A Divina Comédia é, indiscutivelmente, o maior poema jamais escrito. É também profundamente católico em seu núcleo teológico e filosófico. Seu autor, Dante Alighieri, passou mais de dez anos escrevendo-o, e só o finalizou um ano antes de morrer, em 1321 (ou seja, pouco mais de 700 anos atrás) [i].

Dante foi um ávido discípulo do Doutor Angélico, Santo Tomás de Aquino, o maior de todos os teólogos e filósofos católicos. Não surpreende, portanto, que a presença teológica e filosófica de Santo Tomás anime o poema do começo ao fim.

O poema é narrado em primeira pessoa pelo próprio Dante, que aparece, por assim dizer, como personagem de sua própria obra imaginativa. Ela serve como um memento mori, um lembrete da morte, levando o poeta e seus leitores a contemplar os Novíssimos: morte, juízo, Céu e Inferno. 

A Comédia começa, simbolicamente, na Quinta-feira Santa, noite em que Cristo sofreu a agonia no Horto, com o poeta preso em um bosque escuro, no meio do que hoje se pode chamar de crise da meia-idade. Ele não consegue escapar por causa de sua escravidão a hábitos pecaminosos e é resgatado pelo fantasma de Virgílio, enviado por intercessão da Santíssima Virgem, de Santa Luzia (padroeira dos cegos) e de sua querida Beatriz. Num sentido importante, Beatriz, a mulher que Dante amou e cuja morte precoce o devastou, é o teste espiritual decisivo através do qual se pode medir o progresso de Dante. Sua ascensão espiritual é acompanhada pela purificação de seu amor a ela.

“Dante e Virgílio no Inferno”, por William-Adolphe Bouguereau.

Virgílio leva Dante às profundezas do Inferno na manhã da Sexta-feira Santa, permitindo-lhe ver as terríveis consequências do pecado não arrependido. À medida que descem cada vez mais fundo, passando pelos círculos do Inferno em que são punidos cada um dos sete pecados capitais, Dante ganha um conhecimento mais profundo do mal que é o pecado, terminando finalmente no próprio poço do Inferno, na presença de Satanás em pessoa, que está miseravelmente preso num mar de gelo, voraz e insaciavelmente faminto, devorando por toda a eternidade as almas condenadas dos piores dos soberbos traidores. Simbolicamente, Dante coloca Satã no centro da Terra, o mais “baixo” que alguém pode cair, lembrando-nos talvez da piada de Chesterton de que os anjos podem voar porque não se levam a sério, enquanto o diabo cai por força da própria gravidade.

Tendo atingido o fundo do poço, Virgílio e Dante sobem em direção à luz distante, emergindo no sopé do Monte Purgatório na manhã do Domingo de Páscoa. Como o próprio Senhor e por seu poder, eles ressuscitam dos mortos para a terra dos vivos.

Dante lembra-nos que o Purgatório é a antecâmara do Céu, o lugar de purificação dos já salvos, colocando na sua entrada o portão de São Pedro. Guardado por um anjo — não por São Pedro, que está com o Senhor no Paraíso —, o portão é acessado através de três degraus ascendentes. O primeiro é feito de mármore branco, polido com tal brilho que Dante pode ver nele seu próprio reflexo, significando a confissão. O segundo é preto e rachado tanto no sentido longitudinal quanto no transversal, fazendo as rachaduras se cruzarem e formarem uma cruz, que significa a contrição. O terceiro é vermelho como sangue, significando a satisfação.

O simbolismo continua quando o anjo faz a marca de sete Ps na fronte de Dante, significando os sete pecados capitais (o P vem de peccatum, “pecado” em latim). Cada um desses Ps é removido à medida que Dante sobe pelas várias partes da montanha em que são expurgados cada um dos sete pecados capitais. Finalmente, no cume do Monte Purgatório, Dante se vê no paraíso terrestre, o Éden pré-lapsário, o lugar da inocência primordial em que não há mancha de pecado. É aqui que Dante finalmente encontra Beatriz, e é aqui que Virgílio se despede, sendo incapaz de levar Dante ao Paraíso. 

“Dante e Beatriz”, por Ary Scheffer.

Beatriz conduz Dante pelos céus, simbolizados pelos planetas e as estrelas, onde ele encontra muitos santos. Santo Tomás de Aquino surge como porta-voz dos sábios, cantando louvores a São Francisco e à sua Senhora Pobreza, e São Boaventura se apresenta para louvar São Domingos. Assim, fazendo um dominicano louvar São Francisco, e um franciscano louvar São Domingos, Dante despreza delicadamente as tensões de sua época entre as Ordens dominicana e franciscana. No Céu — ele está nos dizendo —, todas essas diferenças mundanas serão transfiguradas pelo amor perfeito.

Subindo cada vez mais, Dante encontra os Apóstolos e é examinado por São Pedro na virtude da fé, por São Tiago na virtude da esperança e por São João na virtude do amor. Seu amor por Beatriz é purificado numa consumação celestial, com um amando o outro ao mesmo tempo que são consumidos mutuamente no amor de Deus. Indo em direção ao seu clímax celestial, Dante finalmente contempla a beleza da Santíssima Virgem e é transportado pela oração de louvor que São Bernardo faz a ela. O êxtase do poeta é levado à plenitude na própria visão beatífica, brilhando em esplendor trino e encarnado, culminando nos versos finais do poema em tributo ao amor que move as estrelas.

Maurice Baring, um dos homens mais cultos do século passado, resumiu assim o brilho da conclusão extática que Dante deu à Divina Comédia

Escalando os círculos do Paraíso, estamos conscientes o tempo todo de uma ascensão não só na qualidade da substância, mas também na da forma. É um longo e perpétuo crescendo, aumentando em beleza até a consumação final na última linha. Alguém uma vez definiu um artista... como alguém que sabe como arrematar as coisas. Se esta definição for verdadeira — e eu penso que é —, então Dante foi o maior artista que já existiu. Seu canto final é o melhor, porque se relaciona com o começo ao mesmo tempo que o completa.

Ecoando Baring, T. S. Eliot comentou que admirava tanto o brilho de Dante que sentia não haver nada a fazer em sua presença senão apontar para ele e permanecer em silêncio. Assim o maior poeta do século XX presta homenagem ao maior poeta de todos os tempos. Nada mais precisa ser dito.

Notas

  1. Este texto foi originalmente publicado em 19 de junho de 2021, na Crisis Magazine. Na ocasião, o autor apresentou A Divina Comédia como uma obra-prima a celebrar “no 700.º aniversário da morte de seu ilustre compositor”.

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