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Querem transformar o cristianismo numa religião burguesa

Os primeiros cristãos, por acreditarem no poder salvífico de Jesus Cristo, apresentavam-lhe doentes do corpo e da alma, para que Ele os curasse. Para os cristãos de hoje, porém, essa já não é uma atitude tão óbvia.

Texto do episódio
36101

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Marcos
(Mc 7,31-37)

Naquele tempo, Jesus saiu de novo da região de Tiro, passou por Sidônia e continuou até o mar da Galileia, atravessando a região da Decápole. Trouxeram então um homem surdo, que falava com dificuldade, e pediram que Jesus lhe impusesse a mão. Jesus afastou-se com o homem, para fora da multidão; em seguida, colocou os dedos nos seus ouvidos, cuspiu e com a saliva tocou a língua dele. Olhando para o céu, suspirou e disse: "Efatá!", que quer dizer: “Abre-te!” Imediatamente seus ouvidos se abriram, sua língua se soltou e ele começou a falar sem dificuldade. Jesus recomendou com insistência que não contassem a ninguém. Mas, quanto mais ele recomendava, mais eles divulgavam. Muito impressionados, diziam: “Ele tem feito bem todas as coisas: Aos surdos faz ouvir e aos mudos falar”.

Neste 23º Domingo do Tempo Comum, estamos meditando sobre o capítulo 7, versículos de 31 a 37, do Evangelho de São Marcos. Trata-se do tão conhecido trecho do “Efatá”, quando Nosso Senhor cura um surdo-mudo. Na ocasião, trouxeram um homem deficiente para que Jesus o curasse, Ele então, colocou os dedos nos ouvidos do homem e saliva em sua língua; suspirou, elevando o olhar ao céu e, então, proclamou esta ordem: “Abre-te”. E assim o surdo-mudo foi curado. Esses discípulos que levaram esse homem a Jesus têm uma grande lição a nos ensinar com o seu exemplo. 

Iniciaremos a reflexão sobre este Evangelho a partir de um ponto de vista talvez ligeiramente incomum. Antes de abordarmos a realidade do surdo-mudo, é preciso observar um elemento importante: Nosso Senhor está passando pela região da Decápole e, no início do Evangelho, nós lemos a seguinte frase — à primeira vista sem importância: “Trouxeram, então, um homem” (Mc 7, 32). Aqueles discípulos apresentaram um homem a Jesus. 

Embora soe como banal e bastante óbvia, essa frase não é evidente nos dias atuais. Trouxeram um homem à presença de Jesus e pediram para que Nosso Senhor lhe impusesse as mãos e o curasse. Aquelas pessoas tinham fé e queriam que Jesus fizesse algo; acreditavam no Cristo e sabiam que Ele poderia curar aquele surdo-mudo. Aqui, podemos ver que essa realidade de levar as pessoas para Jesus sempre foi algo óbvio ao longo dos dois mil anos da história da Igreja. Porém, nos últimos séculos, essa atitude de fé tornou-se politicamente incorreta — algo inaceitável. 

No mundo atual, qual é a nossa atitude enquanto cristãos? Nós ainda mantemos aquela consciência comum aos fiéis durante dois milênios? Ainda temos a clareza de que é preciso ser missionário e levar as pessoas a Nosso Senhor, fazendo com que conheçam a verdade, sejam curadas de sua surdez e, assim, possam verdadeiramente ouvir a Palavra de Deus? Será que a necessidade de conduzir as pessoas à fonte da verdade é uma coisa óbvia para nós? 

