Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas
(Lc 5,12-16)
Aconteceu que Jesus estava numa cidade, e havia aí um homem leproso. Vendo Jesus, o homem caiu a seus pés, e pediu: “Senhor, se queres, tu tens o poder de me purificar”. Jesus estendeu a mão, tocou nele, e disse: “Eu quero, fica purificado”. E, imediatamente, a lepra o deixou. E Jesus recomendou-lhe: “Não digas nada a ninguém. Vai mostrar-te ao sacerdote e oferece pela purificação o prescrito por Moisés como prova de tua cura”.
Não obstante, sua fama ia crescendo, e numerosas multidões acorriam para ouvi-lo e serem curadas de suas enfermidades. Ele, porém, se retirava para lugares solitários e se entregava à oração.
Comentário
§1. Os milagres de Cristo
Nome. — Os evangelistas empregam seis vocábulos distintos para referir-se aos milagres de Cristo: 1.º ‘virtudes’ (δυνάμεις, virtutes); 2.º ‘sinais’ (σημεῖα, signa), i.e. argumentos (1) da missão divina de Cristo; 3.º ‘ações divinas’ (ἔργα, opera; às vezes no sing. τὸ ἔργον, opus = a obra); 4.º ‘prodígios’, ou ‘portentos’ (τέρατα, mirabilia); 5.º ‘maravilhas’ (θαυμάσια); e 6.º ‘paradoxos’ (παράδοξα, mirabilia), i.e. coisas surpreendentes, inesperadas etc.
Santo Tomás de Aquino explica a razão dessa variedade: ‘Nos milagres pode atender-se a duas coisas. A primeira é aquilo que é feito, o qual é algo que excede a capacidade da natureza, e nesse sentido os milagres se chamam virtudes. A segunda é aquilo por causa do qual são feitos os milagres, a saber: para manifestar algo sobrenatural; e nesse sentido chamam-se comumente sinais. Mas em razão da excelência chamam-se portentos, ou prodígios, como se mostrassem algo distante’ (STh II-II 178, 1 ad 3).
Natureza. — O milagre em geral define-se como ‘um efeito sensível superior à virtude da natureza criada, produzido por Deus à margem da ordem habitual da natureza’ (H. Herrmann, instit. dogm. n. 76).
NB — Se o milagre não fosse sensível, não poderia ser conhecido pelos homens nem, por consequência, causar neles admiração (miraculum vem de miror, -ari = admirar). Neste sentido preciso, a transubstanciação e.g. não é milagre, por faltar-lhe a primeira nota (ser perceptível aos sentidos), ainda que possua as outras duas (ser produzido por Deus acima da ordem natural).
Os milagres de Cristo são de um duplo gênero: 1.º alguns foram realizados nele, 2.º enquanto outros foram feitos por ele, em nome e por poder próprios, com o fim de manifestar sua divindade. Ao primeiro gênero pertencem a) tanto o mistério da encarnação, o maior dos milagres ou, mais ainda, a suma e como que o compêndio de todas as maravilhas divinas, b) como todos aqueles divinos portentos que, seja no nascimento de Cristo, seja na inauguração de sua vida pública, seja enfim na ressurreição e ascensão e nos demais mistérios da vida do Senhor, foram feitos por virtude divina. — Nós aqui tratamos unicamente dos milagres considerados do segundo modo, i.e. os que Cristo realizou por virtude própria, a fim de mostrar que tanto ele quanto suas palavras vinham realmente de Deus.
Finalidade. — O fim com vistas ao qual Jesus realizou milagres era tríplice: 1.º demonstrar sua missão divina (2), 2.º socorrer os miseráveis e 3.º significar o poder divino que possuía para curar as doenças da alma e manifestar outras coisas de ordem sobrenatural. Com efeito:
a) Todo o que se apresenta aos homens como enviado de Deus deve confirmar sua missão com um testemunho divino, i.e. mediante milagres. A razão disto é que, afora o milagre, i.e. um efeito sensível cuja causa só pode ser Deus, não há qualquer meio proporcionado de atestar com certeza a origem divina de alguém ou de alguma doutrina (3). Eis por que os judeus interpelavam Cristo, exigindo-lhe: Com que sinal nos mostras que tens autoridade para fazer estas coisas? (Jo 2,18). Ora, que tal fosse o objetivo primário do divino Taumaturgo, atestam-no mais de uma vez os próprios evangelistas (cf. Mt 9,5ss; 11,2-6; Lc 7,19-23; Jo 5,36; 10,25.37s). É verdade que, uma vez por outra, o Senhor não parece indicar nada além da simples condição de legado do Pai (cf. e.g. Jo 3,2; 5,17-20), porém o mais frequente é vê-lo operar milagres em nome próprio, como quem tem virtude e autoridade divinas para mandar aos mares, aos ventos, às doenças, aos demônios etc. (cf. Mt 8,1.5ss; 9,28 etc.); às vezes, atesta sua própria divindade em termos ora explícitos, ora implícitos (cf. Jo 10,36ss; 14,11s; Mt 9,1-6; Lc 5,20-25).
