A tradição judaica chama a primeira visão do profeta Ezequiel (cf. 1, 4-27) de merkabah (מרכבה), “carruagem”, apesar de a palavra não aparecer no texto. Os antigos rabinos impunham uma restrição especial ao estudo e à interpretação deste capítulo, de difícil compreensão em qualquer idioma. São Jerônimo tinha consciência disso, como se lê no prólogo de seu comentário ao livro de Ezequiel:

Passo ao profeta Ezequiel, cuja dificuldade é corroborada pela tradição dos hebreus, entre os quais, a menos que se tenha chegado à idade do ministério sacerdotal, isto é, aos trinta anos, não é permitido ler os primeiros [capítulos] do Gênesis, nem o Cântico dos Cânticos, nem o início e o fim deste volume… (ML 25,17A)

Por isso diz o Talmude [babilônico] que um rabino, ao se oferecer certa vez para explicar a passagem a outro, ouviu em resposta: “Não sou velho o suficiente” (Hagigah 13a) [i].

O profeta Ezequiel, de Aleijadinho. A inscrição latina no pergaminho a seu lado começa assim: “Quatro animais em meio às chamas descrevo”.

A tradição cristã, segundo a qual os quatro animais vistos por Ezequiel no meio da “carruagem” são símbolos proféticos dos quatro evangelistas, aparece pela primeira vez em obras de Santo Irineu de Lyon, escritas por volta do final do séc. II.

Mas a ordem em que ele os explica difere daquela em que costumam ser relacionados hoje. No tratado Contra Heresias (III 11, 8), seu interesse é demonstrar a existência de apenas quatro Evangelhos autênticos sobre a vida de Cristo, em contraposição aos muitos evangelhos gnósticos que ele busca refutar.

Quer provar ainda que os quatro foram profetizados no Antigo Testamento, por isso explica com as palavras do Sl 79, 2 (“Tu que estás sentado sobre os querubins, manifesta-te”) o querubim de quatro faces visto por Ezequiel no capítulo 10: “O Verbo que é o artífice de todas as coisas, o qual está sentado acima dos querubins e tudo contém, tendo-se revelado aos homens, deu-nos o Evangelho quadriforme, unido [porém] por um único espírito” (MG 7, 885B).

Em seguida, afirma que o leão, símbolo de São João, representa o poder do Verbo na criação e no governo do mundo; o touro, animal do sacrifício sacerdotal, simboliza Lucas, cujo evangelho começa com um sacerdote, Zacarias; o homem simboliza São Mateus, que começa por uma genealogia humana; e a águia simboliza São Marcos, que começa “com espírito profético vindo do alto aos homens […], dizendo: ‘Início do Evangelho de Jesus Cristo. Conforme está escrito no profeta Isaías’ […], por esta razão fez um anúncio tão compendioso como apressado, pois é profético este caráter” (MG 7, 888A).

Santo Agostinho, se bem acolha a explicação simbólica dos animais, propõe uma aplicação “mais congruente” que a de Santo Irineu e outros, mas sem citar nomes. Em Sobre a harmonia dos Evangelhos (I 6, 9), associa o leão, rei dos animais, a São Mateus, que fala claramente da descendência régia de Cristo, pertencente à linhagem de Davi, e nos conta que os reis magos lhe chamaram “rei dos judeus”. O homem é associado a Marcos, “em [cujo evangelho] se mostram as coisas que fez Cristo homem” (ML 34, 1046), e o boi a Lucas, pela mesma razão apresentada por Irineu. Ora, como os três primeiros animais 

andam na terra [i.e., não voam], estes três evangelistas se ocuparam sobretudo das coisas que Cristo fez na carne […]. Ao passo que João sobrevoa como águia as nuvens da debilidade humana, e contempla com os olhos mais agudos e firmes do coração a luz da verdade imutável [i.e., a divindade de Cristo] (ML 34, 1047).

