Eu me esforço o mais que posso para amenizar meu ceticismo em relação à tecnologia, mas, apesar desses esforços, não posso deixar de refletir sobre todas as piores possibilidades ligadas ao vindouro metaverso. Na verdade, quanto mais leio sobre isso, mais penso que os cristãos deveriam começar a se preparar para ele desde já, antes que sejamos engolidos com nossos familiares e amigos por uma vida distante da que Deus criou para nós.  

Para aqueles que não sabem o que é o metaverso, vejam abaixo duas atualizações sobre o tema [i].

Em outubro de 2021, o Facebook anunciou que tem planos de mudar o nome para “Meta” e se transformar numa empresa voltada para o metaverso, e não mais para as redes sociais, apostando seu futuro na importância desse desenvolvimento. O Facebook/Meta também anunciou que vai contratar 10 mil pessoas somente na Europa a fim de acelerar esse projeto. E a empresa Epic Games anunciou que vai investir 1 bilhão de dólares na construção do metaverso. 

Então, o que é realmente o metaverso? Em suma, será a nova versão da internet. Especialistas dizem que não será exatamente um substituto da internet, mas apenas a absorverá e a levará a outro nível — a “Internet 3.0”, de acordo com Ronke Babajide em seu artigo publicado no Medium.

Dizem que a realidade virtual e a aumentada se integrarão plenamente ao mundo que nos circunda, o que nos dispensará de olhar para telas o tempo todo (essa parte na verdade me parece muito positiva). Se um amigo quiser falar conosco, não teremos de ler um texto ou um e-mail nem falar ao telefone; uma versão digital dele — como um holograma da Princesa Leia em Star Wars — aparecerá e simplesmente nos transmitirá sua mensagem. Se você estiver com fome, talvez uma personagem de sua série favorita (não importa qual seja a aparência dela) apareça e sugira que você peça alguma coisa do novo restaurante mais próximo.

Para navegar por esse mundo, aparentemente cada pessoa precisará de um avatar, uma espécie de representação digital de si. Se você acha que o mundo enlouqueceu com millenials egocêntricos buscando “autorrealização” na escolha de uma “identidade” momentânea qualquer, espere só até que a transformação de homem em mulher (ou de homem em coelho) exija apenas um clique em vez de cirurgias e hormônios.

A seguinte descrição foi retirada da matéria “O metaverso está prestes a mudar tudo”, publicada na edição de 22 de outubro de 2021 da revista Vanity Fair:

…você poderia imaginar que está usando seu avatar digital no mundo real, onde outras pessoas com fones de ouvido veem uma versão aumentada da própria realidade, inclusive você usando seu avatar digital, que por sua vez também poderia mudar de acordo com quem olha para você. Para seus filhos talvez você apareça sob a forma de um cãozinho de três cabeças e tranças multicoloridas, mas para seus colegas de trabalho aparecerá como um profissional trajando terno. Neste cenário, você poderia brincar de Pacman no mundo real, correndo por aí e tentando capturar moedas virtuais que ninguém mais consegue ver, ou fugindo de fantasmas coloridos que querem comer você vivo. Você poderia estar numa cafeteria em Nova Iorque enquanto um amigo está numa cafeteria em Paris, e os dois tomam café “de verdade” juntos, embora não estejam no mesmo lugar.  

Ao menos no início você acessará essas imagens, sons e outras informações por meio de fones de ouvido e óculos. A Ray-Ban criou em parceria com o Facebook uma linha de óculos de sol chamada Stories, que se parece com as linhas tradicionais, mas pode fazer muitas das coisas que seu smartphone faz, como gravar vídeos, conversar por chamada telefônica, escutar música e publicar coisas nas redes sociais. Aqui Mark Zuckerberg descreve a linha Ray-Ban Stories. Ele está fabricando essa linha de óculos junto com um software para reuniões corporativas chamado Horizon Workrooms — pense numa união entre o Zoom e a realidade virtual — como um esforço inicial para contribuir com essa infraestrutura.       

