A Igreja comemora hoje a festa da Transfiguração de Nosso Senhor. Dos evangelistas, é São Mateus que relata com mais detalhes esse fato admirável da vida de Cristo. Também os Santos Padres ocupam-se muito do mistério da Transfiguração, principalmente São João Crisóstomo, que escreveu coisas admiráveis sobre o assunto. O que segue são pensamentos deste santo, conforme ele os propõe aos ouvintes, explicando o Evangelho de hoje.
Nosso Senhor, tendo falado muitas vezes de sua Paixão e Morte, profetizara aos Apóstolos uma perseguição e morte cruel; tendo-lhes dado mandamentos positivos e severos, quis mostrar-lhes a glória e magnificência com que voltará no fim do mundo; quis provar e revelar-lhes, já nesta vida, sua majestade, para os animar e confortar nas tristezas presentes e futuras.
São Mateus escreve, contando o fato da Transfiguração: “Seis dias depois, tomou Jesus consigo Pedro, Tiago e João” (Mt 17, 1). Outro evangelista fala “oito dias depois”. Não há contradição entre os dois, pois este conta o dia em que Jesus discursou perante os Apóstolos e o dia em que subiu ao Monte Tabor, enquanto Mateus conta apenas os dias entre os dois fatos. Reparemos também a modéstia de São Mateus, que menciona os Apóstolos honrados por Nosso Senhor mais do que ele. Nesse ponto segue o exemplo de João, que relata minuciosamente os elogios com que Jesus distinguiu a Pedro.
Jesus tomou consigo os chefes dos Apóstolos, levou-os a um monte, a sós, e transfigurou-se diante deles. Seu rosto resplandeceu como o sol e suas vestes ficaram brancas como a neve.
Por que motivo Nosso Senhor levou somente estes três Apóstolos? Porque ocupavam um lugar de destaque entre os demais. Pedro salientava-se pelo amor a Jesus; João era o mais querido de Nosso Senhor; e Tiago, por causa da resposta que juntamente com o irmão dera ao divino Mestre: “Nós beberemos o cálice” (Mt 20, 22). E não só por causa desta resposta, como também em virtude de suas obras, que comprovaram a verdade daquela asserção. De fato, tão odiado era ele pelos judeus, que Herodes, para agradá-los, mandou matá-lo.
Por que razão Nosso Senhor disse aos Apóstolos: “Em verdade vos digo que entre aqueles que estão aqui presentes, há alguns que não morrerão, antes que vejam vir o Filho do homem com o seu reino” (Mt 16, 28)? Com certeza para estimular neles a curiosidade de ter aquela visão e enchê-los do desejo de ver o Mestre rodeado de glória divina.
“Eis que lhes apareceram Moisés e Elias, falando com ele” (Mt 17, 3). Por que apareceram essas figuras do Antigo Testamento? Diversos motivos explicam esta circunstância.
Primeiro, como o povo dizia que Jesus era Elias, Jeremias ou um dos profetas do Antigo Testamento, ficaria patente a eles a grande diferença entre o servo e o Senhor; e o quão merecido fora o elogio que coube a São Pedro, por ter chamado Nosso Senhor de Filho de Deus.
Segundo, repetidas vezes os inimigos de Nosso Senhor o acusaram de blasfêmia, por sua pretensão de dizer-se Filho de Deus. “Este homem, que não guarda o sábado, não é de Deus” (Jo 9, 16). E mais: “Não é por causa de nenhuma obra boa que te apedrejamos, mas pela blasfêmia, e porque sendo homem, te fazes Deus” (Jo 10, 33). Como eram frequentes estas acusações, vindas da inveja de seus inimigos, Jesus quis mostrar que, dizendo-se Filho de Deus, não transgredia a Lei nem proferia blasfêmia alguma. Para este fim, fez aparecer os dois profetas de maior destaque. De Moisés era a Lei, e era inadmissível que justo ele, com sua presença, respaldasse um transgressor da mesma. Elias, por sua vez, era o grande defensor da honra de Deus, e nunca teria honrado Jesus Cristo com sua presença, se este de fato não fosse o Filho de Deus.