Objeções: 1.ª As palavras de Cristo em Jo 4,48: [s]e não virdes milagres e prodígios, não credes, parecem indicar que a intenção de Cristo era outra que não a assinalada: ‘Quem pronunciou estas palavras não pode ter pensado que a fé em seus milagres era o verdadeiro ou mesmo o único caminho para alcançar uma justa compreensão de sua pessoa e de sua missão’ (4). Uma, portanto, era a finalidade do Mestre, outra, porém, a que lhe atribuíram os discípulos. Resposta: A melhor resposta são as palavras mesmas de Cristo, dirigidas não só ao centurião, mas a todos os galileus em geral, que, desejosos de prodígios e menos dispostos à fé do que os samaritanos (cf. Jo 4,39-42), se negavam a crer se não vissem com os próprios olhos os milagres do Senhor. — 2.ª Cristo ordenou mais de uma vez que seus milagres não fossem divulgados (cf. e.g. Mc 1,34; 5,43; Lc 4,41 etc.). Logo, é falso que os tenha realizado para que todo o mundo acreditasse. Resposta: Cristo agiu assim não porque quisesse manter os milagres em segredo, mas porque não queria vê-los divulgados pela boca de demônios, e para evitar que as multidões se exaltassem tanto, que viessem a pôr em perigo sua pregação e toda a obra messiânica.
b) Uma segunda finalidade dos milagres, subordinada à primeira, era a manifestação da bondade de Deus, nosso Salvador (Tt 3,4; cf. 2,11). Com efeito, o divino Médico quis curar não só as doenças invisíveis da alma como também as visíveis do corpo. Andou fazendo bem e sarando todos os oprimidos do demônio (At 10,38), — e ia percorrendo todas as cidades e aldeias . . . , curando toda doença e toda enfermidade (Mt 9,35), tomando sobre si as nossas fraquezas e enfermidade (Mt 8,17; cf. Is 53,4). Os evangelistas indicam mais de uma vez o afeto que impelia o Senhor a realizar milagres: Movido de compaixão para com ela, disse-lhe: Não chores etc. (Lc 7,13); Tenho piedade deste povo, porque há já três dias que não se afastam de mim (Mt 15,32; cf. Mc 8,2) etc. E aos filhos de Zebedeu, como quisessem precipitar fogo do céu sobre os samaritanos, respondeu: Vós não sabeis de que espírito sois (Lc 9,55).
Uma única vez realizou Jesus um milagre movido de indignação, a saber: na maldição da figueira (cf. Mt 21,18s; Mc 11,12ss.20.26); mas naquela ocasião, se considerarmos atentamente a passagem, notaremos sentimentos mais de misericórdia que de vingança, na medida em que sob o símbolo da figueira vemos a ameaça divina, sinal do amor de Deus aos homens e meio eficaz de os levar à penitência.
c) Simbolismo dos milagres. — Os milagres são como parábolas factuais, que manifestam, não menos do que as literárias, a admirável analogia que existe entre as ordens natural e sobrenatural. O divino Redentor fazia milagres com o fim de elevar a inteligência dos homens das coisas naturais para as sobrenaturais, das doenças do corpo às enfermidades invisíveis da alma, além do de mostrar-se, logicamente, como remédio de todos os males.
A existência deste simbolismo depreende-se do próprio Evangelho: 1) Cristo nos ensina a íntima relação que pode haver, ao menos em certos casos, entre as doenças do corpo e as do espírito (cf. Mc 2,1-11); 2) não raro, aproveita-se dos milagres como de ocasiões favoráveis para significar algum fato ou verdade de ordem sobrenatural (cf. Mt 4,19; Jo 11,23); 3) obriga os demônios a que eles mesmos confessem que a destruição do império diabólico é representado, entre outras coisas, pela libertação dos possessos; 4) por último, não há melhor argumento desta analogia do que o texto de Isaías (cf. 53,4) citado por Mt (cf. 8,17), no qual o evangelista aplica às doenças corporais saradas por Cristo o que Isaías vaticinara acerca das enfermidades espirituais que o Messias tomaria sobre si.
Eis o que diz Agostinho a esse respeito: ‘Perguntemos aos milagres o que nos dizem sobre Cristo. Têm eles, se bem entendidos, sua própria linguagem. Pois se Cristo é a Palavra de Deus, também os feitos de Cristo são palavra para nós’ (tract. xiv in Ioh.: ML 35,1593); ‘Nosso Senhor Jesus Cristo queria que fossem entendidas também espiritualmente as coisas que fazia corporalmente. Ele, com efeito, não fazia milagres pelos milagres, mas para que aquilo que fazia fosse admirável a quem o visse, e verdadeiro a quem o entendesse, assim como quem vê as letras de um livro bem escrito, e não sabe ler, pode até elogiar a mão que as escreveu . . . , mas ignora o que indicam e querem dizer aqueles traços’ (serm. xcviii 2: ML 38,592).
