[Este texto é de autoria do Mons. Charles Pope. Em sua tradução para a língua portuguesa, foi levemente adaptado, aqui e ali.]

Quando lemos os relatos da Ressurreição no Novo Testamento, temos o desafio de colocar as cenas juntas, de forma que a sequência dos eventos se desenvolva em ordem lógica. Isso se deve a que nenhum Evangelho apresenta todas ou mesmo a maioria das informações. Alguns dados também parecem conflitantes. Mas esses conflitos são, em geral, apenas aparentes, e não conflitos de fato. Outra dificuldade em pôr os fatos lado a lado de maneira coerente é que a sucessão deles não fica clara em alguns relatos. Lucas e João são os mais precisos quanto ao tempo dos eventos descritos, enquanto Mateus e Marcos fornecem poucos parâmetros. Tanto os Atos dos Apóstolos quanto Paulo também oferecem relatos em que a sucessão dos acontecimentos nem sempre fica clara.

Pintura no interior de Saint-Joseph-des-Carmes, igreja parisiense.

Apesar disso, quero propor uma possível e, ouso afirmar, até mesmo provável sequência dos acontecimentos da Ressurreição. O trabalho é meu e não afirmo que o cenário seja certo ou se apóie em alguma autoridade antiga reconhecida [1].

Minha proposta é simplesmente o resultado de mais de 31 anos de oração e meditação sobre os eventos sucedidos nos quarenta dias entre a Ressurreição do Senhor e sua Ascensão. Minhas reflexões baseiam-se o mais solidamente possível na Bíblia, com uma pitada de especulação.

Compreendo que minha proposta irá irritar alguns estudiosos bíblicos modernos que parecem insistir em que seria errado tentar qualquer síntese dos textos, já que os próprios autores não pretenderam fazer uma.

Mesmo assim, prossigo com minha ousadia, na esperança de que o fiel se beneficie com isso e ache a síntese interessante. Considere-a pelo que ela é: a obra de um pastor desconhecido que rezou e procurou seguir com cuidado a sequência dos quarenta dias.

I. A manhã do primeiro dia

  1. Bem cedo pela manhã, um grupo de mulheres, incluindo Maria Madalena, aproxima-se do túmulo para concluir os costumes funerários em honra a Jesus (cf. Mt 28, 1; Mc 16, 1; Jo 20, 1).
  2. Elas veem o sepulcro aberto e ficam alarmadas.
  3. Maria Madalena corre para contar a Pedro e João a notícia sobre prováveis ladrões de túmulo (cf. Jo 20, 2).
  4. As mulheres que permanecem no túmulo encontram um anjo, que lhes declara que Jesus ressuscitou e que elas devem contar isso aos irmãos (cf. Mc 16, 5; Lc 24, 4; Mt 28, 5).
  5. A princípio, as mulheres ficam assustadas e saem da tumba com medo de falar (cf. Mc 16, 8).
  6. Recuperada a coragem, elas decidem ir até os Apóstolos (cf. Lc 24, 9; Mt 28, 8).
  7. Enquanto isso, Pedro e João vão ao túmulo para averiguar a alegação de Maria Madalena. Esta, que segue atrás deles, chega de volta ao túmulo, enquanto Pedro e João ainda estão lá. Pedro e João descobrem o túmulo vazio; eles não encontram nenhum anjo. João acredita na ressurreição. Não sabemos a que conclusão chegou Pedro.
  8. As outras mulheres relatam aos demais Apóstolos o que o anjo na tumba lhes tinha dito. Pedro e João ainda não voltaram do túmulo, e os outros Apóstolos, a princípio, desprezam a história das mulheres (cf. Lc 24, 9-11).
  9. Maria Madalena, demorando-se no túmulo, chora e tem medo. Ao olhar para dentro da tumba, vê dois anjos que lhe perguntam o motivo do choro. Jesus então se aproxima dela por trás. Sem olhar diretamente para Jesus, ela supõe que seja o jardineiro. Quando Ele a chama pelo nome, Maria reconhece-lhe a voz, vira-se e o vê. Cheia de alegria, ela tenta abraçá-lo. É a 1.ª aparição (cf. Jo 20, 16).
  10. Jesus envia Maria de volta aos Apóstolos com a notícia, a fim de prepará-los para seu aparecimento mais tarde naquele dia (cf. Jo 20, 17).
  11. As outras mulheres deixaram os Apóstolos e estão a caminho, possivelmente de volta para casa. Jesus lhes aparece (cf. Mt 28, 9) (depois de ter despedido Maria Madalena). Ele também as envia de volta aos Apóstolos com a notícia de que Ele ressuscitara e os verá em breve. É a 2.ª aparição.

