Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João
(Jo 20, 19-23)
Ao anoitecer daquele dia, o primeiro da semana, estando fechadas, por medo dos judeus, as portas do lugar onde os discípulos se encontravam, Jesus entrou e, pondo-se no meio deles, disse: “A paz esteja convosco”. Depois dessas palavras, mostrou-lhes as mãos e o lado. Então os discípulos se alegraram por verem o Senhor. Novamente, Jesus disse: “A paz esteja convosco. Como o Pai me enviou, também eu vos envio”. E, depois de ter dito isso, soprou sobre eles e disse: “Recebei o Espírito Santo. A quem perdoardes os pecados, eles lhes serão perdoados; a quem não os perdoardes, eles lhes serão retidos”.
Jesus Ressuscitado apareceu aos discípulos durante quarenta dias, depois disso subiu aos céus e, após dez dias, enviou o Espírito Santo. O termo “Pentecostes” quer dizer justamente isso: cinquenta dias após a Páscoa, quando celebramos a descida do Espírito Paráclito, que vem transformar os nossos corações.
Mas antes de entender o que Ele faz no coração humano, olhemos para a Virgem Santíssima. Pentecostes é uma festa muito vinculada à Virgem Maria, pois ela esteve unida aos Apóstolos em oração no Cenáculo, à espera da vinda do Espírito Santo (cf. At 1, 14); mas também porque ela é — por assim dizer — a obra de Deus mais bem acabada, em virtude de sua docilidade ao Espírito Santo.
A tradição medieval ligada à espiritualidade franciscana se habituou a chamar Nossa Senhora de “Esposa do Espírito Santo”, justamente porque ela era totalmente dócil ao Espírito Santo. Assim como a esposa e o esposo são uma só carne, Maria e o Espírito Santo eram como uma só alma, tal era a docilidade da Virgem Mãe.
Isso que aconteceu com Maria é o que Deus quer fazer em nós em Pentecostes. Ele quer nos dar uma capacidade de amar sobre-humana, isto é, acima de nossas próprias capacidades. Pentecostes é uma festa para varrer de nossas vidas toda e qualquer tentação de pelagianismo, heresia que considera o homem capaz de amar e de realizar atos de santidade sem a ajuda de Deus.
A própria liturgia de Pentecostes nos recorda que não há bem algum no homem que se realize sem a ajuda do Espírito Santo. A tradução brasileira da Sequência de Pentecostes diz: “Sem a luz que acode, nada o homem pode, nenhum bem há nele” (tradução até bonita pela simplicidade das rimas). Já a tradução de Portugal se aproxima mais do original: “Sem a vossa força, nada há no homem que seja inocente”.
Pois bem, como podemos receber o Espírito Santo? O que Ele quer fazer em nós? O que Ele fez no Coração de Nossa Senhora? A Igreja, quando fala do Espírito Santo, refere-se quase sempre aos seus dons que nos conferem a capacidade de realizar ações sobre-humanas.
Quando se é movido pelo Espírito Santo, pode-se dizer com São Paulo: “Vivo, mas não eu; é Cristo quem vive em mim” (Gl 2,20); com a Virgem Maria: “o Senhor fez em mim maravilhas” (Lc 1, 49); ou com Santa Teresinha: “Eu comecei a dar passos de gigantes”, alusão ao Salmo que diz: “O herói, percorrendo o seu caminho, como um gigante” (Sl 18,6).
Quando se diz que os santos, movidos pelo Espírito Santo, têm virtudes heróicas, as pessoas ouvem a palavra “heroico” e costumam pensar, por exemplo, nos bombeiros que entraram nas Torres Gêmeas para salvar as vítimas do ataque. Sim, foram atos heroicos, mas segundo parâmetros humanos.
Essa, porém, não é a linguagem da Igreja. Quando a Igreja fala de virtudes heróicas, ela se refere a virtudes de que um ser humano, por si só, não é capaz: “Sem a luz que acode, nada o homem pode”. Há alguém a agir no santo, não é mais ele que realiza as virtudes; é Cristo quem nele vive. É heróico no sentido de sobrenatural ou divino.
Saiamos da teoria e vejamos um exemplo concreto. São Paulo na Segunda Carta aos Coríntios chega a fazer uma espécie de lista das ações do Espírito Santo realizadas em sua vida:
São servos de Cristo? Delirando digo: eu ainda mais, muito mais do que eles pelos trabalhos, pelas prisões, pelos excessivos açoites, pelas vezes em perigo de morte, cinco vezes recebi dos judeus quarenta chicotadas menos uma, três vezes fui batido com varas, uma vez apedrejado, três vezes naufraguei, passei uma noite e um dia em alto-mar, fiz inúmeras viagens, com perigos de rios, perigos de ladrões, perigos da parte dos meus compatriotas, perigos da parte dos pagãos, perigos na cidade, perigos em regiões desertas, perigos no mar, perigos por parte dos falsos irmãos, trabalhos e fadigas, inúmeras vigílias, fome e sede, frequentes jejuns, frio e nudez, sem falar de outras coisas. A minha preocupação de cada dia, a solicitude por todas as Igrejas, quem fraqueja sem que eu também fraqueje? Quem tropeça sem que eu não incendeie? Se é preciso gloriar-me, é das minhas fraquezas que me gloriarei (2Cor 11,23ss).