Infelizmente, não; porque estamos sob o efeito do mal dos tempos atuais: o indiferentismo religioso, isto é, cada qual mantém a sua religião, as suas falsas ideias sobre salvação e, desse modo, deixamos as pessoas perecerem. Antes de Nosso Senhor subir aos céus, Ele nos deixou um mandamento, uma ordem explícita: “Ide por todo mundo, fazei discípulos” (Mt 28, 19). Eis a nossa missão, temos de ir por todo o mundo e trazer as pessoas a Jesus; precisamos trazer as pessoas para a verdadeira Igreja, Una, Santa, Católica e Apostólica. Contudo, cumprir essa missão — especialmente em nossos dias — parece algo não somente fora de moda, mas um verdadeiro crime. Para alguns, evangelizar é um “imperialismo religioso”, é a “imposição” da fé cristã às outras pessoas. 

Se os cristãos ao longo dos vinte séculos de existência da Igreja tivessem agido e pensado dessa forma, o mundo jamais teria iniciado um processo extraordinário de conversão. A propósito, é precisamente porque nós não estamos mais agindo assim que este mundo está se perdendo. Nós estamos passando por um processo de “desconversão”. Mas quando e como, afinal, tudo isso começou? 

Há cinco séculos houve a revolta protestante, quando o monge Martinho Lutero, com sua revolta e sua ideologia, tomou de assalto metade da Europa da Igreja Católica. A partir desse momento, um mundo que, há séculos, vivia em relativa paz tornou-se um barril de pólvora. E isso porque a Europa tornou-se um lugar de conflitos; as pessoas viviam como se só estivessem à espera do primeiro tiro, do primeiro ataque. E o ataque veio cem anos depois de Lutero. Em função das tensões e conflitos entre católicos e protestantes, deflagrou-se a Guerra dos Trinta Anos. 

Cristãos passaram a matar cristãos por questões políticas e, claro, religiosas. Depois do fim da Guerra dos Trinta Anos, os europeus começaram a pensar em formas de se evitar esse tipo de conflito. Foi quando alguém propôs a seguinte ideia perniciosa: a religião é um fato privado, íntimo; cada cidadão tem a sua religião, as suas convicções e a sua forma de ver o mundo. O importante, a partir daquele momento, era jamais impor a sua religião aos outros. 

Com isso, foi decretado que todos nós temos de seguir na direção do indiferentismo religioso, isto é, cada um com a sua própria religião sem perturbar as escolhas do próximo. No entanto, aqui nós temos um grande problema: o cristianismo vive sob a convicção de que Jesus Cristo é a Verdade e de que nós temos a necessidade de curar as pessoas da surdez a fim de que elas possam ouvir a verdade de Nosso Senhor — sob essa vocação foi fundada a Igreja Católica. 

Quando São Paulo, na qualidade de missionário, pisou pela primeira vez no continente europeu, ele não foi bem recebido, pelo contrário. Sendo um dos primeiros missionários cristãos na Europa, Paulo chegou à comunidade de Filipos, na Grécia. Ao enxergar aquela cidade, o Apóstolo dos gentios poderia ter concordado com a ideia de deixá-los em paz vivendo a sua religião pagã. Mas São Paulo não pensou dessa forma. Ele decidiu pregar o Evangelho, e pagou um grande preço por isso: o grande Apóstolos recebeu as “boas-vindas” sendo açoitado com varas e jogado no fundo de uma prisão, na masmorra mais fétida e sem luz, com um cepo prendendo os seus pés. Foi assim que a Europa deu as “boas-vindas” ao cristianismo.

Foi dessa forma que nós recebemos o Evangelho — dissemos nós, porque, se a Europa não tivesse recebido a Boa-Nova, Portugal e consequentemente o Brasil não a teriam recebido também. Contudo, São Paulo, tomado pelo amor de Cristo, pela caridade — “caritas Christi urget nos”, “a caridade de Cristo nos impele” (2 Cor 5, 14) —, enfrentou um continente inteiro. Sua firme decisão mudou a história do mundo. 

Hoje, porém, nós que nos achamos mais sábios do que São Paulo, mais prudentes do que os santos mártires, mais cristãos do que os missionários que cruzaram os mares para levar o Evangelho, nós decidimos reagir com essa invenção moderna chamada indiferentismo religioso. Não há mais, portanto, a vocação da missionariedade. 

