Com a encíclica inaugural E Supremi, de 4 de outubro de 1903, o Sumo Pontífice que sucedeu Leão XIII delineou com eloquência o programa de seu pontificado: Instaurare omnia in Christo, “Restaurar todas as coisas em Cristo”. Como provariam os anos seguintes, Giuseppe Melchiorre Sarto (1835–1914), que reinou como Pio X de 1903 até sua morte, em 1914, comprometeu-se de modo corajoso e enérgico com essa missão. Pio X olhava com terno amor para o seu rebanho e estava preparado para guiá-lo pelas pastagens da sã doutrina e da santidade, enquanto observava angustiado as crescentes multidões de incrédulos, ovelhas perdidas pelas quais tinha a compaixão do Bom Pastor.

Primeiro Papa a ser canonizado em séculos (devido às elevadas e rigorosas normas de canonização vigentes antes do Concílio Vaticano II), Pio X dedicou-se com firmeza à reforma da Igreja, principalmente à vida litúrgica e devocional. Seus escritos indicam que ele sempre considerou o fortalecimento interno da Igreja e o aprofundamento da vida de oração e sacrifício a melhor e, na verdade, única salvaguarda dela contra agressões externas e dissensões internas. 

Como Bento XV, Pio X sabia da fundamental importância de preservar e pregar a identidade católica e a irredutível singularidade da fé, sem a qual a Igreja nada possui de definitivo e salvífico para oferecer à humanidade. Por mais que se alterem as estruturas do mundo, independentemente da tecnologia que é desenvolvida e utilizada, a condição humana é sempre a mesma: o homem, pecador, sempre precisa da misericórdia de Deus, da salvação que só Cristo nos oferece pelo ministério da Igreja por Ele fundada. A batalha de Pio X contra os “modernistas” deve ser entendida à luz dessa obstinada adesão à essência imutável da fé católica.

Embora o modernismo fosse um movimento bastante complexo, a citação abaixo, de autoria de seu mais conhecido intelectual, o ex-padre Alfred Loisy, permite-nos discernir o espírito que o animava: 

Parece-me evidente que a ideia de Deus nunca passou de uma espécie de projeção ideal, uma replicação da personalidade humana; a teologia, por sua vez, nunca foi nem poderia ser mais do que uma mitologia que, com o tempo, se torna mais e mais higienizada [i].

Os modernistas acreditavam que o cristianismo devia ser reinterpretado de acordo com as (aparentes) descobertas e necessidades da modernidade. Isso, por sua vez, sugere que o cristianismo não é uma religião revelada por Deus, mas um resultado da reflexão de mentes humanas sobre temas sagrados, a qual, portanto, é reflexo da evolução e das vicissitudes do pensamento e experiência humanos. Para o modernista, a religião como tal é uma expressão social organizada de experiências pessoais, imanentes e subjetivas do sagrado. Essa expressão pode ser mais ou menos refinada em função do tempo e do lugar, de modo que se possa tentar hierarquizar as religiões pela clareza e pureza de suas diversas concepções do sagrado. As formulações doutrinais, os padrões morais e os atos de adoração têm origem numa exigência ou desejo interior do espírito humano chamado “senso religioso”, ao qual, além disso, correspondem e cujo direcionamento seguem.

O Papa São Pio X.

Por causa desses e de outros erros, São Pio X, em sua imponente Encíclica Pascendi Dominici Gregis, de 8 de setembro de 1907, condenou todo o sistema do modernismo, chamando-lhe “síntese de todas as heresias”, e declarou-o incompatível com a primeira verdade da fé católica, qual seja: Deus, na liberdade de seu amor, quis revelar-se ao homem, a quem deu ainda o dom da fé e motivos razoáveis de credibilidade, para que ele pudesse responder de forma livre e racional à revelação e nela basear sua vida.

As memoráveis palavras de Santa Teresinha, “Tudo é graça” [ii], poderiam muito bem ser um resumo das objeções de Pio X ao modernismo. Que Deus nos tenha criado; que tenha vindo até nós em nossa condição miserável; que se tenha encarnado e morrido por nós; que tenha derramado seu Espírito de amor em nossos corações; que nos faça participar de sua vida por meio dos sacramentos da Igreja — tudo isso é pura graça, puro dom que recebemos do Pai das luzes, do doador de toda boa dádiva, a quem nos oferecemos por meio da obediência, do amor filial e da adoração. 

Para o modernista, tudo está de cabeça para baixo. É como se estivéssemos numa sala de espelhos onde tudo se identifica com o ego, tudo brota do ego, tudo está preso no tempo, desenvolvendo-se sempre numa confusão de transformações e cacofonia de opiniões. Por trás do caos catequético, litúrgico, doutrinal e moral da Igreja Católica hoje, é fácil detectar a prolongada influência de ideias modernistas que nem mesmo os rigorosos esforços disciplinares de Pio X foram capazes de erradicar. 

Dada a enorme influência do modernismo na Igreja, Pascendi é uma encíclica que não pode ser ignorada por nenhum católico bem formado, ainda que sua leitura não seja das mais suaves. Página após página, a encíclica distingue, define e desmonta cada parte do sistema modernista, mostrando como uma ideia distorcida leva a outra, e como elas contradizem a doutrina da fé e, muitas vezes, também a verdade da sã filosofia. Há, de fato, outros ingredientes em nossa panela de crise que vêm do último meio século, mas o modernismo é mais que sal e pimenta. É a carne cozida.

Referências

  1. Mémoires pour servir à l'histoire religieuse de notre temps. Paris: É. Nourry, 1930, vol. 2, p. 469. Para uma justificativa (não muito satisfatória) dessa tese, veja-se, do mesmo autor, Un mythe apologétique. Paris: J. Thiébaud, 1939, p. 125s. (N.T.)
  2. “Últimos Colóquios”, 5 jun. 1897, n. 4, em: Obras completas. São Paulo: Paulus, 2002, p. 876. (N.T.)

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