Apesar de boa parte dos outros trabalhos iniciais para o metaverso ter sido feita por empresas do mercado de jogos eletrônicos (como a Epic Games), Babajide diz que “o metaverso não será um mundo dos jogos. Jamais será ‘reiniciado’, ‘pausado’ ou ‘finalizado’. Será sincronizado com o nosso mundo real e não terá limite de ‘usuários’.”

Zuckerberg também disse o seguinte em seus comentários sobre a linha Ray-Ban Stories

Não há necessidade de escolher entre estar em seu dispositivo ou estar plenamente presente. Cremos que este é um importante passo rumo ao desenvolvimento dos óculos de realidade aumentada definitivos… Imagine ver hologramas e navegação via GPS ou poder jogar xadrez com a pessoa que você ama e que está a 4800 km de distância, tudo por meio de seus óculos.
Mark Zuckerberg, com óculos de realidade virtual.

Para quem joga xadrez (como eu) e para tantos outros domínios da vida, parece algo incrível. Mas meu problema (ou, para ser honesto, um dos muitos problemas) é a primeira parte, segundo a qual não precisaremos escolher entre usar ou deixar de usar nosso dispositivo, já que ele será parte da nossa experiência contínua. Ao menos na versão atual da internet, quando decido olhar para minha tela, tenho consciência de que o mundo que se apresenta nela e o mundo fora dela são dois domínios diferentes. Algumas pessoas podem ser viciadas nas suas telas, o que faz com que a escolha não seja plenamente voluntária. Outras podem confiar demasiadamente no que veem nelas, o que distorce o modo como enxergam o mundo real, mas ao menos existe uma escolha e uma separação.  

Mas o que acontece quando não é possível tomar a decisão de tirar do bolso um dispositivo e olhar para esse item físico? Como disse Babajide, e se essa experiência mediada for plenamente imersiva e nunca sofrer uma pausa nem chegar ao fim? Bem, certamente nós deveríamos ter certeza de que confiamos nessa pessoa a quem damos tal poder sobre a nossa realidade. Afinal, esse é um poder de editar em tempo real as nossas percepções e, portanto, os nossos pensamentos.   

Talvez nem sempre isso esteja ligado a um assunto importante. Por exemplo, se eu ficar sem sorvete, um anunciante quase certamente terá algum tipo de acesso a essa circunstância a fim de me vender mais sorvete. Talvez uma vaca possa aparecer e me perguntar se eu gostaria de mais um pote de sorvete Blue Bell sabor cookie. Se eu fosse obeso, talvez meu médico ou o Departamento de Saúde e Serviços Humanos entraria na conversa. É certamente algo invasivo, mas não inteiramente distópico. 

Porém, em assuntos mais graves, como o voto e os valores morais e religiosos que orientam a nossa vida, como o metaverso aumentaria (editaria) as nossas experiências? No momento, Facebook, Google, Amazon e outras empresas já editam quais pontos de vista nos são apresentados e de que modo o são. Considero altamente duvidosa a possibilidade de elas pararem de fazer isso quando a internet se transformar em metaverso. É quase certo que elas continuarão a nos dizer quais opiniões devem ser ridicularizadas e desprezadas e quais devem aprovadas e celebradas.

No metaverso isso seria feito de modos muito mais sutis do que os alertas que vemos em comentários desaprovados no Facebook por serem alvo de checagem de fatos ou sinalizados como “desinformação”. Não, se alguém falasse conosco sobre Jesus, sobre a importância da família nuclear ou sobre qualquer outra coisa, o metaverso teria uma vasta gama de distrações para colocar no nosso caminho. Talvez uma moça bonita entraria na sala digital e daria atenção ao rapaz. Talvez o comediante favorito dele apareceria com uma nova piada. Seria algo muito mais próximo do livro Nudge, de Cass Sunstein, que d’O Príncipe, de Maquiavel [ii]. 

