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Perseverança e Paciência: o caminho para carregar a cruz

O que significa, na prática, renunciar a si mesmo? Como podemos, efetivamente, carregar as cruzes cotidianas sem sermos esmagados por elas? Por que, afinal, Cristo nos exige esse sacrifício? É isso que o Padre Paulo Ricardo explica na homilia deste domingo.

Texto do episódio
1677

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Marcos
(Mc 8, 27-35)

Naquele tempo, Jesus partiu com seus discípulos para os povoados de Cesareia de Filipe. No caminho perguntou aos discípulos: “Quem dizem os homens que eu sou?” Eles responderam: “Alguns dizem que tu és João Batista; outros que és Elias; outros, ainda, que és um dos profetas”. Então ele perguntou: “E vós, quem dizeis que eu sou?” Pedro respondeu: “Tu és o Messias”. Jesus proibiu-lhes severamente de falar a alguém a seu respeito. Em seguida, começou a ensiná-los, dizendo que o Filho do Homem devia sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos, pelos sumos sacerdotes e doutores da Lei; devia ser morto, e ressuscitar depois de três dias. Ele dizia isso abertamente. Então Pedro tomou Jesus à parte e começou a repreendê-lo. Jesus voltou-se, olhou para os discípulos e repreendeu a Pedro, dizendo: “Vai para longe de mim, Satanás! Tu não pensas como Deus, e sim como os homens”. Então chamou a multidão com seus discípulos e disse: “Se alguém me quer seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e me siga. Pois quem quiser salvar a sua vida, vai perdê-la; mas quem perder a sua vida por causa de mim e do Evangelho, vai salvá-la”.


Neste 24.º Domingo do Tempo Comum, a Igreja proclama o Evangelho de São Marcos, capítulo 8, versículos de 27 a 35. É o Evangelho que revela a profissão de fé de São Pedro. Nosso Senhor está em Cesareia de Filipe, fora dos limites da Terra Santa, e pergunta: “O que é que as pessoas dizem a meu respeito?”, e então, como é comum de acontecer nos Evangelhos, elas dão respostas superficiais. Se, por exemplo, as pessoas recorrerem a uma enciclopédia a fim de dizerem quem é Jesus, a resposta evidentemente será insatisfatória; porém, por uma iluminação divina, São Pedro diz quem Ele é: o Messias. 

No Evangelho de São Mateus, nós lemos uma definição mais completa: Ele é o Cristo, o Messias ungido, Filho do Deus Vivo; Jesus é o próprio Filho de Deus. Temos, portanto, a fé de São Pedro, que é a fé de toda a Igreja — a fé verdadeira. Entretanto, Jesus, que é Deus que se fez homem, também é nosso Redentor. E aqui, São Pedro ainda não entendeu essa verdade, isto é, o fato de que Cristo precisa padecer na Cruz. E é exatamente isso que Ele, com franqueza, começa a ensinar a Pedro. 

É interessante percebermos que o Evangelho — escrito originalmente em grego — traz a expressão “parresía” para falar do modo por meio do qual Jesus começa a ensinar sobre a sua morte na Cruz. É importante observarmos que, quando Nosso Senhor explica aos seus discípulos a realidade do Reino dos Céu, falando das coisas que Deus preparou para os seus, Ele sempre usa parábolas, que são metáforas. No entanto, quando Ele decide falar da sua própria morte, Jesus não usa parábolas. Ele fala por meio de “parresía”, ou seja, com abertura, franqueza, objetividade. E isso porque todos nós já tivemos a experiência do sofrimento. 

Quando Nosso Senhor fala acerca das verdades do Reino dos Céu, Ele tem de lançar mão de parábolas e metáforas, pois os ouvintes naturalmente não têm experiência da realidade celeste. Quaisquer coisas ditas sobre a felicidade no Céu devem ser comparadas às felicidades que temos aqui neste mundo, pois assim teremos meios de imaginá-las. No entanto, para falar sobre morte, cruz, sofrimento, dor e angústia, as parábolas são dispensáveis; por isso Jesus fala abertamente, com “parresía”, de sua morte na Cruz. 

