Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Marcos
(Mc 6,45-52)
Depois de saciar os cinco mil homens, Jesus obrigou os discípulos a entrarem na barca e irem na frente para Betsaida, na outra margem, enquanto ele despedia a multidão. Logo depois de se despedir deles, subiu ao monte para rezar.
Ao anoitecer, a barca estava no meio do mar e Jesus sozinho em terra. Ele viu os discípulos cansados de remar, porque o vento era contrário. Então, pelas três da madrugada, Jesus foi até eles andando sobre as águas, e queria passar na frente deles.
Quando os discípulos o viram andando sobre o mar, pensaram que era um fantasma e começaram a gritar. Com efeito, todos o tinham visto e ficaram assustados. Mas Jesus logo falou: “Coragem, sou eu! Não tenhais medo!” Então subiu com eles na barca, e o vento cessou. Mas os discípulos ficaram ainda mais espantados, porque não tinham compreendido nada a respeito dos pães. O coração deles estava endurecido.
Comentário
Argumento. — Três diferentes milagres são narrados nesta perícope, sc.: primeiro Cristo, depois Pedro caminham sobre as águas e, por último, a admirável suspensão da tempestade.
Ocasião e circunstâncias (Mt 14,22s; Mc 6,45s; Jo 6,15s). — Jesus, percebendo que os homens que se haviam saciado no deserto com a multiplicação dos pães, entusiasmados pelo milagre e o desejo de ver o Messias, queriam arrebatá-lo e fazê-lo rei, tornou a retirar-se sozinho para o monte (Jo 6,15); mas aos discípulos, que tinham do reino messiânico as mesmas ideias que os outros judeus, mandou (ἠνάγκασεν) que entrassem na barca e seguissem, à sua frente, para o outro lado do mar, enquanto ele despediria as multidões. — Mc indica o destino da navegação: para Betsaida (gr. πρὸς Βηθσαϊδάν).
Tríplice milagre:
a) Aparição de Cristo (Mt 14,24-27; Mc 6,47-50; Jo 6,17-20). — Chegada a tarde, os seus discípulos desceram à margem do lago, para fazer o que Cristo havia ordenado (1). Segundo Flávio Josefo (cf. bell. jud. iii 10 7), o mar de Tiberíades tinha 40 estádios (7,5 km) de largura, embora os geógrafos modernos lhe atribuam 11,5 km (= 62 estádios). Em tempo apto para navegar, podia-se atravessá-lo entre 2 e 3h. Mas como o vento fosse contrário à barca e os discípulos já tivessem remado entre 25 e 30 (= 4,5 km–5,5 km) de modo que a barca se encontrava ainda no meio do mar, eis que à quarta vigília da noite (2) veio até eles Jesus caminhando sobre as águas, e fez como se fosse passar ao lado deles (Mc), i.e. aproximava-se de longe como se quisesse passar ao largo sem subir à barca. Eles, porém, julgando ser um fantasma, i.e. algum espectro (sc. um demônio ou o espírito de algum morto), pois corria à época a opinião de que tais espectros apareciam de vez em quando (cf. Lc 24,37; At 12,15), começaram a gritar (3). Jesus, no entanto, dirigiu-se a eles e devolveu-lhes a tranquilidade: Sou eu; não vos assusteis!
b) Pedro caminha sobre as águas (cf. Mt 14,28-31). — Essa pequena descrição esboça em vivas cores a índole de São Pedro: seu fervor em agir, sua inconstância para perseverar, sua fé ardente, seu amor ao Mestre. Então Pedro lhe disse: Senhor, se és tu, manda-me ir a teu encontro, caminhando sobre a água. ‘Com a fé e o ardor de sempre, crê também agora, enquanto se calam os outros, poder fazer pela vontade do Mestre o que podia este por natureza’ (Jerônimo, in Matt. 14,28s: M 26, 103A). Sem nenhum fundamento pensava Loisy que Pedro fizera o pedido para conhecer se, de fato, era Jesus. — Tendo o Senhor respondido: Vem!, desceu Pedro da barca e começou a caminhar sobre as águas, a fim de aproximar-se do Mestre; mas como o vento agitasse as ondas, fraquejou na fé e, começando a afundar, clamou a Jesus, que, estendendo-lhe a mão, segurou-o para que não afundasse, e disse-lhe: Homem fraco na fé, por que (gr. εἰς τί, lt ad quid = com que fim) duvidaste, i.e. de meu poder e minha bondade? — Escreve São Jerônimo que o Senhor permitiu essa queda para que Pedro não se vangloriasse do milagre: ‘Ardia-lhe a fé do espírito, mas puxava-o para as profundezas a fragilidade humana. Por isso foi por breve tempo exposto à tentação, para que se lhe aumentasse a fé e compreendesse ele que fora preservado, não pela facilidade do pedido, mas pela potência do Senhor’ (ibid.).
