Basta abrir a esmo o Antigo Testamento para ter ideia da gravidade com que se tratava — e punia — em Israel o pecado de idolatria. Na época dos profetas, alguns filhos de Abraão foram perseguidos justamente por se recusarem a adorar deuses falsos. Foi o caso, por exemplo, dos três jovens lançados à fornalha (cf. Dn 3,56-88), cujo cântico a Igreja não cessa de repetir na Liturgia, quase todos os domingos.
Quando a revelação de Nosso Senhor Jesus Cristo chegou a todos os povos, teve início uma nova época, a dos mártires, e ao menos no Império Romano a maior parte deles morria por este mesmo motivo. Para escapar da perseguição e da morte, bastava jogar um punhado de incenso num braseiro em hora a uma divindade qualquer.
Os bons cristãos, porém, se negavam a isso, e os que cediam não podiam sequer ser readmitidos à comunidade dos fiéis. Eram os lapsi, isto é, os caídos. Mais tarde, a Igreja passou a aceitá-los de volta, mas não sem lhes impor antes uma penitência pública e severa.
Hoje, a disciplina eclesiástica é evidentemente mais branda, mas nem por isso a idolatria deixou de ser o que é: um pecado gravíssimo. O atual Catecismo da Igreja Católica consagra ao tema três pesados parágrafos, dos quais destacamos o seguinte (n. 2112s):
O primeiro mandamento condena o politeísmo. Exige do homem que não acredite em outros deuses além de Deus, que não venere outras divindades além da única. A Sagrada Escritura está constantemente a lembrar esta rejeição dos ídolos, ouro e prata, obra das mãos do homem, que “têm boca e não falam, têm olhos e não vêem…”. Estes ídolos vãos tornam vão o homem: “sejam como eles os que os fazem e quantos põem neles a sua confiança” (Sl 115,4s.8). Deus, pelo contrário, é o “Deus vivo” (Js 3,10), que faz viver e intervém na história.
[…] Muitos mártires foram mortos por não adorarem a Besta, recusando-se mesmo a simularem-lhe o culto. A idolatria recusa o senhorio único de Deus; é, pois, incompatível com a comunhão divina.
Eis aí o ensinamento constante e ininterrupto da Igreja em matéria de capital importância e que — convenhamos — não parece suscetível de mudanças com o decorrer do tempo. Nossa época orgulha-se de ser aberta à diversidade religiosa, e dentro da própria Igreja ouve-se muito falatório sobre “inculturação”. Mas isso não dá licença para fazer “o que der na telha”.
É verdade que os pregadores, ao evangelizar especialmente povos mais rústicos, que nunca tiveram contato com a verdade de Cristo, precisam decidir a todo momento quais são os meios e os instrumentos mais convenientes a esse fim. Os religiosos que vieram evangelizar o Brasil, por exemplo, tiveram de aprender línguas indígenas, e em muitas terras de missão a Santa Sé chegou a autorizar o uso do vernáculo na própria liturgia da Missa (num tempo em que, lembremos, toda ela era rezada em latim).
Seja como for, há limites muito bem definidos para a atuação de quem ensina, e certas linhas não podem ser cruzadas. Seria concebível, por exemplo, que um São José de Anchieta ou um Padre Manuel da Nóbrega, na ânsia de “agradar” os indígenas, depositassem sobre o altar em que rezavam a Santa Missa amuletos ou estátuas de ídolos pagãos? Ou que uma cruz, na qual está pregado o Deus verdadeiro, pudesse ser ladeado num oratório por um “panteão” de falsos deuses?
As perguntas podem soar absurdas, mas teria sido justamente esta a proposta do imperador bizantino Fócio, ao doar o Panteão a Bonifácio IV, no longínquo século VII, para ser transformado em igreja. É o que revela uma visão da Beata Anna Catarina Emmerich em 13 de maio de 1820:
Tive então uma visão maravilhosa. Subitamente, Roma se me aparecia como nas eras antigas, e um Papa (Bonifácio IV) e um imperador cujo nome eu desconhecia (Fócio). Não conseguia me localizar na cidade, tudo era muito diferente, até as cerimônias sagradas; mas ainda assim as reconheci como católicas.
Vi um enorme edifício arredondado semelhante a uma cúpula — era um templo pagão cheio de belos ídolos. Não tinha janelas, mas no domo havia uma abertura com um dispositivo para impedir a entrada da chuva. Parecia que todos os ídolos que sempre existiram foram reunidos lá em todas as posições imagináveis. Muitos deles eram muito belos; e outros, excessivamente estranhos. Havia inclusive alguns gansos que recebiam honrarias divinas. No centro da construção havia uma pirâmide muito alta, formada inteiramente por aquelas imagens. Não vi culto idolátrico no período do qual falo, embora os ídolos ainda fossem cuidadosamente preservados.
Vi mensageiros do Papa Bonifácio indo até o imperador para solicitar que o templo fosse transformado numa igreja cristã. Escutei o imperador declarando claramente que o Papa deveria preservar as antigas esculturas, embora pudesse erigir lá dentro a Cruz, que deveria receber as mais elevadas honrarias. Tive a impressão de que esta proposta não foi feita de forma maliciosa, mas com boa intenção. Vi os mensageiros retornando com a resposta e Bonifácio refletindo sobre como poderia conformar-se de alguma forma à vontade do imperador.