Esse trecho se refere à crença, comum no mundo antigo, de que as águias seriam capazes de olhar diretamente para o Sol.

É a São Jerônimo que devemos a consolidação da tradição, tal como a preservamos até hoje, de que o homem, o leão, o touro e a águia simbolizam respectivamente Mateus, Marcos, Lucas e João [ii]. No prólogo de seu comentário ao Evangelho de São Mateus, ele escreve:

Que estes quatro Evangelhos tenham sido pronunciados desde muito antes, também o livro de Ezequiel o prova, no qual a primeira visão é assim descrita: “No meio, aparecia uma semelhança de quatro seres vivos […]. O seu semblante era assim: rosto de homem pela frente, e face de leão à direita, em todos os quatro, face de touro à esquerda, em todos os quatro, e face de águia nos mesmos quatro” (Ez 1, 5.10). O primeiro rosto, de homem, significa Mateus, que começa escrevendo, ao parecer, sobre um [simples] homem: ‘Genealogia de Jesus Cristo, filho de Davi, filho de Abraão’ (Mt 1, 1); a segunda [face], Marcos, em quem se ouve a voz de um leão a rugir no ermo: “Voz do que clama no deserto: ‘Preparai o caminho do Senhor, endireitai as suas veredas’” (Mc 1, 3); a terceira, de touro, prefigura o evangelista Lucas, que começa escrevendo sobre o sacerdote Zacarias; a quarta, o evangelista João, que, tendo tomado penas de águia, e lançando-se às alturas, fala do Verbo de Deus (ML 26, 19BC).

Essa ordem é repetida à risca, e pelas mesmas razões, por São Gregório Magno no início do quarto sermão sobre Ezequiel (cf. Hom. IV 1, in Ez 1, 10: ML 76, 815A). Jerônimo reafirma o significado profético da visão referindo a presença de quatro animais no capítulo 4 do Apocalipse: “Estão cheios de olhos, e não cessam, dia e noite, de dizer: ‘Santo, santo, santo é o Senhor Deus onipotente, o que era, que é e que vem’” (Ap 4, 8).

“A Visão de Ezequiel”, por Rafael.

Os animais na carruagem em Ez 1, assim como o querubim em Ez 10, são descritos “cheios de olhos”. Jerônimo chega a repetir o que já fora dito pela primeira vez por Irineu: “Por tudo isso se vê claramente que se hão de acolher somente os quatro Evangelhos, enquanto os cantos fúnebres dos apócrifos hão de ser cantados mais pelos mortos, [isto é], pelos hereges, do que pelos vivos, [isto é, pelos homens] da Igreja” (In Matth., prol.: ML 26, 20A).

Lê-se parte da visão de Ezequiel (1, 10-14) como Epístola nas Missas de São Mateus e de São Marcos, mas não nas de São Lucas e de São João. (O texto foi removido do Lecionário do rito pós-conciliar.) No Breviário tridentino, Ez 1, 1-12 é lido nas Matinas de São Mateus, de Marcos e de Lucas, e o capítulo 4 do Apocalipse é lido na íntegra na Oitava de São João.

A isso se limita o uso litúrgico de tais passagens nas festas dos Evangelistas. Em seu habitual conservadorismo, o Breviário Romano tem leituras próprias para os Evangelistas nas Matinas, mas usa o ofício comum dos Apóstolos para todo o restante. São João tem um ofício em grande medida próprio, diferentemente dos outros três. Nenhum dos textos musicais próprios (antífonas, hinos, responsórios) do ofício de São João ou do comum dos Apóstolos cita essas passagens.