§2. A veracidade dos milagres
Qualquer dos seguidores da escola racionalista rejeita a priori os milagres do Evangelho, explicados por eles das maneiras mais diversas e abstrusas (e.g. por certa virtude física semelhante ao magnetismo, com a qual Cristo seria capaz de curar doenças e realizar outras aparentes maravilhas; por algum influxo psíquico e moral, que estimularia o sistema nervoso dos doentes a curar-se ou a apresentar sinais de cura; ou ainda como simples mitos e invenções populares). Nem falta entre os deístas ingleses, os pseudo-filósofos franceses e os precursores do racionalismo alemão quem não se envergonhe de proferir impudentíssimas blasfêmias contra a religião cristã, as quais podem resumir-se assim: Cristo e os Apóstolos seriam impostores, e os primeiros cristãos, uma turba de crédulos fanáticos, incapazes de separar a verdade do erro e da mentira.
Refutação. — a) O fundamento comum em que se apoiam os diferentes sistemas racionalistas é a impossibilidade do milagre. Mas este axioma fundamental, como o demonstram cabalmente os apologetas, é falso (cf. e.g. F. Vizmanos–I. Ruidor, Teología fundamental para seglares. Madrid, BAC, 1963, pp. 183-208).
b) A autoridade histórica dos evangelhos, comprovada por inúmeros testemunhos da tradição, é admitida por todos os estudiosos que buscam sinceramente a verdade, sem preconceitos disfarçados de ‘ciência’. Ora, nos evangelhos, os milagres estão vinculados tão estreitamente aos fatos e ditos ali registrados, que, sem eles, a narração se tornaria ilógica e incompreensível, o que os próprios racionalistas são forçados a reconhecer.
c) Os milagres são conhecidos e confirmados abundantemente por diversas testemunhas da Antiguidade, tanto católicas quanto heterodoxas. Vejamos somente algumas, a título de exemplo:
1) A Apologia de Quadrato (c. 116-138): ‘[os] quais [os curados e ressuscitados por Cristo] foram vistos por todos não só enquanto eram curados ou chamados de volta à vida, mas também depois. E viveram não só enquanto o nosso Salvador esteve na terra, mas também depois de sua partida, a ponto de alguns deles terem sobrevivido até os nossos tempos’ (apud Eusébio, HE iv 3).
2) São Justino Mártir: ‘[o]s quais [milagres] podeis aprender que foram realizados por ele nas Atas produzidas no tempo de Pôncio Pilatos’ (apol. i 48: MG 6,399). As chamadas Atas de Pilatos que chegaram até nós remontam ao séc. IV ou V. Justino alude aqui a um documento perdido, ou talvez a um escrito que — supõe-se — deve ter sido enviado ao imperador, dada a gravidade do conteúdo.
3) Flávio Josefo (✝ c. 100 d.C.): ‘Também naquele tempo viveu Jesus, um homem sábio . . . , autor de obras maravilhosas’ etc. (antiq. xviii 3 3, e apud Eusébio, HE i 11), palavras admitidas como autênticas por vários estudiosos (5).
4) Muitos inimigos e adversários do cristianismo reconhecem a veracidade dos milagres. Sobre Celso e.g. escreveu Orígenes: ‘Aceita ele, de certo modo, os milagres que Jesus fez e com os quais atraiu muitos a o seguirem-no como Cristo; mas também calunia, afirmando que tais milagres foram feitos não por virtude divina, mas por artes mágicas’ (contra Celsum i 38: MG 11,733). — Juliano Apóstata, para ridicularizar os cristãos, dizia que Jesus nunca fizera nada memorável, a menos que se considere grande coisa ter curado uns quantos cegos e coxos e libertado nos vilarejos de Betsaida e Betânia um que outro endemoniado (cf. São Cirilo de Alexandria, adv. Iulian. 6: MG 76,791).
d) Muitos rejeitam os milagres que são narrados por apenas um evangelista, e.g. a ressurreição do filho da viúva de Naim e a de Lázaro, como se fosse um sinal de que, se os outros evangelistas não o conheciam, o relato deve ser inventado. A isso já deu resposta ninguém menos que um acatólico: ‘A crítica argumenta sempre como se os evangelistas tivessem as mesmas preocupações históricas de que ela mesma é refém. Ora, a vida de Jesus apresentava uma tal riqueza de fatos milagrosos, que ninguém sonhou em registrá-los de maneira completa. Jesus alude a milagres realizados em Corazim, nenhum dos quais é narrado em nossos evangelhos. Ignoramos igualmente todos os que foram feitos em Betsaida, com exceção de um só. É surpreendente que, dentre todos os milagres que estão sumariamente indicados em nossos evangelhos . . . , um ou dois apenas de cada categoria (6) nos foram contados em detalhe. Parece que se escolheu, de cada classe, o exemplo mais saliente, e que se renunciou desde o início a um registro detalhado dos outros. Para a edificação . . . , isso era o bastante’ (7).
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