Terceiro motivo: a aparição de um profeta que morreu e de outro que não sofreu a morte devia fazer os discípulos compreenderem que seu Mestre é o Senhor da vida e da morte, e que seu reino está no Céu e na terra.
O próprio evangelista menciona um quarto motivo: mostrar a glória da Cruz e animar os pobres Apóstolos na triste iminência de seus sofrimentos. Os dois profetas falaram da glória que seria manifestada na Cruz em Jerusalém, isto é, da sua Paixão e Morte (cf. Lc 9, 31).
Se Nosso Senhor levou consigo esses três Apóstolos, foi também porque iria exigir deles uma virtude mais apurada que dos outros. “Se alguém me quer seguir, tome a sua cruz, e siga-me” (Mc 8, 34). Os dois profetas do Antigo Testamento eram homens que, pela lei de Deus e pelo bem do povo, estavam sempre prontos a renunciar à própria vida. Ambos, Elias e Moisés, usaram da máxima franqueza na presença de tiranos, este diante do Faraó, aquele diante de Acab; ambos se empenharam em favor de homens rudes e ingratos, ambos foram quase vítimas da malícia daqueles a quem mais benefícios dispensaram; ambos trabalharam para exterminar a idolatria entre o povo.
Tanto um como o outro eram imperfeitos: Moisés era gago e Elias, ignorante. Ambos viveram num tempo em que os grandes servidores de Deus não possuíam o dom de fazer grandes milagres. É verdade que Moisés dividiu as águas do mar; Pedro, porém, andou sobre as ondas, expulsou maus espíritos, curou muitos doentes e transformou a face da terra. É verdade que Elias ressuscitou um morto; os Apóstolos, porém, chamaram muitos mortos à vida, no tempo em que não tinham ainda recebido o Espírito Santo.
Jesus Cristo faz aparecer estes dois Profetas, para os apresentar aos discípulos como modelos de firmeza e constância; como Moisés, eles deviam ser mansos e humildes; como Elias, zelosos e incansáveis; como ambos, prudentes e circunspectos. Elias passou fome durante três anos, por amor ao povo. Moisés disse a Deus: “Este povo cometeu um grandíssimo pecado! (...) Perdoa-lhe, porém, esta culpa, ou, se não o não fazes, risca-me do teu livro que escreveste” (Ex 32, 31-33). Ao mostrar-lhes a glória de Elias e Moisés, Jesus queria inculcar tudo isso nos Apóstolos.
Ao mesmo tempo que propõe os dois como modelos, porém, imitá-los ainda não é o ideal querido por Jesus Cristo nos seus Apóstolos. Quando estes disseram: “Senhor, queres tu que digamos que desça fogo do céu, que os consuma?” (Lc 9, 54), sem dúvida assim falaram lembrando-se de Elias, que procedeu desta forma. Jesus, porém, respondeu-lhes: “Vós não sabeis de que espírito sois” (Lc 9, 55). Queria assim lhes ensinar que é melhor sofrer uma injustiça, quando se tem em vista graças maiores.
Isto não quer dizer que Elias não fosse santo e perfeito. Ele vivera num outro tempo, em que a humanidade, atrasada ainda na cultura, carecia de meios educativos mais fortes. Moisés era santo e perfeito. No entanto, Nosso Senhor disse aos Apóstolos: “Se a vossa justiça não exceder a dos escribas e a dos fariseus, não entrareis no reino dos céus” (Mt 5, 20). O campo de ação dos Apóstolos não devia ser somente o Egito, a terra de Moisés, mas o mundo inteiro. Não era o Faraó que deviam contradizer; sua missão era aceitar a luta contra o demônio, o tirano da maldade, vencê-lo e desarmá-lo. E não conseguiriam fazer isso dividindo as águas do mar. A tarefa era, armando-se do ramo de Jessé, dividir as águas furiosas do oceano da impiedade.
Reparemos bem quantas coisas não amedrontaram os Apóstolos: assim como o Mar Vermelho e as hostes do Faraó intimidaram os judeus, também os intimidaram a morte, as privações e mil martírios. Mas Jesus, seu Mestre, levou-os a tal grau de perfeição, que não hesitaram em aceitar tudo. Para torná-los capazes de uma missão tão difícil, apresentou-lhes os dois grandes heróis do Antigo Testamento.