Mas a verdade é a seguinte: se a Igreja Católica não for missionária e, ademais, se nós não nos esforçarmos em prol da evangelização, a Igreja certamente perecerá. É claro que, como sabemos, há a promessa feita por Nosso Senhor de que “as portas do Inferno não prevalecerão” contra a Igreja (cf. Mt 16, 18). No entanto, para que isso não aconteça, é preciso que nós continuemos a ser aquilo que Jesus deixou neste mundo: uma Igreja missionária. 

Com isso, vemos que este Evangelho começa com um ato que, no âmbito de uma sociedade que exalta a tolerância, é bastante politicamente incorreto: “Trouxeram um homem até Jesus” (cf. Mc 7, 32). Nós precisamos levar as pessoas a conhecer Nosso Senhor na sua santa Igreja Católica, onde Ele se faz presente nos sacrários, na Eucaristia; onde Ele se oferece no santo sacrifício do altar, onde a Palavra de Deus é transmitida em perfeita sintonia com os dois mil anos de sabedoria dos santos. 

Assim, há dois mil anos levaram um homem até Jesus. E, hoje, o que nós fazemos? A verdade é que, tranquilamente, transformamos o cristianismo em uma religião burguesa, pois, acomodados em nossas poltronas, não nos preocupamos com a conversão dos outros. Entretanto, São Paulo diz: “Caritas Christi urget nos”, “o amor de Cristo nos impele”. Mas nos impele a quê? A trazer tantos para esse amor, a fazer com que esse amor seja conhecido. E é assim que começa o Evangelho deste domingo: “Trouxeram um homem até Jesus”. 

Quando esse homem doente chegou onde estava Nosso Senhor, houve ali um encontro íntimo com Cristo. Então, Jesus o levou para longe da multidão e, em seguida, colocou os dedos nos seus ouvidos. Cada conversão é uma história única de um encontro com o Cristo ressuscitado. Isso nos convida a refletir: quando Jesus tocou o nosso coração? Quando Ele tirou os tampões dos nossos ouvidos e nos fez finalmente ouvir a verdade? 

É essa experiência que precisamos fazer. Como faremos para que uma pessoa se encontre com Jesus? É necessário pedir inspiração a Deus e, por meio de pequenos gestos e acontecimentos, conseguiremos levar outras pessoas até Jesus para terem esse encontro com Ele. De forma bastante prática, nós podemos fazer com que uma pessoa se encontre com Jesus levando-a à Missa, onde ela poderá ouvir uma pregação edificante; também podemos partilhar um áudio ou assistir a uma palestra relevante; convidar para rezar um Terço, participar de um retiro espiritual, assistir a um filme sobre a vida de um santo e assim por diante. 

Todos esses são caminhos válidos para levar uma pessoa a se encontrar com Jesus. Porém, é preciso que ela se encontre com o Jesus verdadeiro. Nosso Senhor Jesus Cristo, ressuscitado, encontra-se na sua Palavra, tal qual ela é pregada há dois mil anos. Hoje, vivemos em um tempo de ideologias, no qual cada um faz o seu próprio “Jesus”. Há diversos “Jesuses”, não somente das inumeráveis igrejas protestantes, mas — infelizmente — há também os diversos “Jesuses” das teologias da moda, das adaptações aos gostos e cores do momento. 

Contudo, só há um único Jesus, aquele que, de forma extraordinária, falará ao nosso coração e romperá a nossa surdez, a fim de que nós o escutemos e, com isso, mudemos o nosso coração. Foi esse Jesus que, ressuscitado há dois mil anos, mudou a vida de tantos santos e santas ao longo da história.

Somos chamados a olhar para o caminho da Igreja, esse caminho de dois mil anos. No seu indiferentismo religioso, o homem moderno deseja também criar um Jesus indiferente, um Jesus para todos os gostos e cores da moda, feito para todas as modalidades e sensibilidades possíveis e imagináveis. 