II. A tarde e a noite do primeiro dia

  1. Mais tarde naquele dia, dois discípulos a caminho de Emaús refletem sobre os rumores da Ressurreição de Jesus. Cristo então vem por trás deles, mas eles não conseguem reconhecê-lo. Primeiro, Jesus explica-lhes as Escrituras; em seguida, senta-se à mesa com eles e celebra a Eucaristia [2], que é quando seus olhos se abrem e eles o reconhecem no partir do pão. É a 3.ª aparição (cf. Lc 24, 13-30).
  2. Os dois discípulos voltam naquela mesma noite a Jerusalém e se dirigem aos Onze. No início, aos Apóstolos não acreditam, assim como não tinham acreditado nas mulheres (cf. Mc 16, 13). No entanto, os discípulos continuam a relatar o que vivenciaram. Em algum momento, Pedro se afasta dos outros (talvez para uma caminhada?). O Senhor aparece a Pedro. É a 4.ª aparição (cf. Lc 24, 34; 1Cor 15, 5). Pedro informa os outros dez, que então acreditam. Assim, os discípulos de Emaús (ainda com os Apóstolos) são agora informados (talvez como uma desculpa) de que, de fato, é verdade que Jesus ressuscitou (cf. Lc 24, 34).
  3. Quase ao mesmo tempo, Jesus aparece naquela pequena reunião dos Apóstolos e dos dois discípulos de Emaús. É a 5.ª aparição. Tomé está ausente, embora o texto lucano diga que a aparição foi para “os onze” (o que, provavelmente, é apenas uma forma abreviada de designar os Apóstolos como grupo). Eles se assustam, mas Jesus os tranquiliza e explica-lhes as Escrituras (cf. Lc 24, 36ss).
  4. Há certo debate quanto ao fato de Ele ter ou não aparecido a eles uma segunda vez naquela noite. Os relatos de João e de Lucas têm descrições significativamente diferentes sobre a aparição naquela primeira noite de domingo. É apenas uma recontagem distinta sobre a mesma aparição ou trata-se de uma aparição totalmente independente? Não é possível dizer com certeza. Mesmo assim, uma vez que as descrições são tão diferentes, podemos chamá-la de 6.ª aparição (Jo 20, 19ss), embora seja provavelmente a mesma 5.ª aparição.

III. Intervalo

  1. Não há nenhum relato bíblico sobre aparições de Jesus a alguém durante a semana seguinte. O próximo relato da ressurreição diz: “Oito dias depois”, ou seja, no domingo seguinte.
  2. Sabemos que os Apóstolos disseram a Tomé que tinham visto o Senhor, mas ele se recusou a acreditar (cf. Jo 20, 24).
  3. Os Apóstolos estavam nervosos porque Jesus não aparecera novamente a cada dia? Não o sabemos; não há relatos sobre o que aconteceu nesse intervalo.

IV. Uma semana depois, no segundo domingo

  • Jesus aparece mais uma vez (é a 7.ª aparição) aos Apóstolos reunidos. Desta vez Tomé está com eles. Nosso Senhor chama Tomé à fé, e naquele momento ele professa que Jesus é seu Senhor e seu Deus (cf. Jo 20, 24-29).

V. Segundo intervalo

  • Os Apóstolos tinham recebido instruções para voltar à Galileia (cf. Mt 28, 10; Mc 16, 7), onde veriam Jesus. Eles passaram parte desse intervalo viajando 60 milhas para o norte, viagem que teria levado um tempo considerável. Podemos imaginá-los em viagem para o norte durante esses dias intermediários.

VI. Algum tempo depois

  1. O prazo da próxima aparição é um tanto vago. João diz apenas: “depois disso”. Provavelmente, é uma questão de dias ou de uma semana, na melhor das hipóteses. A cena se passa no mar da Galileia; nem todos estão presentes. Alguns Apóstolos foram pescar, e Jesus os chama da beira do lago. Eles voltam à praia e o veem (é a 8.ª aparição). Pedro tem um diálogo comovente com Jesus e é encarregado de cuidar do rebanho de Cristo (cf. Jo 21).
  2. A aparição aos 500. — De todas as aparições, pode-se pensar que esta teria sido a registrada com mais detalhes, já que foi testemunhada por um grande número de pessoas. Sobre isso, parece que muitos relatos teriam existido e que pelo menos um deles deveria ter entrado nas Escrituras. No entanto, a única coisa que se diz é que ela de fato aconteceu. Paulo a menciona em 1Cor 15, 6: “Depois apareceu a mais de quinhentos irmãos de uma vez, dos quais a maior parte ainda vive (e alguns já são mortos).” É a 9.ª aparição. Onde isso aconteceu? Como foi? Qual foi a reação? Nós simplesmente não o sabemos. Isso prova mais uma vez que a Bíblia não é um livro de história no sentido convencional. Em vez disso, é um relato altamente seletivo do que aconteceu, não um relato completo. A Bíblia não afirma ser algo que ela não é. E está claro que ela é em um livro seletivo (cf. Jo 20, 30: “Fez Jesus, na presença dos seus discípulos, ainda muitos outros milagres que não estão escritos neste livro”).
  3. A aparição a Tiago. — Aqui, novamente, não temos uma descrição da aparição, mas apenas uma observação de Paulo, que diz que ela de fato aconteceu: “Depois, Ele apareceu a Tiago” (1Cor 15, 7). É a 10.ª aparição. O tempo dessa aparição não fica claro. Sabemos apenas que ela aconteceu depois da aparição aos 500 e antes da aparição final aos Apóstolos.