Por outro lado, vemos que São Pedro não fala de forma aberta; ao contrário, acanhadamente, ele repreende a Nosso Senhor. Mas Jesus, voltando-se para os discípulos, aplica uma advertência a Pedro, chamando-o de Satanás e dizendo que Ele não pensa como Deus, senão como os homens. É nesse contexto que Cristo pronuncia aquela frase famosa — porém, esquecida — do Evangelho, que não gostamos de lembrar: “Se alguém quer me seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e me siga. Pois quem quiser salvar a sua vida, vai perdê-la, mas quem perder a sua vida por causa de mim e do Evangelho, vai salvá-la” (Mc 8, 35). É claro que ninguém é obrigado a seguir Jesus, mas para segui-lo rumo à felicidade do Céu, sendo verdadeiramente seus discípulos, temos de fazer isso que Ele nos pede. 

Mas, por que, afinal, é necessário renunciar a si mesmo e abraçar a cruz para seguir Jesus? O que significa renunciar a si mesmo? Ora, significa que devemos nos concentrar naquilo que, verdadeiramente, é mais importante, naquilo que não passa. Para entender essa exigência de Nosso Senhor, façamos uma comparação. 

Por exemplo: imaginemos que uma mãe está dirigindo, e seu filho, de cinco anos de idade, está sentado na cadeirinha no banco traseiro. A criança está comendo chocolate, e eles estão a caminho de uma festa de aniversário. A certa altura, o filho começa a fazer bagunça com o chocolate, sujando a roupa nova — para aquela ocasião especial —, o banco do carro, os vidros das janelas etc. A mãe, ao ver essa situação, fica possessa de raiva, pois o carro é novo. 

Então, ela começa a esbravejar, e estaciona o carro para tentar limpar toda aquela sujeira. Subitamente, porém, seu filho é atingido por uma bala perdida à altura do ombro. De imediato, ela pisa no acelerador e arranca com o carro em direção ao hospital mais próximo, onde felizmente seu filho é salvo. Com essa curtíssima história, nós vemos que o amor que essa mulher tem pelo seu filho, traduzido na vontade de não perdê-lo e de querer estar com ele, faz com que, automaticamente, aquela confusão provocada pelo chocolate simplesmente não tenha a mínima relevância. 

De um instante a outro, a mulher simplesmente não se lembra mais do chocolate que sujou o banco do seu carro novo; agora, sua única preocupação é o seu filho. Ou seja, ela está buscando aquilo que é próprio das primeiras coisas. Quando nós nos concentramos no amor, naquilo que verdadeiramente importa, o tormento provocado pelas situações irrelevantes torna-se uma bobagem, uma quimera, uma verdadeira tolice. Nosso Senhor Jesus Cristo quer que nós creiamos nele, por isso a pergunta: “Quem eu sou?”. Ele é o amor da nossa vida, a razão da nossa existência — Jesus é o porquê. 

Infelizmente, porém, muitas outras coisas ocupam o lugar de Jesus em nossas vidas. Esse é o motivo pelo qual, à semelhança de Marta, nós nos atormentamos. “Marta, Marta, tu te inquietas e te agitas com muitas coisas” (Lc 10, 41). Vemos Marta preocupadíssima com o chocolate que sujou o banco do carro novo e manchou a roupa da criança; Marta está preocupada em fazer com que a criança comporte-se bem no banco traseiro. “Mas uma só coisa é necessária” (Lc 10, 42). Quando, subitamente, aquela bala perdida atinge o ombro do seu filho, a Marta agitada com ninharias começa a ter atitudes de Maria, pois agora ela contempla aquilo que verdadeiramente importa — o único necessário. 