Há um “Jesus burguês” para os burgueses, um “Jesus marxista” para os marxistas, um “Jesus feminista” para os feministas. É dessa forma que a Igreja vai sendo transformada em uma “casa de tolerância”. Mas só há um Jesus, aquele que há dois milênios transforma pecadores em santos; aquele que incomoda, que exige mudança de vida. Ele nos fala pessoalmente e, no encontro com o surdo, mostra que também quer romper a nossa surdez — nós, que estamos avessos à verdade e não queremos escutá-lo. 

Somente assim, escutando Nosso Senhor nesse encontro que muda a nossa vida e transforma o nosso coração, é que receberemos em nossa própria língua a saliva, isto é, o conteúdo da boca de Jesus. Ele colocou o conteúdo da sua boca dentro da boca daquele homem para que ele pudesse pregar a Palavra de Deus. O que se espera de um pregador, de um Apóstolo, de um discípulo é que, em primeiro lugar, ele tenha se encontrado com Jesus ressuscitado, que mudou a sua vida, para que ele também ajude a mudar a vida dos outros. 

No entanto, se nós não queremos ser incomodados, ou seja, se a única coisa que queremos é a tolerância, então isso nunca vai acontecer. Dessa forma vai se criando um cristianismo tão diferente daquele que foi deixado por Nosso Senhor.

Nossa esperança reside no fato de que Cristo reza por nós; Jesus ressuscitado, diante de Deus, “semper vivens ad interpellandum pro nobis”, “sempre vivo, rezando, intercedendo por nós”; é Ele que diz, como no Evangelho de hoje: “Efatá”. Devemos nos abrir ao incômodo da Palavra de Deus — que nos pede uma mudança de vida. 

É bastante evidente que vivemos em um mundo que tolera tudo, no entanto o Deus de amor não tolera o egoísmo. Isso significa que teremos de mudar de vida; Ele quer nos arrancar desse egoísmo. Ele é Deus de misericórdia que perdoa o pecado, mas é precisamente por ser amor e misericórdia que Cristo quer que nós amemos — Ele quer nos ver livres dessas ideias perniciosas. 

E é isto que nos deixa eternamente acomodados em nosso egoísmo: o politicamente correto, o indiferentismo religioso, a tolerância sem limites. Voltemos à realidade da conversão: “metanoia”, mudança de mentalidade. É isso que precisamos estar dispostos a fazer. Contudo, é motivo de grande alegria sabermos que não é necessária a nossa força para que isso aconteça, pois Jesus reza por nós. 

Nosso Senhor não somente intercede por nós, mas Ele tem o poder, Ele é o Cristo, o Rei do Universo. Na qualidade de Nosso Senhor e Salvador, Jesus ordena e a sua palavra não só ensina, mas também é eficaz, realizando o que é pronunciado: “Efatá”. Um dia, nós recebemos essa palavra no Batismo; mas será que não estamos precisando de mais uma conversão? Será que esse não é o momento de nos curarmos dessa surdez e nos abrirmos para a verdade? Será que não é o momento de deixarmos as nossas opiniões de lado para seguirmos a Cristo como fizeram os santos? 

Se olharmos para a história de dois milênios da Igreja, jamais encontraremos um santo tolerante com o pecado. Quem age dessa forma, está tentando criar uma nova igreja, uma igreja que não é a dos santos, tampouco a de Jesus.

Nosso Senhor nos chama a mudarmos de vida e sermos curados de nossa surdez. Com isso, poderemos pregar a Palavra de Deus e levar outras pessoas para Cristo. Imitemos aqueles discípulos ousados que trouxeram um homem a Jesus, e tornemo-nos missionários. Pois somente levando os outros a Cristo é que iremos nos aproximar cada vez mais do caminho da salvação.

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