Foi o Beato Pio IX quem instituiu, em 1849, uma festa especial ao Sangue do Redentor, no dia 1.º de julho, em ação de graças pela libertação da Cidade Eterna do cerco de Garibaldi [i].
A festa não figura mais no calendário litúrgico reformado após o Concílio Vaticano II, mas foi incluída entre as Missas votivas do atual Missal Romano, podendo ser celebrada a qualquer tempo. (Por isso, fica a recomendação aos sacerdotes de que, especialmente neste mês de julho, rezem Missas votivas em honra ao Preciosíssimo Sangue que nos conquistou a salvação.)
Neste texto, queremos examinar um texto litúrgico da então solenidade, hoje abolida, que aparecia como hino das Laudes para o antigo Ofício Divino. Salvéte, Christi vúlnera são suas primeiras palavras em latim. Segue seu texto original, em melodia gregoriana, e o correspondente português, vertido por nossa equipe:
Salve, ó chagas de Cristo,
de imenso amor penhores,
pelas quais perenes riachos
manam de rubro sangue.
Em brilho superais as estrelas,
as rosas em odor, e os bálsamos,
em preço as pedras índicas,
e de mel os favos em doçura.
Abre-se por vós agradabilíssimo
refúgio para as nossas mentes.
Aqui nunca penetra o furor
dos inimigos ameaçadores.
Quantas vezes Jesus no pretório
despido recebe os flagelos!
Quantas vezes a pele, por todo lado,
destila gotículas de sangue!
À fronte venusta (oh, tristeza!)
punge a coroa espínea;
os cravos com a ponta chata
os pés e as mãos perfuram.
Mas, depois que ele entregou,
amando e querendo, o espírito,
o peito é ferido pela lança
e jorra um duplo licor.
Para que plena seja a redenção,
sob o lagar é esmagado;
e Jesus, esquecido de si mesmo,
nada para si reserva do [seu] sangue.
Ó vinde, todos vós a quem dos crimes
o funesto labéu infecta:
neste banho de salvação
quem se lava, purificar-se-á.
Ao que à destra do Sumo Pai
está sentado, devida é a [ação de] graça[s].
O que nos remiu com o [seu] sangue
nos firma pelo Espírito Santo.
O Pe. Júlio Comba, em seus Hinos do Breviário Romano, comenta a respeito deste poema: “Embora os críticos não achem metricamente perfeitos alguns versos (por ex. o 3.º da 2.ª estrofe), este hino é belo, repleto de conceitos vigorosos, e constitui uma profunda meditação sobre os mais terríveis sofrimentos de Jesus, o qual derramou por nós todo o seu sangue” [ii].
Comprovemos, pois, linha a linha, se não é este mesmo o caso.
Podemos separar o hino em três partes, excetuada a doxologia da última estrofe (comum a todos os hinos, inclusive na atual Liturgia das Horas). Na primeira, segunda e terceira estrofes, saúdam-se e exaltam-se as Christi vúlnera, ou seja, “as feridas de Cristo”. Da quarta à sétima, descrevem-se os padecimentos de Cristo. E na oitava o eu lírico procura aplicar todos esses mistérios à nossa própria vida.
“Salve, ó chagas de Cristo, / de imenso amor penhores, / pelas quais perenes riachos / manam de rubro sangue”: eis a primeira estrofe, traduzida ao pé da letra. Da palavra latina vulnus, vúlneris vêm os nossos vocábulos “vulnerar” (sinônimo de “ferir”) e “vulnerável” (ou seja, passível de ser ferido). Pois bem: na Cruz, Deus se faz vulnerável por nós. E as feridas que Cristo livremente aceitou receber são pígnora, “penhores”, sinais, garantias de seu imenso amor.