c) Acalma-se a tempestade (cf. Mt 14,32s; Mc 6,51s; Jo 6,21). — Assim que subiram Jesus e Pedro na barca, o vento se acalmou. O texto de Jo, à primeira vista, parece dizer outra coisa: Quiseram recebê-lo na barca, mas pouco depois a barca chegou ao seu destino, i.e. os Apóstolos quiseram receber Cristo, mas ele não entrou na barca. No entanto, a locução quiseram recebê-lo (gr. ἤθελον λαβεῖν, lt. voluerunt accipere eum) pode significar em gr. de bom grado (ou ‘de motu próprio’, ‘sem demora’) o receberam na barca. — Os que estavam na barca, os discípulos e talvez alguns outros (4), prostraram-se diante dele, dizendo: Verdadeiramente, tu és o Filho de Deus! (gr. ἀληθῶς Θεοῦ υἱὸς εἶ, não: ὁ υἱὸς), o que deve entender-se não como simples designação do Messias, mas como aberta confissão da filiação divina, conquanto os Apóstolos não tivessem ainda compreendido clara e plenamente o sentido da expressão, cujo alcance apenas Pedro, ao que parece, foi o primeiro a captar (cf. Mt 16,17).
Mc nota a cegueira espiritual dos Apóstolos: Todos se achavam tomados de um extremo (λίαν ἐκ περισσοῦ) pavor, pois ainda não tinham compreendido o caso dos pães; os seus corações estavam insensíveis, i.e. se não tivessem a mente embotada, não teriam dado sinais de admiração nem feito só agora, após o milagre no deserto, essa confissão da divindade de Cristo, quase ‘forçados’ por mais um prodígio a crer no que já deviam acreditar. Intelligenti pauca (5). — Nota: Ensina Santo Tomás de Aquino que ‘[a]s virtudes morais distinguem-se em razão da diversidade de fins, que estão para o operativo como os princípios para o especulativo. Às vezes, porém, a diversidade de atos é causada por algo acidental à ação . . . por parte do agente, na medida em que é mais potente ou mais débil em agir, como e.g. o embotamento [hebetudo] e a sutileza de engenho, que diferem segundo a velocidade ou a lentidão em aprender’ (in II Sent. d. 24, q. 2, a. 2 ad 5); ‘O embotamento opõe-se à acuidade, dita por semelhança do intelecto agudo, i.e. quando pode penetrar até o íntimo do que lhe é proposto. Daí que o embotamento da mente seja <aquilo> por que a mente não é capaz de penetrar até o íntimo’ (STh II-II 8, 6 ad 1).
Doutrina espiritual. — a) Esta perícope mostra uma nova e belíssima imagem da Igreja Católica. A barca dos Apóstolos é acossada pelas ondas em pleno mar revolto, enquanto navega contra os ventos, mas não chega nunca a soçobrar. Cristo ora do alto, vê de longe as fadigas dos fiéis e no tempo oportuno os vem assistir. Os Apóstolos lutam estrénuos contra a tempestade; mas, se Jesus não estiver presente, não a podem superar. Temem à vista da chegada de Cristo, porque ainda não o conhecem bem; mas, tão-logo o Senhor sobe à barca, acalma-se a tempestade e os navegantes adoram a divindade e a potência do Redentor. — b) A fé e a queda de Pedro representam a um tempo o seu fervor e confiança nas promessas divinas e a sua fragilidade e inconstância na confissão da fé; tendo, porém, invocado a Cristo com lágrimas e gemidos de penitência, recobrou a graça e a amizade do Salvador. Pedro é, nesse sentido, como que um ‘tipo’ do fiel cristão: flutua entre os extremos da covardia e do heroísmo de momento, das traições e da devoção superficial, mas consegue, sem desespero nem orgulho, voltar à graça de Cristo e firmar-se no caminho da santidade.
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