Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas
(Lc 10,1-12)
Naquele tempo, o Senhor escolheu outros setenta e dois discípulos e os enviou dois a dois, na sua frente, a toda cidade e lugar aonde ele próprio devia ir.
E dizia-lhes: “A messe é grande, mas os trabalhadores são poucos”. Por isso, pedi ao dono da messe que mande trabalhadores para a colheita. Eis que vos envio como cordeiros para o meio de lobos. Não leveis bolsa nem sacola nem sandálias, e não cumprimenteis ninguém pelo caminho! Em qualquer casa em que entrardes, dizei primeiro: ‘A paz esteja nesta casa!’ Se ali morar um amigo da paz, a vossa paz repousará sobre ele; se não, ela voltará para vós. Permanecei naquela mesma casa, comei e bebei do que tiverem, porque o trabalhador merece o seu salário. Não passeis de casa em casa.
Quando entrardes numa cidade e fordes bem recebidos, comei do que vos servirem, curai os doentes que nela houver e dizei ao povo: ‘O Reino de Deus está próximo de vós’.
Mas, quando entrardes numa cidade e não fordes bem recebidos, saindo pelas ruas, dizei: ‘Até a poeira de vossa cidade, que se apegou aos nossos pés, sacudimos contra vós. No entanto, sabei que o Reino de Deus está próximo!’ Eu vos digo que, naquele dia, Sodoma será tratada com menos rigor do que essa cidade”.
I. Reflexão
Com alegria celebramos hoje a memória de São Jerônimo, grande Doutor da Igreja, embora não fosse bispo, mas simplesmente presbítero. Jerônimo é conhecido pelo seu amor às Sagradas Escrituras, e é exatamente por causa da festa dele, no último dia de setembro, que no Brasil dedicamos todo este mês à Bíblia. São Jerônimo viveu no final do século IV, início do V, numa região que hoje seria a Croácia. Naquela época, a região chamava-se Dalmácia. Ele saiu logo cedo da terra natal e foi estudar em Roma, onde se tornou um grande intelectual e de fina erudição, principalmente no uso da língua latina. Ele se converteu, foi batizado — como era o costume na época — já adulto e dedicou-se com afinco à vida de oração e penitência. Como monge, fazia tantos jejuns, que seus discípulos pensaram que ele acabaria morto por causa daqueles excessos. Certa vez, estando doente e quase à beira da morte, ele teve um sonho inesquecível, relatado depois numa carta a Santa Eustóquia. Jerônimo viu-se diante do trono de Deus, pronto para ser julgado. Deus lhe perguntou quem era, e o monge respondeu: “Sou cristão”. Jesus, que presidia ao julgamento, disse-lhe: “Mentes. Tu não és cristão, mas ciceroniano”.
Ora, ninguém duvida da generosidade de São Jerônimo em suas penitências; ele era, quase literalmente, pele e osso. Como é possível então que Jesus lhe apareça para dizer, num julgamento tão cruel, que ele nem cristão era? Onde estava o problema de Jerônimo? Em seu desprezo pelo latim tosco e inelegante da Bíblia, carregado de semitismos às vezes incompreensíveis. Sim, ele cria nas Escrituras, o que não o impedia de sentir por elas certa repugnância literária, pela falta que sentia ali de uma retórica mais ciceroniana, elegante e sofisticada. Jesus, na verdade, não foi cruel com ele, mas profundamente caridoso. Deus sabe do que precisamos para ser santos, e se um passarinho não pode alçar voo se estiver preso por um só fio — quem dirá por mil! —, então é preciso cortar-lhe até esse único. Jerônimo, com todo o rigor de suas penitências, havia-se desprendido de tudo, menos daquilo que lhe era mais caro: seu apego ao próprio gosto literário. O que Jesus quis fazer ao lhe negar até mesmo o nome de cristão foi cortar-lhe o fio restante. Jerônimo massacrava o corpo, lacerado por muitos jejuns, quando o problema não estava no estômago, mas no coração, isto é, sua luta não era mais contra as tentações da carne, mas contra a vaidade e a soberba do espírito.
Deus fez com Jerônimo o que costuma fazer com quase todos os santos: leva-os a largar o pecado, estimula-os à penitência e à oração, mas a certa altura precisa Ele mesmo intervir, de maneira às vezes extraordinária, para mostrar onde está a “reserva técnica” a que a alma não deseja renunciar, aquele fiozinho que ainda prende o pássaro à terra. É esse o fio que Deus quer cortar, mas a alma insiste em cortar todos os outros, menos aquele!... “Deus, eu vos entrego tudo, mas esse aqui a gente deixa para depois” — um depois que nunca chega. Deus não é cruel em pedir-nos por inteiro, porque o que ele quer é que sejamos inteiramente felizes, e isso não será possível se não nos desprendermos das outras coisas. Deus, por assim dizer, é “ciumento”, mas porque sabe que serão felizes aqueles que o amarem, e aos que o amam ele os vai purificando dos afetos terrenos.