Enquanto ele deliberava, vi um bom e piedoso sacerdote em oração diante do crucifixo. Vestia uma túnica longa e branca com uma cauda, e um anjo flutuava ao lado dele. De repente, ele se levantou, foi diretamente até Bonifácio e disse a ele que não deveria aceitar de modo algum a proposta do imperador. Então, mensageiros foram enviados ao imperador, que aceitou que o templo fosse completamente limpo. Depois eu vi o povo dele chegar e levar várias das estátuas para a cidade imperial; mas muitas ainda permaneceram em Roma.
Em seguida, vi a consagração do templo, de cuja cerimônia participaram os santos mártires liderados por Maria. O altar não ficava no centro da construção, mas junto à parede. Vi mais de trinta carroças com relíquias sagradas sendo levadas até a igreja. Muitas delas foram inseridas nas paredes e outras podiam ser vistas em aberturas circulares cobertas com algo semelhante a vidro [i].
Por que trazer esse fato à tona? Porque o dia 13 de maio é aniversário não só das aparições de Nossa Senhora de Fátima, mas da conversão do antigo Panteão romano em templo católico: a atual Basílica de Santa Maria dei Martiri. Foi em 13 de maio de 609, mesma data em que, séculos depois, a mística alemã teria a visão relatada acima. Por ser uma revelação privada, é claro que os católicos somos livres para acreditar nela ou não; mas o fato relatado é em si histórico: ele realmente aconteceu, e vale a pena voltar a ele ainda hoje, por todos os motivos já apresentados.
Segue abaixo um relato mais minucioso da consagração cujo aniversário celebramos:
O Panteão é um monumento à grandeza da Roma antiga (e moderna). Está de pé há mais de dois mil anos, resistindo a terremotos, incêndios e às inundações do Tibre.
O óculo aberto do teto perturba arquitetos e escritores. Por que a cúpula do Panteão não é fechada por uma lâmpada? O feixe de luz que entra por ali parece uma lança a penetrar a escuridão interna. Muitos autores veem nele o símbolo de uma presença divina, que confronta as trevas e vem em socorro dos homens.
Havia um tempo, quando a cidade era pagã, em que se veneravam ali todos os deuses do politeísmo romano. Em 608, o imperador bizantino Fócio o doou ao Papa Bonifácio IV e uma sugestiva cerimônia foi organizada para o consagrar ao Deus cristão.
Em 13 de maio de 609, uma multidão imensa se reuniu em torno do Panteão para assistir ao evento. As crônicas relatam a balbúrdia e os uivos aterrorizantes que se percebiam vindo de dentro: os demônios pagãos tinham consciência do que estava para acontecer. As portas foram escancaradas e o Papa, de frente à entrada, começou a recitar as fórmulas para o exorcismo.
Os gritos dos ídolos cresceram em intensidade e o tumulto aturdia os ouvidos dos que ali estavam. O medo paralisou a multidão e ninguém conseguia ficar de pé assistindo àquele terrível espetáculo.
Somente Bonifácio IV resistiu e, com destemor, ele rezava e consagrava a Cristo o Panteão. Conta-se que os demônios deixaram o antigo templo em desordem e com um grande alarido, fugindo pelo óculo aberto na cúpula ou pela entrada principal.
Quando a cerimônia foi concluída, o Papa dedicou o templo a Nossa Senhora dos Mártires, em memória, talvez, dos tantos cristãos mortos por causa daqueles ídolos imundos.
A cristianização de Roma foi um processo gradual, que comportou a contínua conversão dos antigos locais de culto, dedicados outrora às divindades pagãs.
A renovatio Urbis, isto é, a renovação da cidade, iniciada por São Gregório Magno, foi levada a cabo por seus sucessores e se protraiu até os anos 1500, com o Papa Sisto V.
Foi difícil expulsar as velhas crenças de Roma, e até hoje as histórias populares estão repletas destes ídolos que continuamente tentam entrar de novo na cidade [ii].
Os protestantes costumam dizer que os católicos somos idólatras e adoramos imagens, mas o relato anterior sobre a completa reestruturação do Panteão — postos abaixo os ídolos pagãos, substituídos pelo culto aos mártires —, mostra justamente o contrário. Longe de se acomodar ao politeísmo então reinante no Império, a Igreja foi desde o início uma instituição contracultural.
É uma pena que os protestantes não entendam a pedagogia das imagens e insistam em viver como se o Filho de Deus invisível não tivesse se encarnado e se feito visível. Mas isso em nada diminui o fato de que, em matéria tão crucial, concernente ao primeiro mandamento do Decálogo, estejamos plenamente de acordo: a idolatria é má e, como diz o autor sagrado, omnes dii gentium dæmonia, “todos os deuses dos pagãos são demônios” (Sl 95,5). Seja no relato acima da Beata Anna Catarina Emmerich, seja no registro histórico traduzido logo em seguida, o exorcismo do Panteão o atesta de maneira impressionante.
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