Michael Bodekaer, em palestra no TED Talks sobre realidade virtual.

E nem precisamos imaginar quais seriam os valores supremos para esse metaverso. A própria natureza da coisa revela quais são eles — o meio é a mensagem, como disse certa vez Marshall McLuhan. E esse meio requer pessoas que sejam, acima de tudo, indivíduos. Para que tais mundos extremamente personalizados funcionem — com produtos, experiências e interações projetados exatamente para determinada pessoa e seus desejos de autorrealização —, quaisquer obstáculos ao individualismo expressivo devem ser tirados de campo.

Você acha que o metaverso consideraria uma família unida como apoio ou obstáculo a essa iniciativa? E a amizade verdadeira? A religião? A comunidade? Ainda que inicialmente os desenvolvedores aleguem ter a capacidade de aprimorar esses elementos da vida, a natureza de uma realidade em que cada indivíduo é um deus de seu próprio universo personalizado é inerentemente destrutiva para o propósito desses indivíduos, que não foram criados para ser Deus, mas para servir a Deus. Nossa segunda obrigação mais elevada após o amor a Deus é o amor ao cônjuge, aos filhos, aos amigos e à comunidade. Um mundo que marginaliza a centralidade desses relacionamentos — filtrando-os por meio de avatares, do marketing e da busca superficial por dopamina — muito provavelmente conduzirá ao que C. S. Lewis chamou “A Abolição do Homem”: pessoas que já não são mais seres humanos.    

Se os cristãos quiserem continuar a viver no mundo criado por Deus e a realizar a obra que Ele nos mandou pôr em prática, temos de refletir sobre o risco de entregar a essas forças as rédeas das nossas experiências cotidianas. Algumas forças são poderosas demais para que a maioria das pessoas consiga resistir a elas — como o vício em opiáceos e em metanfetamina. A “velha” internet conseguiu criar múltiplas forças quase irresistíveis (redes sociais, pornografia sob demanda, jogos eletrônicos etc.). Uma superinternet aprimorada e imersiva sem dúvida teria o poder de absorver vidas inteiras num mundo de distrações às quais as pessoas não terão força suficiente para resistir.     

Imagine como seria a versão atualizada da pornografia (talvez seja melhor nem imaginar) se o consumidor estivesse plenamente imerso numa experiência indistinguível da realidade. Imagine como seria a versão atualizada dos jogos eletrônicos, com aventuras que superariam bastante a imaginação de qualquer geração anterior e nas quais poderíamos ficar imersos durante vários dias. Pense em qual seria o significado de “rede social” se pudéssemos simplesmente entrar nas postagens dos nossos “amigos” enquanto eles viajam para Portugal, fazem um mergulho com snorkel nas Bahamas ou assistem a um concerto.     

Antes que o metaverso surja em sua forma plena (algo que provavelmente ocorrerá na próxima década), temos de discernir em oração e com seriedade se entraremos nele ou até que ponto o faremos. Porque embora possamos ganhar um mundo digital infinitamente fascinante, também podemos perder as nossas almas, que são muito reais.

Notas

  1. O texto original, de outubro de 2021, traz estas atualizações da época em que foi publicado. Por isso adaptamos as expressões recent updates e This week, com que começa o parágrafo seguinte. (N.T.)
  2. Com isso, o autor quer chamar a atenção para a sutileza do controle exercido pelas mídias sociais e pelo futuro “metaverso”, muito diferente do domínio coercitivo de uma autoridade tirânica. Daí a contraposição entre O Príncipe, de Maquiavel, e o livro Nudge. Esta obra, de um economista comportamental, inaugurou a nudge theory (chamada em português de “arquitetura da escolha”) que consiste em ordenar o contexto em que as pessoas tomam decisões a fim de influenciá-las. (N.T.)

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