Aqui está a chave para compreender a Paixão de Cristo: sua caridade. Quem ama, faz-se vulnerável. Porque Jesus amava Judas, por exemplo, a traição deste foi muito mais grave que a perseguição dos chefes dos judeus, inimigos declarados de Cristo. Porque amava seus Apóstolos, a negação de Pedro e a fuga dos outros nove doeu nele muito mais que o clamor ou a indiferença da multidão.
Sem essa chave de leitura, os padecimentos de Nosso Senhor são ininteligíveis. Justamente por isso o mundo reagiu tão mal a The Passion of the Christ, dirigido por Mel Gibson. Para quem não crê que, naqueles acontecimentos todos, Jesus estava nos amando, o filme da Paixão não foi mais que uma sessão gratuita de tortura, carnificina e outros horrores mil. Mas nós, cristãos, acreditamos, e por isso nos emocionamos assistindo; por isso nos enternece o coração meditar esse mistério; por isso trazemos e veneramos em nossas casas a Santa Cruz de Cristo: porque ela é imménsi amóris pignus, “penhor de imenso amor”.
Não é só isso, porém: através dessas chagas perénnes rívuli manant rubéntis sánguinis, “manam riachos perenes de rubro sangue”. E, com esta imagem, já começamos a intuir o sentido de tanto sangue derramado. O Apocalipse, por exemplo, apresenta-o como um líquido com o qual se banham, ou melhor, se purificam as almas dos justos:
Depois disto, vi aparecer uma grande multidão, que ninguém podia contar, de todas as nações, tribos, povos e línguas, que estavam em pé diante do trono e diante do Cordeiro, revestidos de vestes brancas, com palmas nas suas mãos. E clamavam em alta voz, dizendo: “A salvação ao nosso Deus, que está sentado sobre o trono, e ao Cordeiro!” Todos os anjos estavam de pé, em volta do trono, dos anciãos e dos quatro animais, e prostraram-se sobre os seus rostos, diante do trono, e adoraram a Deus, dizendo: “Amém! Bênção, glória, sabedoria, ação de graças, honra, poder e fortaleza ao nosso Deus, pelos séculos dos séculos! Amém!” Então um dos anciãos, tomando a palavra, disse-me: “Estes, que estão revestidos de vestes brancas, quem são? Donde vieram?” Respondi-lhe: “Meu senhor, tu o sabes.” E ele disse-me: “Estes são aqueles que vêm da grande tribulação; lavaram as suas vestes e as embranqueceram no sangue do Cordeiro.” (Ap 7, 9-14)
É curiosa esta imagem de vestes que ficam brancas em contato com o sangue. Pois o sangue normalmente “mancha”, não é verdade? Mas não o Sangue de Cristo, do “Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo”. Este, mesmo vermelho, limpa, alveja os que nele se banham.
Na segunda estrofe, o eu lírico poetiza: “Em brilho superais as estrelas, / as rosas em odor, e os bálsamos, / em preço as pedras índicas, / e de mel os favos em doçura.” Não sem razão o Sangue de Cristo é chamado de preciosíssimo! E, quanto ao seu “dulçor” — propriedade estranha a admirar num sangue! —, não nos esqueçamos do que reza a famosa oração pós-comunhão Anima Christi (“Alma de Cristo”): Sanguis Christi, inebria me — “Sangue de Cristo, inebriai-me”, algo equivalente a “embriagai-me”, “deleitai-me”. Aqui, a alma orante “carrega nas tintas” um pouco, convencida de que, imersa nas delícias espirituais, não quererá emporcalhar-se com os prazeres maus deste mundo, ou inebriar-se com seus licores envenenados.
A imagem da estrofe seguinte — “Abre-se por vós agradabilíssimo / refúgio para as nossas mentes. / Aqui nunca penetra o furor / dos inimigos ameaçadores” — também está presente no Anima Christi, quando rezamos: Intra vúlnera tua absconde me, “Dentro de vossas chagas, escondei-me”. Entrando nas feridas de Cristo, seja através da meditação de seus mistérios, seja através da frequência aos sacramentos, somos protegidos de todos os males. Possivelmente veio daqui também a ideia da invocação hodierna que diz: “Chagas abertas, Coração ferido, o Sangue de Cristo está entre nós e o perigo.”