No entanto, há de fato um ofício próprio dos Evangelistas, mais completo, o qual se encontra nos Breviários das Ordens dominicana, carmelita e premonstratense, e na maioria dos usus medievais [iii]. Possui nove responsórios, todos os quais citam as visões de Ezequiel, embora os dominicanos não as tenham acolhido. Inclui ainda três grandes antífonas para o Magnificat das duas Vésperas e para o Benedictus nas Laudes, que fazem referência explícita à tradição dos quatro animais como símbolos dos evangelistas:

Ao Magnificat das I Vésperas: Ecce ego Joannes vidi ostium apertum in caelo; et ecce sedes posita erat in eo, et in medio sedis et in circuitu ejus quattuor animalia plena oculis ante et retro: et dabant gloriam et honorem et benedictionem sedenti super thronum, viventi in saecula saeculorum. — Eu, João, tive uma visão: uma porta aberta no céu, e no meio dele um trono; no meio do trono e em volta dele, quatro animais cheios de olhos por diante e por detrás: eles davam glória, honra e ação de graças ao que está sentado sobre o trono e que vive pelos séculos dos séculos.

Ao Benedictus: In medio et in circuitu sedis Dei quattuor animalia senas alas habentia, oculis undique plena, non cessant nocte ac die dicere: Sanctus, Sanctus, Sanctus Dominus Deus omnipotens, qui erat et qui est, et qui venturus est. — No meio e em volta do trono de Deus, quatro animais, cada um com seis asas; em volta e por dentro estão cheios de olhos, e não cessam, dia e noite, de dizer: “Santo, santo, santo é o Senhor Deus onipotente, o que era, que é e que vem”.

Ao Magnificat das II Vésperas: Tua sunt haec, Christe, opera, qui sanctos tuos ita glorificas, ut etiam dignitatis gratiam in eis futuram praeire miraculis facias: tu insignes Evangelii praedicatores animalium caelestium admirabili figura praesignasti: his namque caeleste munus collatum gloriosis indiciis es dignatus ostendere: hinc laus, hinc gloria tibi resonet in saecula. — São vossas estas obras, ó Cristo, que de tal modo glorificais os vossos santos, que fazeis a graça de sua futura dignidade ser precedida por milagres. Vós, prenunciando os insignes pregadores do Evangelho, os assinalastes com a admirável figura de animais celestes, pois vos dignastes manifestar por estes gloriosos sinais o múnus celeste que lhes confiastes. A vós o louvor e a glória eternamente.

Notas

  1. Cf. A. W. Streane, A Translation of the Treatise Chagigah from the Babylonian Talmud. Cambridge: Cambridge University Press, 1891, p. 69 (N.T.).
  2. Também Santo Tomás de Aquino acolhe essa tradição, para a qual busca um fundamento “teológico” (cf. Hic est liber II, in fine). No conjunto das Escrituras, os Evangelhos ocupam-se da origem da graça, ou seja, de Cristo. Ora, como em Cristo há duas naturezas, convinha que os Evangelhos falassem, por um lado, de sua divindade, atestada por milagres e mistérios, dos quais se ocupa sobretudo João (águia); e, por outro, de sua humanidade, à qual compete uma tríplice dignidade: régia, em razão da qual Mateus (homem) começa pela genealogia e pela adoração dos magos; profética, ressaltada por Marcos (leão), que começa já pela pregação pública; e sacerdotal, delineada por Lucas (boi), cujo Evangelho começa e termina no Templo (N.T.).
  3. Era princípio bem estabelecido na lei canônica medieval que, em matéria judicial e de sacramentos, os católicos deviam seguir os costumes da Igreja de Roma. No entanto, quando o assunto eram ritos eclesiásticos (divinis officiis), as Igrejas particulares tinham liberdade para conservar as próprias tradições. Assim surgiram os usus (“usos”): costumes litúrgicos especiais que prevaleciam numa diocese particular ou num conjunto de dioceses. Na Inglaterra antes da Reforma Anglicana, por exemplo, havia o Uso Sarum e o Uso de Iorque (N.T.).

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Márcia Andréia
19 Out 2024
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Louvado Seja Deus pelo sim dos sacerdotes que tanto nos ensinam. Muito obrigada pelos seus ensinamentos Padre Paulo Ricardo. Que Deus te abençoe sempre. 

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