cristo. O autor reúne várias provas, quase todas do Antigo Testamento, para mostrar a superioridade de Cristo. Uma dessas provas é retirada do atributo típico, encontrado em Melquisedec, que explicamos acima. O motivo por que São Paulo usa esse atributo (a eternidade) e não o outro (a oblação), está no fato de que o tipo está sendo usado num contexto muito específico, como parte de um fragmento muito específico de argumentação.    

Pois ele aplica apenas aquele atributo do tipo Melquisedec que prova a superioridade do sacerdócio deste em relação ao de Aarão. O tipo Melquisedec é atemporal; o antítipo Cristo é eterno. Mas o sacerdócio de Aarão é efêmero, temporal e mortal. Mais uma vez, o tipo, Melquisedec, é único em sua ordem, e Cristo é o único sacerdote de sua linha. Mas o sacerdócio de Aarão tem a ver com morte e sucessão, com múltiplos sacerdotes ao longo de quatorze séculos de gerações de homens. Estes são os atributos do tipo que pressignificam ao mesmo tempo as realidades superiores em Cristo e também provam a superioridade em relação ao sacerdócio aarônico. Por isso, somente estes atributos são desenvolvidos, já que só eles são necessários para a argumentação da tese.

“Melquisedec abençoa Abrão”, de Walter Rane.

Se São Paulo quer que o argumento seja sólido, deve selecionar aqueles atributos do tipo, Melquisedec, que não são tipificados por Aarão. Pois temos de recordar que os sacrifícios do sacerdócio de Aarão também pressignificam o de Cristo; e esse atributo em Aarão é plenamente analisado e desenvolvido na seção seguinte da Carta. Se São Paulo argumentasse a favor da superioridade tomando como ponto de partida a oblação do pão e do vinho, seria inconclusivo e poderia ser alvo de uma réplica: “Os sacrifícios de Aarão — de touros, ovelhas, cabras, incenso, pão, vinho e sal — também prenunciam o sacrifício de Cristo! Como, então, Melquisedec é superior a Aarão em matéria de oblação?” Ora, seria possível responder a esta réplica, mas somente depois de uma explicação muito sutil e longa, na qual o escritor não entra. Melquisedec é claramente superior no que a pessoa dele pressignificava; ele não é tão claramente superior no que a sua oblação prefigurava. Portanto, por uma questão de clareza e de força do argumento, São Paulo não menciona a oblação de Melquisedec. É digno de nota nesta conexão que, desde o início do capítulo 8 — onde o sacrifício de Cristo é explicado e não mais a pessoa de Cristo sacerdote — o nome de Melquisedec não aparece nenhuma vez.

V. Devemos a São Paulo o conhecimento da intenção divina de revelar, na história de Melquisedec, uma fração do significado da eternidade do sacerdócio de Cristo. Do mesmo modo, Ele quis que a oblação do antigo sacerdote fosse um prenúncio dos elementos do sacrifício da Missa. Desses dois atributos, a atemporalidade retratada também serve como base para um argumento, que revela a superioridade de Cristo em relação a Aarão. Pois o que é do tempo morre, e o que é da eternidade continua para sempre.  

Como o próprio Cristo é sacerdote segundo a ordem de Melquisedec, também o são aqueles dentre os homens aos quais Deus se digna conferir o poder de consagrar as sagradas espécies no santo sacrifício da Missa. Eles oferecem uma vítima eternamente eficaz, já que Deus permite que ofereçam a vítima de preço infinito. Eles participam daquele sacerdócio perenemente intercessório, na medida em que ficam no lugar de Cristo e oferecem o sacrifício em seu nome e em sua pessoa. À medida que crescem em graça, eles aprendem as profundezas indizíveis da beleza de ser um com o grande Sumo Sacerdote de todos os homens — sem dúvida, só a seu modo humano e embaraçoso, e com pensamentos difíceis de exprimir. Pois, como diz São Paulo: “[Cristo] foi por Deus proclamado sumo sacerdote segundo a ordem de Melquisedec. A este respeito teríamos muito a dizer, coisas bem difíceis de explicar, dada a vossa lentidão em compreender” (Hb 5,10-11).

Referências

Notas

  1. A data aqui assinalada quer dizer tão somente que o autor prefere a opinião que localiza o Êxodo do Egito por volta de 1450 a.C., e não quase dois séculos mais tarde.
  2. Epist. XI ad Severum (PL 61, 196).
  3. Os Santos Padres não restringiram a “elevação” à Crucificação, mas viram na frase uma dupla elevação: uma física no Calvário e uma moral nos mistérios gloriosos. Vejam-se os comentários a Jo 3,14-15 e 12,32.
  4. Comentaristas protestantes mesmo bem conservadores como Westcott (Ep. to Heb., p. 200) e Franz Delitzsch concordam que o pão e o vinho foram oferecidos para revigorar a Abraão e seus fatigados seguidores. Leitores interessados encontrarão os argumentos destes refutados em comentários católicos com os de Heinisch, Murillo e nos comentários latinos de Hetzenauer e Hummelauer.
  5. A diferença de grafia (Abrão, Abraão) no nome do Patriarca é explicada em Gn 17,5. Gn 14 ocorre antes da mudança; daí a grafia “Abrão” no início deste artigo. São Paulo usou o nome tal como ficou comumente conhecido após a mudança. 
  6. Essa afirmação é uma dupla ofensa às teorias favoritas de certos críticos adversos. Na visão deles, a Carta aos Hebreus não foi escrita por São Paulo e pertence às duas últimas décadas do primeiro século. Mas nenhuma dessas opiniões é historicamente sustentável.

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