Quem de nós seria capaz de viver o que viveu São Paulo? “Três vezes fui batido com varas”. Só essa provação já seria o bastante para nos traumatizar pelo resto da vida.
Esse momento de “sinceridade” selvagem de São Paulo nos coloca diante de uma intimidade a que não temos acesso, por exemplo, no caso da Virgem Maria. Se o coração de São Paulo é tão surpreendente, imaginemos como será o de Nossa Senhora!
O Espírito Santo quer realizar em nós esses prodígios. Com Ele, faremos proezas. Mas como isso ocorre? O que o Espírito Santo quer fazer em nós? Para termos um coração diferente, precisamos entender primeiro como funciona o nosso coração. Em Fátima, Nossa Senhora disse: “O meu Filho quer estabelecer no mundo a devoção ao meu Imaculado Coração”. Mas o que é o Coração de Maria? E o que é o nosso coração?
Poderíamos dizer que dentro de nós há três corações, ou três capacidades de amar: um coração carnal, que temos em comum com os animais (coração que em Maria é imaculado, e em nós, marcado pelo pecado original); um coração que é a alma; e um coração divino, por causa do Espírito Santo que habita em nós. São esses os nossos “três corações”.
Analisemos rapidamente cada um deles, a fim de entender o que devemos fazer na prática. Primeiro, vejamos o coração carnal: nele, desenvolvemos uma capacidade de “amar” que, no fundo, não é amor propriamente dito, mas uma predisposição para o amor. É costume chamá-lo de amor, embora seja um um fenômeno superficial, puramente biológico. Pensemos numa fêmea a cuidar dos filhotes. Isso é amor? Em certo sentido, sim, mas, no fundo, é mera “programação”, ou seja, o cérebro dela, por natureza, desencadeia um instinto protetor.
Ora, não há virtude nisto. Ninguém irá canonizar uma fêmea por cuidar dos seus filhotes. Nada há de heróico, é pura “programação” genética, animal. Mas é esse o tipo de amor que muitos confundem hoje com o amor genuinamente humano. É triste, mas nossa sociedade já não enxerga o mundo espiritual. Vê apenas reações passionais, emocionais, cerebrais… e pensa que isso é amor.
Que tipo de amor cantam nossas músicas, por exemplo? Um “amor” de emoções, de paixões, de sentimentos… Ora, sentimentos ainda são realidades animais. Um cachorrinho também fica ora alegre, ora triste, seu coração também palpita. A fêmea tem amor aos filhotes e o macho, atração pela fêmea no cio, mas são amores superficiais, enraizados no cérebro. Nos animais, tudo isso é natural e tranquilo; mas no ser humano, manchado pelo pecado original, isso às vezes adquire uma capacidade destruidora.
Freud mesmo observou que, no amor humano, ou eros, havia uma ferida, por ele chamada de “Thanatos”, espécie de impulso mortífero e autodestruidor. Ele só constatou um problema que, no fundo, é efeito daquilo que já sabemos por revelação divina.
Além do coração cerebral ou animal, há um segundo coração em nós: é a nossa própria alma. Aqui já nos elevamos a um nível superior ao dos animais, porque somos capazes de liberdade, sem o que não há verdadeiro amor. O animal não é livre. A fêmea cuida dos filhotes, porque é o instinto dela. Ela não pode não cuidar da própria cria. Já nós somos livres, quer para amar de forma superior, quer para ser egoístas, e isso num grau que os animais não conseguem alcançar.
O animal está “programado” para comer ao sentir fome. Essa é a “programação” característica do cérebro. Mas a alma é livre, capaz de dizer, por exemplo: “Não vou atender a essa programação. Tenho comida, mas vou renunciar a comer por amor. Eu digo livremente: Vou passar fome”.
Nenhum animal é capaz disso. Se o dono deixar de comer para comprar ração, o cachorro nunca vai saber desse ato de amor e renúncia: primeiro, porque ele mesmo não é capaz de fazer esse tipo de renúncia; além disso, ele não é capaz de reconhecer esse tipo de renúncia.
Mas nós somos capazes. Quer dizer que temos alma, ou seja, algo mais que um simples cérebro, algo que ultrapassa a realidade material, porque nenhum computador pode fazer o que fazemos: um computador não é capaz de ir contra a própria programação. Ele não diz a si mesmo: “Pensando bem, vou fazer de outro jeito”. Não, ele não faz isso; nós, sim. Por quê? Porque temos espírito, temos alma. É o segundo coração.