A quarta estrofe começa a meditar sobre a Paixão do Redentor, especialmente nos momentos em que se derrama com abundância o seu Sangue. A 4.ª estrofe contempla a flagelação; e a seguinte, a coroação de espinhos e a crucificação: “os cravos com a ponta chata / os pés e as mãos perfuram.”
Vale a pena destacar, neste trecho, o detalhe dos pregos, que transpassam Nosso Senhor retúsa cúspide, isto é, com a extremidade plana, justamente para provocar mais dor. (Nas aulas de Física, no Ensino Médio, aprendemos que a pressão, que é a força aplicada sobre uma área, é inversamente proporcional ao tamanho da superfície de contato entre o corpo que pressiona e o que é pressionado. Portanto, para que os cravos realmente penetrassem a carne de Nosso Senhor, sendo achatados, maior força precisava ser exercida pelos algozes, com o martelo. Quanto não sofreu nosso Salvador nestes instantes!...)
Quando pensávamos, porém, que cessariam os ferimentos em Nosso Senhor, eis que, depois de ter entregado o espírito — amans e volens, isto é, “amando e querendo”! —, penetram-lhe o lado e, de imediato, jorram-lhe sangue e água, como um sinal justamente do que vai expresso na estrofe seguinte: ou seja, Jesus, “esquecido de si mesmo, / nada para si reserva do [seu] sangue”. Daí a poderosa imagem da uva esmagada num lagar (sub torculári), a qual, depois de moída, nada mais tem a oferecer. Aqui a Redenção atinge sua plenitude, diz o hino. E completa-se também a imagem do amor extremo de Cristo, segundo aquilo que o próprio Evangelho declara: “Tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim” (Jo 13, 1) — até a última gota, poderíamos acrescentar.
Agora, no final, o eu lírico chama todos “a quem dos crimes / o funesto labéu infecta”, ou seja, todos nós, filhos de Adão, todos que fomos manchados, maculados, pelo pecado (o supino do verbo inficio é infectum, lembrando-nos justamente uma “infecção”, “contaminação”, “transmissão de doença”); e declara-lhes, por fim: “neste banho de salvação / quem se lava, purificar-se-á”. Com isso, retoma-se a ideia da estrofe inicial — dos riachos perenes —, mas associa-se-lhe a ideia do “banho” (bálneo), como quem diz:
Estes riachos não são só para ser admirados! A Paixão do Senhor não é só para ser vista nos cinemas! É preciso tomar parte nela.
Ou, como diz a declaração de um sínodo do século IX, “o cálice da salvação humana certamente tem em si algo que sirva em proveito de todos, mas, se não for bebido, não cura” [iii].
Mas como podemos nos lavar, hoje, neste “rio” que emana das feridas do Salvador?
Através dos sacramentos, responde-nos a Igreja. Todos eles tiram sua força e eficácia da Paixão de Cristo, de modo que, toda vez que recebemos os sacramentos, é como se estivéssemos nos unindo à Paixão do Salvador. Aliás, o “duplo licor” (géminus liquor, 6.ª estrofe) que jorra do peito aberto de Cristo é sinal justamente do Batismo e da Eucaristia, o primeiro indispensável para a salvação e o segundo o maior dos sacramentos todos.
Procuremos, pois, banhar-nos com estes líquidos salvíficos, com estes sinais sensíveis da graça invisível de Cristo. Ele morreu por todos nós, é verdade. Mas, se não tomarmos o cálice da salvação, se não entrarmos — como os justos do Apocalipse — no rubro flume do Sangue de Cristo, será em vão para nós toda a sua cruenta e amorosíssima Paixão.
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