Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas
(Lc 21,20-28)
Naquele tempo, disse Jesus a seus discípulos:“Quando virdes Jerusalém cercada de exércitos, ficai sabendo que a sua destruição está próxima. Então, os que estiverem na Judeia, devem fugir para as montanhas; os que estiverem no meio da cidade, devem afastar-se; os que estiverem no campo, não entrem na cidade. Pois esses dias são de vingança, para que se cumpra tudo o que dizem as Escrituras. Infelizes das mulheres grávidas e daquelas que estiverem amamentando naqueles dias, pois haverá uma grande calamidade na terra e ira contra este povo. Serão mortos pela espada e levados presos para todas as nações, e Jerusalém será pisada pelos infiéis, até que o tempo dos pagãos se complete. Haverá sinais no sol, na lua e nas estrelas. Na terra, as nações ficarão angustiadas, com pavor do barulho do mar e das ondas. Os homens vão desmaiar de medo, só em pensar no que vai acontecer ao mundo, porque as forças do céu serão abaladas. Então eles verão o Filho do Homem, vindo numa nuvem com grande poder e glória. Quando estas coisas começarem a acontecer, levantai-vos e erguei a cabeça, porque a vossa libertação está próxima”.
Avisos para o tempo do excídio de Jerusalém (cf. Mt 24,15-20; Mc 13,14-18; Lc 21,20-24). — Como visto, os vv. 4-14 estabelecem as condições prévias antes das quais não se dará a consumação do século; agora, os sinais descrevem abertamente a ruína do povo judaico. Em Lc, isso é declarado de maneira expressa (cf. vv. 20-24), enquanto dos textos de Mt e Mc apenas se deduz, não só por comparação com as passagens paralelas do III Evangelho, mas também porque os eventos neles descritos desenrolam-se nos limites da Judéia (cf. e.g. v. 16).
NB — Os que interpretam o sermão por referência exclusiva ao fim do mundo negam, naturalmente, que se trate aqui da destruição da Cidade santa [1].
V. 15. Quando, pois, virdes a abominação da desolação etc. A expressão é tirada de Dn 9,27: e virá sobre o Templo a abominação da desolação, i.e. uma abominável desolação, uma horrenda e ímpia profanação (gr. τὸ βδέλυγμα τῆς ἐρημώσεως, hebr. שׁקוצים משׁמם). Cf. Dn 11,31 e 12,11, onde se leem também as mesmas palavras em prenúncio dos sacrilégios que se haviam de perpetrar no tempo dos Macabeus (cf. 1Mc 1,54-59; 5,6; 2Mc 6,1-5) [2]. — Posta (Mc ἑστηκότα, na Vg: stantem, i.e. de pé): a abominação é concebida como uma pessoa ou efígie de homem posta no lugar santo (ἐν τόπῳ ἁγίῳ, sem art. = em lugar santo) onde não devia estar (Mc), i.e. no Templo, como Daniel diz explicitamente.
Não se sabe ao certo quando ou como estas palavras de Cristo foram factualmente confirmadas. Alguns as entendem em alusão ao levantamento da estátua de Adriano no lugar em que o Templo fora construído; o problema é que isto foge ao escopo do sermão, porque não teria mais função de sinal. Outros, tomando a locução no lugar santo em sentido lato, preferem entendê-las em alusão a toda a Judéia (a ‘terra santa’); nesse sentido, a abominação anunciada por Cristo não seria mais do que a irrupção das legiões romanas na Judéia ou o cerco da Cidade, conforme Lc v. 20: Mas quando virdes que Jerusalém é sitiada por exércitos, então sabei que está próxima a sua desolação. Outros, enfim, julgam que o vaticínio alude aos crimes cometidos no Templo pela seita dos zelotes (cf. Flávio Josefo, Bell. IV 30, 10; 5, 1; 6, 3).
As palavras leitor, atende bem! (ὁ ἀναγινώσκων νοείτω) podem ser do evangelista ou do próprio Cristo, o que aliás é o mais provável, por constarem elas também em Mc e equivalerem, no fundo, à mesma exortação com que Jesus costuma concluir suas parábolas: Quem tem ouvidos, ouça. Nesta hipótese, o sentido seria delas: ‘Quando lerdes a Daniel, estai atentos’ etc.
V. 16-20. Quando, pois, a abominação da desolação aparecer, então os que estiverem na Judéia deverão fugir para os montes, pois será este o sinal da iminente ruína da Cidade; e o mal há de abater-se tão rápido sobre ela, que qualquer demora, por mínima que seja, será já um grande perigo. Por isso, o que se acha no teto (sobre o telhado, ou solário) não desça para tomar coisa alguma de sua casa, mas pule dali ou desça depressa as escadas exteriores e fuja; e o que está no campo não volte atrás etc. As mulheres grávidas e as lactantes serão as mais desafortunadas (ai!), pela dificuldade de fugir. — Rogai para que não seja a vossa fuga no inverno, durante o qual, por conta do mau tempo, se torna ainda mais árduo o caminho; ou em dia de sábado, em razão do descanso legal (cf. At 1,12). A lei, na verdade, permitia fugir para salvar a vida; mas Cristo fala segundo o uso e o costume comuns dos judeus, que tendiam a considerar ilícito, i.e. impossível viajar (ou mesmo dar certo número de passos) aos sábados.
