A espiritualidade tradicional não dá espaço à superstição e à idolatria? Não seria espiritualmente mais saudável abandonar devoções "barrocas" e abraçar um justo cristocentrismo? O que dizer de consagração, escravidão, cadeiazinhas, medalhas, novenas e ladainhas? Não é tudo um exagero inadequado ao espírito moderno e ecumênico? Afinal, o Vaticano II mudou nossa visão sobre Nossa Senhora?
Várias formas de piedade cristã foram desenvolvidas ao longo dos séculos para com a Virgem Maria. É assim porque o amor a Nossa Senhora encontra sempre novas maneiras de se expressar, novos instrumentos para se propagar – desde métodos especiais de consagração a medalhas, novenas e ladainhas. Embora muitas pessoas dentro da própria Igreja tenham tentado afastar os fiéis destas belas práticas devocionais – tachando-as de devoções "barrocas" e exageradas –, nada disto foi abolido ou deixado de lado.
Sequer o grande marco católico do século XX, o Concílio Vaticano II, representou uma ruptura no entendimento do Magistério acerca do papel e da função da bem-aventurada Virgem Santíssima na história da salvação. Ao contrário, as linhas conciliares sobre Nossa Senhora trouxeram consigo uma verdadeira riqueza para todos os fiéis, convidando-os a estabelecer um fundamento doutrinal sólido para sua devoção e seu amor a Maria.
O texto do capítulo VIII da constituição Lumen Gentium ofereceu uma síntese de duas escolas marianas existentes à época: a escola eclesiológica e a escola cristológica.
As duas tendências teológicas, reunidas em um Congresso Mariano Internacional, em Lourdes, no ano de 1958, perfeitamente católicas, entraram em um embate: enquanto a escola eclesiológica concebia Maria simplesmente como a maior dentre os santos e, na expressão que o Concílio utilizou depois, "membro eminente e inteiramente singular da Igreja" [1], a outra olhava de modo especial para o seu papel salvífico singular na história. A tendência cristológica condensava suas formulações no antiquíssimo título de "Maria, Mãe de Deus". Para estes teólogos, Jesus não estabeleceu Nossa Senhora como mera intercessora, mas, tendo-a escolhido para vir ao mundo uma vez, serve-se sempre dela para reinar nas almas.
Durante o Concílio Vaticano II, dois prelados ficaram encarregados de elaborar as linhas a ser escritas sobre a Santíssima Virgem: eram os cardeais Franz König, de Viena, representante da escola eclesiológica, e Rufino Santos, das Filipinas, adepto da escola cristológica. Na votação para definir se haveria um documento específico para Nossa Senhora, os padres conciliares, encabeçados pelos dois membros do colégio cardinalício, encontraram-se visivelmente divididos. Entre os mais de dois mil padres votantes, decidiu-se incluir o texto sobre Maria no documento sobre a Igreja por apenas 17 votos. Tratava-se, evidentemente, de uma "vitória" da escola eclesiológica.
No entanto, o resultado final da constituição dogmática Lumen Gentium representou um verdadeiro equilíbrio entre as duas escolas marianas. Poder-se-ia dizer que o que este documento conciliar fez foi fixar um "mínimo denominador comum" da mariologia para os católicos. Assim, ao mesmo tempo em que ele considera Maria a "realização exemplar (typus) da Igreja", reconhece que, "de modo inteiramente singular, pela obediência, fé, esperança e ardente caridade, ela cooperou na obra do Salvador para a restauração da vida sobrenatural das almas", chegando a chamá-la de nossa "mãe na ordem da graça" [2].
Se as palavras do Concílio, no entanto, pareceram, de algum modo, tímidas – a constituição Lumen Gentium diz que Maria é "Mãe dos membros (de Cristo)", sem usar propriamente a palavra Igreja –, no dia 21 de novembro de 1964, o Papa Paulo VI pronunciou um discurso no qual, surpreendentemente, proclamou Maria "Mãe da Igreja". Ainda que pertencente ao Magistério ordinário, não se tratou de um discurso rotineiro do Santo Padre, mas de um momento "solene", nas palavras do próprio Paulo VI. "Para glória da Virgem e para nosso conforto, proclamamos Maria Santíssima 'Mãe da Igreja', isto é, de todo o Povo de Deus, tanto dos fiéis como dos pastores, que lhe chamam Mãe amorosíssima; e queremos que com este título suavíssimo seja a Virgem doravante honrada e invocada por todo o povo cristão", disse o Papa, naquela ocasião. E insistia: "Quanto a nós, da mesma sorte que a convite do Papa João XXIII, a 11 de Outubro de 1961, entrámos na aula conciliar juntamente 'cum Maria, Matre Jesu', assim também, ao terminar a terceira sessão, deste mesmo templo saímos no nome santíssimo e suavíssimo de Maria, Mãe da Igreja" [3].
Como indica o venerável Papa Pio XII na encíclica Humani Generis, "se os romanos pontífices em suas constituições pronunciam de caso pensado uma sentença em matéria controvertida, é evidente que, segundo a intenção e vontade dos mesmos pontífices, essa questão já não pode ser tida como objeto de livre discussão entre os teólogos" [4]. Assim, embora haja certa resistência por parte de alguns teólogos em reconhecer Maria como Mater Ecclesiae, se há uma declaração do Magistério – mesmo que ordinário – respaldando tal entendimento, o conselho de que "todo o católico deve reconhecer o Papa como Pai, Pastor e Mestre universal, e estar unido a ele de espírito e coração" [5] impõe que se leve em grande conta o seu parecer, enquanto vigário de Cristo e chefe visível da Igreja.
Diante da Santíssima Virgem Maria, é legítimo tomar partido seja pela escola eclesiológica – aparentemente, mais em voga hoje –, seja pela escola cristológica. Não é possível, porém, rejeitando os postulados conciliares e evocando um malfadado "espírito ecumênico", relegar Nossa Senhora – cuja memória todas as gerações fariam, proclamando-a bem-aventurada [6] – a um papel de simples coadjuvante na história da salvação. Afirmá-lo seria assumir para si nada mais que uma postura protestante. E esta, definitivamente, não tem lugar na doutrina católica.
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