Nesse sentido, São Jerônimo é um exemplo extraordinário de fé e de generosidade. Damos graças a Deus pelos “exageros” que lhe inspirou na penitência corporal e, ao mesmo tempo, pela caridade divina com que lhe mostrou que não adianta matar o corpo, se na alma ainda há um apego, aquela “coisinha de nada”. A penitência é, sim, necessária e salutar; mas a maior conversão não é a que emagrece o corpo, mas a que emagrece a alma, que só poderá voar se for leve e não estiver presa por fio algum.
II. Comentário exegético
O envio dos 72 discípulos (cf. Lc 10,1-12). — O divino Mestre, a fim de melhor dispor os ânimos à graça de sua pregação e também para exercitar os discípulos no ofício de anunciar às almas o Evangelho, envia adiante de si, além dos 12 Apóstolos, outros 72 missionários a todas as cidades e vilarejos por onde Ele mesmo passaria mais tarde, sobretudo na Peréia, embora não exclusivamente, segundo alguns intérpretes.
A maior parte das monições de Cristo aos discípulos é relatada por Mt. quando da expedição dos 12 Apóstolos (cf. 10,5ss). Disso, porém, não se pode inferir, como querem muitos acatólicos, que Lc. teria “inventado” a missão dos 72 discípulos para acrescentar à história evangélica alguns λόγια do Senhor presentes na suposta fonte Q (cf. Mc 6,6-11; Lc 9,-15), mas “omitidos” por Mt. ao narrar a expedição dos 12 Apóstolos. De fato, a semelhança de encargo (pregar) e de circunstâncias (necessidade de pregadores) explica suficientemente a semelhança de preceitos. — As relações entre os dois evangelistas são estas: a) o que Lc. diz em 1,1ss é dito por Mt. em 9,37 em circunstâncias de tempo e lugar mais adequadas (no início do ministério, antes da subida para Jerusalém), embora as palavras sejam tão claras e genéricas, que Cristo pode tê-las pronunciado em diferentes ocasiões; b) o que Lc. diz em 10,3-12 concorda com o dito por Mt. em 10,5-16, mas falta-lhe um correspondente a Mt 10,5 (não vades para entre os gentios) e é diversa a ordem das sentenças; c) quanto a Lc. 10,13-15, cf. homilia 1904; d) Lc., em 10,16, expressa por termos equivalentes o mesmo que diz Mt. em 10,40.
As monições aos 72 são organizadas da seguinte forma: 1.º mandato de sair: Ide (v. 3); 2.º limitações ao viático: Não leveis bolsa etc. (v. 4); algumas regras de comportamento 3.º na casa em que se hospedarem: Permanecei etc. (v. 5ss), 4.º na cidade que os acolher: Comei…, curai… e dizei-lhes etc. (v. 8s) e 5.º na que porventura os rejeitar: Saindo para as praças, dizei etc. (v. 10ss). — Para um comentário detalhado aos preceitos missionários, cf. homilia 1898.
Observação. — Já correram rios de tinta acerca do número exato de discípulos. Com efeito, em inúmeros códices gregos e sírios lê-se somente ἑβδομήκοντα (70). É o caso e.g. dos códices SCLΔW Θ1ss, 13ss e das versões vetus Latina, siríaco-peshitta, boárica e gótica. Muitos autores, sobretudo de língua grega, adotam essa leitura (e.g. Irineu, Clemente, Eusébio, Crisóstomo, Basílio, mas também Tertuliano e Ambrósio). Por outro lado, os códices BDW R Pap42, alguns minúsculos e as versões Vg, siríaco-curetoneana e -sinaítica, armena e sahídica, além de muitos códices da vetus Latina (a c 1 e r2 l), trazem ἑβδομήκοντα δύο (72), leitura seguida por Epifânio, Efrém, Agostinho etc. A questão parece insolúvel do ponto de vista crítico-textual. Há quem pretenda provar a primeira leitura com razões de conveniência: a) pelo valor simbólico que os judeus atribuíam aos números 12 (por causa dos Patriarcas) e 70 (por causa das pessoas que entraram com Jacó no Egito, cf. Gn 46,27); b) pelo número de juízes que Moisés constituiu por conselho de Jetro, seu sogro (cf. Ex 18,21.24); c) pelo número de anciãos que o Senhor deu como auxiliares a Moisés (cf. Nm 11,16s); d) pelo número de fontes (12, símbolo dos Apóstolos) e de palmeiras (70, símbolo dos discípulos) que havia em Elim, onde os judeus acamparam depois de fugir do Egito (cf. Ex 15,27). Criativo, mas não demonstrativo. Outros buscam defender a segunda leitura por razões de ordem pastoral: se Cristo escolheu 12 Apóstolos porque 12 eram as tribos de Israel, cada uma das quais estaria confiada a um único Apóstolo, é provável que tenha escolhido um número de discípulos que pudesse ser distribuído equitativamente entre elas; ora, como 70 não é divisível por 12, a leitura mais provável deve ser 72, de maneira que a cada Apóstolo e, portanto, a cada tribo teriam sido designados 6 discípulos. O texto, porém, não sugere nada disso; diz apenas que foi escolhido (se ad casum, se perpetuamente, é difícil sabê-lo) certo número de discípulos, enviados dois a dois, i.e. um total de 35 (se eram 70) ou de 36 (se eram 72) pares, número 3 vezes maior que o de Apóstolos [1].
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