— Nos vv. 22.23b.24, Lc complementa com vários detalhes os outros dois sinóticos: dever-se-á fugir porque dias de vingança (ἐκδικήσεως) serão aqueles, para que se cumpram todas as coisas que estão escritas (alude-se, em especial, a Dn 9,26, onde se vaticina a destruição de Jerusalém). Haverá grande angústia (gr. ἀνάγκη, lt. pressura) sobre a terra judaica, e ira de Deus (ou dos inimigos?) contra este povo. Qual instrumentos da ira, ou justiça indicativa de Deus, hostes numerosas ruirão sobre a Cidade, e muitos filhos de Israel cairão ao fio da espada, alguns dos quais serão levados cativos a todas as nações, enquanto Jerusalém será calcada (ἔσται πατουμένη) pelos gentios.
A história é testemunha de que isso se cumpriu à risca. De acordo com Flávio Josefo (cf. Bell II 9, 3), enquanto durou o assédio, cerca de 1.100.000 homens pereceram, e o número total de cativos feitos ao longo de toda a guerra chegou à cifra de 97.000.
— Até se completarem os tempos dos gentios. Com efeito, as nações, i.e. os povos pagãos, depois da destruição de Jerusalém, haviam de suceder o povo eleito, dando início a um novo período na história da salvação (cf. Lc 20,16): o tempo da Igreja, ou da economia sacramental. Nada se diz, porém, sobre o tempo preciso que irá durar esta nova era.
Circunstâncias da vinda de Cristo (cf. Mt 24,29ss; Mc 13,24-27; Lc 21,25-28). — V. 29. Logo depois da tribulação daqueles dias (cf. v. 21), haverá uma grande comoção nos céus: escurecer-se-á o sol, a lua não dará a sua luz, as estrelas (οἱ ἀστέρες) cairão do céu, e as potestades dos céus (αἱ δυνάμεις τῶν οὐρανῶν) serão abaladas, i.e. perturbar-se-á o eixo e fundamento mesmo dos céu.
a) Não se sabe com certeza o que significa potestades dos céus. Para alguns, é o mesmo que estrelas (cf. Is 34,4 apud LXX); para outros, são as forças naturais que regulam o movimento dos corpos celestes (e.g. a gravitação universal); para boa parte dos antigos, tratar-se-ia dos anjos, o que não parece adequado ao contexto (cf. v. 31).
b) À pergunta se há que interpretar literalmente essa passagem dão-se diferentes respostas: 1) de acordo com São Jerônimo, Santo Tomás, Jansênio etc., o sol irá escurecer-se, ofuscado pelo esplendor e pela glória de Cristo em sua vinda, e é nesse sentido que se deve entender a queda (metafórica) das estrelas e o abalo (metafórico) das virtudes celestes; 2) Maldonado, Knabenbauer e outros pensam que estes acontecimentos devem ser entendidos literalmente (embora Kanbenbauer, para quem potestades dos céus é sinônimos de meteóros, explica o ofuscamento dos astros em termos de algum fenômeno atmosférico ocasionado pela colisão com a Terra de inúmeros meteoritos); 3) alguns tomam o escurecimento do sol em sentido próprio, mas a queda das estrelas em sentido impróprio (e.g. Orígenes, Caetano, a Lapide), e há quem o interprete ao revés, tomando o primeiro propriamente e o segundo impropriamente (e.g. Crisóstomo e Eutímio).
c) Escritores mais recentes creem identificar nessa descrição expressões características do estilo profético-apocalíptico (cf. e.g. Is 13,10; 24,18ss; 34,4; Ez 32,7; Jl 2,10.30; Ag 2,21ss; Ap passim), como os quais se costuma anunciar alguma intervenção divina poderosa e extraordinária (e.g. a ruína da Babilônia, do Egito, de Edom), e não necessariamente um abalo cósmico. — De mais a mais, Lc evita tais expressões, preferindo escrever em tom, por assim dizer, mais genérico ou indeterminado (v. 25): Haverá sinais no sol, na lua e nas estrelas. Não obstante, ele é o único dos sinóticos a mencionar a ansiedade (συνοχή = angústia, consternação, agonia) dos povos (ἐθνῶν), desorientados perante o veemente bramido do mar e das ondas, desfalecendo (ἀποψυχόντων = expirando, ou sofrendo como que um delíquio) os homens de medo (ἀπὸ φόβου) e expectação . . . porque as virtudes dos céus se abalarão etc.