VII. Os outros quarenta dias

  1. Jesus certamente fez outras aparições aos discípulos. Lucas o atesta nos Atos dos Apóstolos quando escreve: “A eles se manifestou vivo depois de sua Paixão, com muitas provas, aparecendo-lhes durante quarenta dias e falando das coisas do Reino de Deus” (At 1, 3).
  2. Nesse período, talvez haja uma aparição que possamos atribuir especificamente a este tempo, como registrado por Mateus (cf. 28, 16ss) e Marcos (cf. 16, 14ss). Ela aconteceu no “topo de uma montanha na Galileia”. Marcos acrescenta que eles estavam reclinados à mesa. Refiro-me a esta aparição (período de tempo incerto) como a 11.ª aparição. É aqui que Jesus lhes dá a grande missão de evangelizar. Embora o texto de Marcos pareça indicar que Jesus foi elevado aos céus desta montanha, a conclusão é precipitada, pois Marcos só indica que Jesus ascendeu apenas “depois de ter falado com eles” (Mc 16, 19) [3].
  3. Evidentemente, Jesus também os convocou de volta a Jerusalém, pelo menos ao cabo do período de quarenta dias. Lá eles estariam presentes para a festa de Pentecostes. Podemos imaginar aparições frequentes com instrução contínua, pois Lucas registra que Jesus “ficou com eles”. A maioria dessas aparições e discursos não está registrada. Lucas escreve nos Atos dos Apóstolos: “E comendo com eles, ordenou-lhes que não se afastassem de Jerusalém, mas que esperassem aí o cumprimento da promessa de seu Pai, ‘que ouvis­tes’ — disse Ele — ‘da minha boca; porque João batizou na água, mas vós sereis batizados no Espírito Santo daqui a poucos dias’” (At 1, 4).

VIII. A aparição final e Ascensão

  • Após quarenta dias de aparições e instruções, temos um relato final da última aparição (a 12.ª) em que Ele os conduz a um lugar perto de Betânia e lhes dá as instruções finais para esperar em Jerusalém até que o Espírito Santo seja enviado. Ele então é levado ao céu à vista deles (Lc 24, 50-53; At 1, 1-11).

Eis aqui uma cronologia possível e, se posso dizer, provável das aparições do Ressuscitado. É uma síntese que tenta coligir todas as informações e apresentá-las em sequência lógica. Há limites para o que podemos esperar dos relatos das Escrituras. Encaixá-las perfeitamente numa sequência lógica não é o que os textos se propõem a fazer. Mesmo assim, essa sequência cronológica pode ser útil e é com esse espírito que a apresento.

Notas

  1. S. Agostinho dedicou-se bastante a este assunto em sua obra De consensu evangelistarum (“Sobre a concordância dos evangelistas”, cujos quatro volumes podem ser lidos na íntegra aqui, em língua espanhola). (Observação feita pelo autor no corpo do texto e deslocada como nota para esta publicação. As notas a seguir são todas de nossa equipe.)
  2. Esta posição é discutível. Não se sabe se a “fração do pão” de que fala S. Lucas é a Eucaristia ou apenas uma refeição normal à maneira judaica. A última hipótese é bastante provável, já que as Escrituras, por um lado, não referem nenhuma Eucaristia celebrada por Cristo além da Última Ceia nem é verossímil, por outro, que o Ressuscitado: (i) tenha realizado a transubstanciação diante de discípulos tão abatidos e (ii), talvez, ainda não suficientemente instruídos sobre o mistério eucarístico, (iii) antes mesmo de reconfirmar a fé dos Apóstolos, os primeiros encarregados de dispensar os sacramentos da Nova Lei. Além disso, o Evangelho deixa claro que, tão-logo foi reconhecido na fração do pão, Cristo desapareceu. Os dois então saíram dali às pressas, talvez — o texto permite supô-lo — sem nem comer do pão partido, o que, se se tratasse da Eucaristia, atentaria contra a dignidade do sacramento e a integridade da celebração.
  3. Neste ponto, o autor parece estar de acordo com bons intérpretes. S. Lucas deixa claro que Cristo ascendeu aos céus no Horto das Oliveiras (cf. 24, 50); portanto, na Judeia. A aparição num monte na Galileia é anterior ao retorno dos Apóstolos a Jerusalém, onde permanecerão até Pentecostes. Eutímio interpreta assim esse trecho de S. Marcos: “Depois de ter falado com eles”, ou seja, “não só estas, mas também todas as palavras de quantas lhes disse desde o dia de sua ressurreição até se completarem os quarentas dias em que aparecia aos discípulos e convivia com eles.” João de Maldonado, SJ, diz abertamente que à aparição no monte galilaico não se seguiu de imediato a Ascensão do Senhor.

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