Mas, eis a boa notícia: em Pentecostes, Nosso Senhor Jesus Cristo, do alto do Céu, enviou o Espírito Santo aos nossos corações. Ele vem em abundância, para que sejamos capazes de amar de forma sobrenatural e divina. Há dentro de nós um chamado ao amor, heroico e maravilhoso, semelhante ao que vemos em São Paulo e na Virgem Maria.
Deus disse em Fátima, por intermédio de Nossa Senhora, que quer estabelecer no mundo a devoção ao Imaculado Coração, isto é, que o Coração da Virgem Maria, movido pelo Espírito Santo, seja para nós um caminho para Deus. Nossa Senhora disse a Lúcia: “O meu Coração será o teu refúgio e o caminho que vai te conduzir até Deus”.
Qual é, pois, o terceiro coração? É o Espírito Santo, que, presente em nós, nos torna capazes de amar de forma elevada, sobrenatural e divina, de modo que possamos dizer: “Vivo, mas não eu; é Cristo quem vive em mim”.
Em outras palavras, temos de compreender que Deus vai nos dar uma força especial. Sim, Ele já nos dá forças por meio dos sacramentos, mas precisamos renová-las através de graças atuais. Deus quer renovar em nós a força de amarmos estando unidos ao mistério da Páscoa, no qual de alguma forma morremos, não por “morte mortífera”, mas por “morte vivificante”. Eis a beleza da Páscoa! É a morte que conduz à vida: uma vida nova na qual não somos mais nós que vivemos, mas Cristo quem vive em nós.
Todos nós enfrentamos problemas, dores, doenças, solidão, calúnias, dívidas. Essas são realidades pungentes, que realmente ferem o nosso coração. A própria Virgem de Fátima mostrou o Coração rodeado de espinhos e contou aos pastorinhos um segredo, o mesmo que São Paulo expressara na Carta aos Coríntios e nós lemos: Maria, nos seus dias na terra, teve o Coração transpassado pela espada, conforme a profecia de Simeão. Ela também sofreu.
E o que fazia Nossa Senhora? Nossa Senhora pegava as suas paixões, sentimentos, dores, tristezas, preocupações, medos, humilhações, calúnias e a própria dor de ver seu Filho crucificado, ou seja, pegava todos esses espinhos e os oferecia no altar de sua alma.
Pois bem, falamos de três corações: um coração carnal; outro que é a alma; e um terceiro, que é o Espírito Santo em nós. Façamos agora uma comparação para entender melhor a função desses três corações: o coração carnal põe à disposição os animaizinhos que, em seguida, serão sacrificados no altar de nossas almas — é o segundo coração —, mas que só serão consumidos de fato pelo fogo do Espírito Santo — eis o terceiro coração. Precisamos, portanto, deixar que o fogo do Espírito Santo consuma esses “animais” que oferecemos como sacrifício em nossas almas.
Tomemos o medo, a dor e a solidão como pequenos animais para o sacrifício, e peçamos o fogo do Espírito Santo para os consumir, transformando-os em amor. Tomemos nossas paixões desordenadas e as ofereçamos no altar de nossa alma para serem consumidas pelo fogo do Espírito Divino.
Coloquemo-nos diante de Nosso Senhor e supliquemos: “Senhor Jesus, vós padecestes de medo no Horto das Oliveiras, por isso também vos oferecemos, por amor, os nossos medos. Enviai-nos o vosso Espírito, cujo fogo irá consumir o nosso sacrifício”.
Cristo sofreu tantas angústias, dores e atos de ingratidão! Foi atingido no corpo por tantas chagas! Tomemos nossas dores e, postas no altar de nossas almas, as unamos ao sofrimento da Cruz, pedindo ao Espírito Santo que venha transformá-las em amor.
Em Maria, os três corações estão tão unidos, que são um só. Por isso, é interessante ver em Pentecostes a unidade das “ovelhinhas” das paixões — sempre ordenadas — de Nossa Senhora oferecidas no altar de sua alma com o fogo do Espírito Santo, seu divino Esposo.
Diferente dela, nós somos um campo de batalha, divididos e sempre em conflito. Nossa alma é constantemente arrastada por paixões. Ora ouvimos o Espírito Santo e oferecemos sacrifícios, ora escutamos as paixões e fugimos loucamente da dor. O cérebro, nosso coração carnal, tem uma lei: “Foge da dor, busca o prazer”. Ele não quer, de modo algum, render-se ao Espírito Santo.
Animais não se oferecem em sacrifício, mas nós não somos animais! Nossa alma é livre, capaz de ir dominando, com delicadeza e bondade, as nossas paixões, seduzindo-as com vínculos humanos, até trazê-las para Deus, a fim de que o Espírito Santo nos leve a oferecê-las em sacrifício com nossas dores e angústias, por amor a Jesus.
Peçamos a intercessão da Virgem Maria para que, assim como ela e os Apóstolos receberam o Espírito Santo em Pentecostes, também nós o recebamos para sermos capazes de ter um só coração e uma só alma, oferecidos em sacrifício no fogo da caridade divina.
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