V. 30 (Mc v. 26, Lc v. 27). E então (concomitante ou sucessivamente?) aparecerá o sinal (τὸ σημεῖον) do Filho de homem no céu, i.e. o estandarte da cruz, como sempre defendeu a opinião comum dos intérpretes; e então chorarão (κόψονται, baterão no peito, em sinal de dor e desespero) todas as tribos da terra, i.e. todos os povos, os infiéis etc.; e verão o Filho de homem vir, como ele mesmo prometeu que viria, sobre as nuvens do céu, com grande poder e majestade (cf. Mt 26,64; At 1,9.11).
V. 31 (Mc v. 27). E mandará os seus anjos com tuba e grande voz (μετὰ σάλπιγγος [φονῆς] μεγάλης = lit. ‘com grande voz de tuba’, i.e. ao som de poderosa trombeta). A imagem inspira-se nas reuniões públicas dos judeus, aos quais os homens eram convocados ao som de trombetas; ou na guerra, onde é costume usar instrumentos de sopro não só para convocar os soldados, mas também para incutir medo no inimigo; ou enfim no antigo costume de anunciar a chegada de um rei ao estrépito de buzinas (uma espécie de corneta). São Paulo afirma que os homens serão reunidos para o juízo ao som de trombetas (cf. 1Cor 15,52; 1Ts 4,16). — Juntarão os seus escolhidos dos quatro ventos, i.e. dos quatro cantos da terra, de uma extremidade dos céus até a outra, de uma extremidade à outro do mundo, quer dizer, onde a terra parece chegar até o céu (cf. Dt 4,32; 30,4; Sl 18,7). Entenda-se no mesmo sentido Mc 13,27: desde o sumo (da extremidade) da terra até o sumo do céu. — Este v. trata diretamente apenas da reunião dos eleitos, mas é certo os réprobos também serão convocados para o juízo.
Lc, omitidas a tuba dos anjos e a congregação dos justos, conclui no v. 28: Quando começarem, pois, a suceder estas coisas ditas até agora, erguei-vos (ἀνακύψατε = lit. ‘levantai ânimo’, i.e. enchei-vos de alegria), levantai as vossas cabeças, porque está próxima a vossa redenção (ἀπολύτρωσις), palavras que só uns poucos associam à destruição de Jerusalém (alude-se, portanto, aos sinais arrolados no v. 20ss), a maioria porém ao advento de Cristo; o juízo supremo será para os fiéis cristãos a redenção ou libertação definitiva da opressão dos ímpios e dos terrores da grande tribulação.
Nota sobre a abominação da desolação. — “Assim como, em Dn 9,26, anunciada a morte do Messias, se passa logo em seguida a falar da ruína da Cidade e do Templo que desta morte se há de seguir, assm também, em Dn 9,27, da cessação e abolição dos sacrifícios rituais judaicos se passa a falar da destruição e ruína perpétua do Templo. Assim, pois, de modo manifesto e evidente a todos, se declara que estão abolidos e divinamente extintos estes sacrifícios, uma vez que o único lugar de sacrifício que então existia jaz prostrado para sempre na abominação e na maldição. As palavras em hebr. não carecem de dificuldade. Teodócio as traduziu como καὶ ἐπὶ τὸ ἱερὸν βδέλυγμα τῶν ἐρημώσεων; do mesmo modo os LXX, e igualmente São Jerônimo. Daí que os antigos tenham interpretado כּנף em referência ao Templo e lido este termo em estado gramatical absoluto, e não, como nos massoréticos, em estado construto (lit. ‘e sobre a asa [fastígio] das abominações’) . . . Os antigos entenderam כָּנָף em referência ao Templo . . . ; ora, a expressão significa ‘asa’, ‘orla’, ‘borda’ etc. (i.e. ‘extremidade’ em geral), e a interpretaram como cimo ou pináculo do Templo, de maneira que se trata da mesma noção que πτερύγιον em Mt 4,5; ou também, a partir do significado de ‘asa’, como alguma parte lateral do Templo, algum edifício anexo etc. . . . O sentido, portanto, é: ‘Sobre o cimo do Templo virão abominações horrendas’. Ora, dado que ‘abominações’ (hebr. שִׁקּוּצִים) se diz frequentemente dos ídolos (cf. 1Sm 11,5.7; 2Sm 23,13 hebr; Jr 4,1; 7,30; 13,27; 16,18; Ez 5,11; 7,20 etc.), do culto de idolatria e dos próprios idólatras, abomináveis aos olhos de Deus (cf. Os 9,10; Zc 9,7), por esta expressão podem entender-se não só os crimes com que, no tempo da guerra judaica, os próprios judeus chamados zelotes profanaram o Templo, mas também as profanações dos romanos, que introduziram sinais militares e imagens de ídolos num lugar outrora sagrado” (J. Knabenbauer, In Danielem 9,27).
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