Nessa comparação, o único necessário é Jesus. Assim como aquela mãe de modo algum quer perder o seu filho, nós temos de querer estar com Nosso Senhor; não podemos perder nossa amizade com Jesus, não podemos perder a presença dele, pois Ele é o único necessário. A bem da verdade, nós precisamos, por meio de uma fé cada vez mais ardente, apaixonarmo-nos por Jesus, ter nele a verdadeira razão de nossas vidas — pois assim, e somente assim, nós iremos segui-lo verdadeiramente. 

Voltemos, agora, à frase do Evangelho deste domingo para entendê-la melhor: “Se alguém me quer seguir, renuncie a si mesmo”. Mas o quê, afinal, significa essa renúncia? Nós precisamos renunciar aos nossos caprichos, àquilo que, em psicologia, chamamos “fator egoico”. É o conjunto dos elementos passionais, das agitações e das preocupações mesquinhas.

Mas como aprenderemos a fazer isso? Como teremos paciência com a criança sentada no banco de trás? Como teremos serenidade no trânsito? Como, afinal, poderemos ter paciência com as pessoas e com as situações adversas do dia a dia? 

Em primeiro lugar, nós temos de renunciar a nós mesmos, isto é, renunciar às agitações que nos fazem viver como Martas. Na parábola do semeador, essa realidade é ilustrada por aquilo que são os espinhos que sufocam e impedem a semente de crescer de forma saudável e, assim, frutificar. Mas, para viver essa renúncia, é preciso virtude. E essa é uma virtude específica que, no Novo Testamento, recebe o nome de “hypomoné”. As traduções do grego trazem dois significados: paciência e perseverança — é uma mistura das duas coisas. 

Essa é a realidade em que nós, pacientemente, renunciamos aos nossos caprichos e escolhemos aquilo que nos contraria, isto é, a nossa cruz cotidiana. Mas de onde, afinal, tiraremos forças para suportar tamanha provação? Será que precisamos de um treinamento especial para nos tornarmos como um faquir, capaz de se deitar sobre camas de pregos, mastigar vidro, engolir tochas de fogo e espadas? Não, pois não somos atores de circo, tampouco faquires. 

De fato, o cristão sofre; porém, como ele mantém os olhos fixos em Nosso Senhor Jesus Cristo, o sofrimento começa a se transformar em nada — isso é fruto do desapego. Naquela curtíssima história sobre a criança que se suja de chocolate no banco traseiro do carro da mãe, quando ela leva um tiro, a mãe se desapega completamente do seu carro novo, para acudir ao filho ferido. Nós vemos claramente como um grande amor faz-nos desapegar das coisas supérfluas. 

Se temos um grande amor por Nosso Senhor, então somos perfeitamente capazes de renunciar a nós mesmos. Mas quem, afinal, fará isso em nós?

No Evangelho deste domingo, Jesus chama São Pedro de Satanás. Vamos agora observar o caminho desse Apóstolo: na Última Ceia, Jesus fala dos sofrimentos pelos quais passaria, e então Pedro diz: “Senhor, estou pronto a ir contigo tanto para a prisão como para a morte” (Lc 22, 33). É curioso, porque logo em seguida Jesus diz: “Tu me negarás três vezes” — nos Evangelhos, o verbo “negar”, “aparneomai”, só é empregado para se referir às negações de Pedro e também às negações que precisamos fazer de nós mesmos.

Com isso, a Sagrada Escritura está nos mostrando que precisamos negar a nós mesmos, assim como São Pedro negou a Nosso Senhor — o Apóstolo com sua atitude errada; e nós, com a certa. O verbo “aparneomai” refere-se a um negar intensamente — “arneomai” é negar; e “aparneomai”, que se origina do acréscimo do prefixo “apo”, quer dizer negar com intensidade. Foi precisamente o que Pedro fez na corte de Caifás. Quando a empregada reconhece seu sotaque de galileu, Pedro “aparneomai”, nega a Cristo com intensidade. 

