Neste ano celebramos o 700.º aniversário da conclusão do maior poema cristão já escrito: A Divina Comédia, de Dante Alighieri.
Não conhecemos a data exata — “ele parou de escrever no dia 11 de março” —, mas de fato sabemos que o poeta florentino terminou a obra em 1320. Dante deu apenas o título de Comédia ao poema. “Divina” é um acréscimo do século XVI.
O sentido de “comédia” não é o do português moderno (algo que tira sarro ou faz rir alto — embora alguns momentos da leitura provoquem um largo sorriso ou façam perder o fôlego). O sentido de comédia da obra é o mesmo que vemos nas comédias de Shakespeare: as personagens sofrem provações, contratempos e sentem angústia antes de serem arrastadas para um final feliz que jamais poderiam ter arquitetado. Os personagens recebem suas recompensas e são tratados com generosa compaixão.
A Comédia inicia com a famosa descrição:
No meio do caminho em nossa vida,
eu me encontrei por uma selva escura
porque a direita via era perdida (Inferno I, 1-3) [1].
Talvez não exista nenhum adulto que não tenha se sentido assim, perdido numa selva escura em alguma época da vida. Essa “selva escura” é ampla o suficiente para nos recordar tantos aspectos diferentes da vida: diversas provações e confusões que afligem, seja em termos pessoais ou quando observamos a situação do mundo ou da Igreja. Notemos também que Dante usa tanto o singular como o plural: “nossa” e “me”. Ele sabe que é uma jornada comum a todos nós.
Em seguida, Dante mostra como a selva na qual estava perdido tinha características de um pesadelo:
Ah, só dizer o que era é cousa dura
esta selva selvagem, aspra e forte,
que de temor renova à mente a agrura!
Tão amarga é, que pouco mais é morte (Inferno I, 4-7).
Felizmente, ele recebeu auxílio de mais uma maneira e fez a jornada pelo inferno e pelo purgatório até o céu. Estas são algumas das coisas que ele descobriu em sua jornada e que podem nos ajudar, se nós também nos sentirmos perdidos numa selva escura e apavorante.
A história que permaneceu de modo mais vívido na memória da minha esposa após a primeira leitura da Comédia na faculdade foi a de Buonconte de Montefeltro [2], salvo da condenação eterna de última hora. Foi um católico que adiara o arrependimento, e recebeu uma facada na garganta numa batalha. Quem o salvou? Maria.
cheguei com fundo golpe pela gola,
fugindo a pé e ensanguentando o plano.
Ali palavra e vista se me evola;
caí ao nome de Maria (Purgatório V, 97-101).
Quando leu essa história, ela não era católica; assim, considerou-a incrível (no sentido literal), tanto pelo poder que atribui à Santíssima Virgem como pelo fato de um único ato de arrependimento poder ser tão eficaz. O demônio, diz Dante, também foi incrédulo em relação a essa demonstração de misericórdia:
É vero e diz aos vivos o que ouvi:
o anjo de Deus tomou-me e o do inferno
bradava: “Ó tu do céu, tiras-mo aqui?
Levas contigo deste o que é eterno
por uma lagrimeta que mo tolhe” (Purgatório V, 103–107)
“Diz aos vivos o que ouvi.” Talvez tenhamos de anunciá-lo primeiro a nós? Como nos recorda a oração Memorare: nunca se ouviu dizer que algum daqueles que tenha recorrido à proteção de Maria tenha sido desamparado por ela. Mesmo nas situações mais extremas. Tal é poder de Maria, tal é o poder da misericórdia. “‘Uma lagrimeta tem por resposta um oceano de misericórdia” [3].
A segunda pessoa a ser destacada é Sápia, membro da nobreza de Siena. Ela está no terraço do purgatório para os invejosos, onde todos têm os olhos costurados.
A paz quis ter com Deus já sobre o extremo
de minha vida; e ainda não seria
menor dever que em penitência gemo,
se não fosse a memória em que me havia
Pier Pettinaio em santas orações
que por mim caridade então pedia (Purgatório XIII, 124-129).
Pier Pettinaio, que teria sido o “equivalente social de um imigrante camelô” [4], rezou por essa nobre rica e arrogante! E as orações dele a levaram a uma altura considerável da montanha do purgatório, reduzindo-lhe consideravelmente o tempo de purificação. Aqui vemos a unidade do Corpo Místico em ação — particularmente, a conexão entre a Igreja militante e a Igreja padecente.
Mas esse é apenas um exemplo dessa unidade e do poder dos fiéis para fazer com que o Corpo Místico inteiro cresça em caridade. No Paraíso, Dante encontra algumas almas no segundo céu, que, resplandecendo em glória, o enxergam e dizem umas às outras com grande entusiasmo: “Eis quem fará crescer nossos amores” (Paraíso V, 105). Nosso amor mútuo e a Deus cresce à medida que ajudamos uns aos outros.
Com que frequência refletimos sobre esse fato? Já refletimos sobre ele? Como ele mudaria nossa vida diária se nos lembrássemos dele! Nossos pequenos e grandes sacrifícios, nossos atos de amor, o “oferecimento” de nossos problemas e tarefas realmente fazem a diferença no mundo e na Igreja. Como Dante, não precisamos estar numa jornada no céu; isso também se aplica a nós porque estamos — assim se espera — numa jornada para o céu. “Ninguéns” e “nadas” também podem fazer a diferença.
No Paraíso, a história de Piccarda, aspirante a freira que está no céu da lua, é citada com frequência, ou antes sua conhecida fala, que talvez seja a mais citada do poema. Ao responder à pergunta de Dante sobre o motivo pelo qual os que estão nos céus inferiores não sentem inveja dos que possuem mais glória nos níveis superiores, Piccarda diz: “Na sua vontade é nossa paz” (Paraíso III, 85). Uma verdade profundamente consoladora. É necessário ter humildade, desapego adequado e confiança para alcançar essa paz.
Minha esposa compartilhou comigo uma conversa que teve certa tarde com um monge beneditino de Núrsia (conversa da qual ela jamais se esqueceu). Ela lhe perguntara como conseguia permanecer tranquilo em meio ao movimento causado pela recepção de convidados e turistas em sua loja. Ele respondeu: “Paz… é a vontade de Deus neste exato momento.”
Como podemos associar essas três lições de Dante à situação atual?
Primeiro, voltemo-nos para Maria — sempre.
Segundo, rezemos pelos mortos e pelos moribundos. Uma simples oração pode fazer toda a diferença para alguém, e só saberemos isso quando (se Deus quiser) chegarmos ao céu e encontrarmos nosso irmão ou irmã, que nos agradecerá por toda a eternidade, assim como seremos gratos a tantas outras pessoas.
Terceiro, confiemos na vontade de Deus, que não se surpreende com o que está acontecendo. Ele tem ciência da situação e a deseja ou permite, porque dela advirá algum bem para aqueles que o amam. Como São Pio de Pietrelcina costumava dizer: “Não tenham medo de Deus, porque Ele não quer lhes fazer mal algum. Amem-no bastante, porque Ele deseja lhes fazer um bem enorme” [5].
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