Na corte de Caifás, São Pedro se expressa com verdadeira repulsa a Jesus: “Eu não conheço esse homem, não sei quem Ele é, nunca o vi, não faço ideia de quem Ele seja”. Por outro lado, Jesus no Evangelho de hoje diz: “Se alguém quiser me seguir, renuncie a si mesmo”, ou seja, renuncie a si próprio com a mesma intensidade com que Pedro renunciaria a Jesus. 

Naturalmente, podemos nos questionar se, com essa autorrenúncia, não vamos deixar de nos amar. O que temos de fazer é abrir mão desse amor doente que temos por nós mesmos. Esse amor desordenado que sentimos por nós mesmos é chamado, pelos gregos, de filáucia, philautia. E tal amor doente cria o oposto do que Deus quer criar em nós. 

Aqui nos recordamos daquela famosa passagem da obra “Cidade de Deus”, de Santo Agostinho: “Dois amores construíram duas cidades. O amor de Deus, até o desprezo de si, construiu a cidade de Deus. E o amor de si, até o desprezo de Deus, construiu a cidade terrena”. Nosso Senhor convida-nos a entrar nessa cidade celeste, Ele quer que verdadeiramente  façamos parte  da companhia dos seus santos. E isso porque, de fato, haverá cruz; mas quem nutre um amor doentio por si mesmo, sofrerá muito mais com suas cruzes. 

Observemos, por exemplo, as crianças mimadas, ou aquelas pessoas egocêntricas. São criaturas que fazem tempestade em copo d’água, por assim dizer, pois sofrem por qualquer coisa. Elas têm uma capacidade extraordinária de transformar as mínimas coisas em um sofrimento atroz. E por quê? Ora, porque elas não querem renunciar a si mesmas. 

É Jesus mesmo que explica como isso funciona: “Quem quiser salvar a sua vida vai perdê-la”. Ou seja: se ficarmos nessa dinâmica doentia de recusar o sofrimento a todo custo, acontecerá que não amaremos pessoa alguma. E isso porque aquele que não se dispõe a sofrer por alguém, não ama quem quer que seja — sem sofrimento, não há amor. Com isso, corremos o risco de perder a razão de ser da nossa própria vida. “Mas quem perder a sua vida por causa de mim e do Evangelho, vai salvá-la”. 

É isso que dá origem à perseverança, à paciência — à “hypomoné”, que Cristo quer nos ensinar no Evangelho de hoje. De fato, é belíssimo este ensinamento de Jesus: se nós verdadeiramente quisermos salvar a nossa vida, o que temos de fazer é perdê-la por amor a Jesus. Da mesma forma como aquela mãe perdeu a festa de aniversário para a qual estava indo, perdeu a limpeza do estofado do seu carro novo, perdeu a roupinha limpa da criança, perdeu tudo isso por um amor maior. 

Precisamos amar Jesus, pois, vivendo esse amor, as coisas deste mundo vão se tornando ninharias para nós. Como diz São Paulo na Carta aos Filipenses: “Julgo como lixo todas as coisas, em comparação com este bem supremo: o conhecimento de Jesus Cristo, meu Senhor. Por ele tudo desprezei e tenho em conta de esterco, a fim de ganhar Cristo e estar com ele” (Fl 3, 8-9). 

É como se, diante da grandeza de Nosso Senhor, todas as demais coisas perdessem seu valor. Diante do Esposo, do Amado, tudo torna-se efêmero. É isso o que quer dizer renunciar ao esterco. Pessoa alguma é apegada ao lixo, ao contrário, é fácil renunciar a ele. Assim como teríamos repulsa ao esterco, aos dejetos, precisamos ter repulsa por esse amor doentio de nós mesmos. “Aparneomai”, renunciemos a essas coisas e nos coloquemos a caminho do encontro com Aquele que nos ama, então tudo terá verdadeiro sentido.

Que Deus nos conceda a graça de enxergar esse grande amor que torna possível a paciência de carregar a nossa cruz cotidiana.

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