“Senhor, bom é estarmos aqui” (Mt 17, 4), disse São Pedro a Jesus. Ouvindo as referências à Paixão e Morte do querido Mestre, seu coração encheu-se de temor; mas, desta vez, faltando-lhe a coragem de dizer: “Longe de ti sejam essas coisas”, formulou seu receio nestas palavras. O monte onde se achavam, bem longe de Jerusalém, já era, a seu ver, uma garantia; fazendo ainda três tendas para lá morar, dispensava perfeitamente a viagem a Jerusalém e removia o perigo de cair o Mestre nas mãos dos inimigos (cf. Mc 9, 5). “Bom é estarmos aqui”, com Elias que chamou fogo sobre a montanha; com Moisés, que falou com Deus no cimo do monte — ninguém sabe que estamos aqui. Quem não descobre nessas palavras a profunda e sincera amizade que São Pedro nutria pelo Mestre? Os evangelistas, referindo-se às palavras de São Pedro, dizem: não sabia o que falava, pois estava muito assustado (cf. Lc 9, 33).
Estando ele ainda a falar, eis que uma nuvem os envolveu. Não era noite, mas dia claro. A luz e o esplendor os assombravam e, atônitos, eles caíram com rosto por terra. Qual foi a atitude de Cristo? Nem Ele, nem Elias, nem Moisés disseram coisa alguma. Mas da nuvem saiu a voz daquele que é eterno, daquele que é a Verdade. Por que da nuvem? Porque Deus sempre fala da nuvem. “Nuvens e escuridão estão ao redor dele” (Sl 96, 2). “O Filho do Homem virá sobre as nuvens do céu” (Mt 24, 30). Saindo a voz da nuvem, não lhes restava dúvida: era a voz de Deus.
E eis que uma voz do meio da nuvem disse: “Este é o meu Filho amado, no qual pus as minhas complacências; ouvi-o” (Mt 3, 17). No Monte Sinai era uma nuvem negra e escura que cobria o monte. No Sinai Deus publicou ameaças contra o povo. Aqui se via uma nuvem branca e lúcida. Pedro havia falado em três tendas. Deus, porém, mostrou uma única tenda, que não era feita pelas mãos dos homens; daí a aparição de uma luz claríssima e a audição de uma voz. Para não deixar dúvida sobre a pessoa em questão, Elias e Moisés desapareceram e a voz disse: “Este é o meu Filho amado”. Se Ele é o Filho amado, é vão o temor de Pedro. Embora já devesse estar convencido da divindade do Mestre, embora não tivesse dúvidas da sua futura ressurreição, a fé de Pedro ainda é vacilante. Ao ouvir agora a confirmação na voz do eterno Pai, deviam desaparecer todos os seus temores, todas as suas dúvidas. Se Ele é o Filho muito amado, o Pai não o abandonará. É seu amado, não só por ser seu Filho, mas também por ser igual a Ele. Nele “pus as minhas complacências”, quer dizer: Ele é o meu agrado, a minha alegria, porque, como Filho, é igual ao Pai, é regido pela mesma vontade, é um com Ele eternamente. Ouvi-o.
Reflexões
Felizes os Apóstolos que foram dignos de ver o divino Mestre com tanta glória e magnificência! Também nós poderemos ver o mesmo Jesus, não como os Apóstolos no Monte Tabor, mas numa glória incomparavelmente maior — naquele dia em que virá com toda a glória e majestade, rodeado dos anjos e santos do Céu.
Todos os homens hão de ver como Ele virá sobre as nuvens. Julgando a todos, dirá aos que estiverem à sua direita: “Vinde, benditos de meu Pai, possuí o reino que vos está preparado desde a criação do mundo, porque tive fome, e destes-me de comer” (Mt 25, 34-35). E a outros dirá: “Está bem, servo bom e fiel, já que foste fiel em poucas coisas, dar-te-ei a intendência de muitas; entra no gozo de teu senhor” (Mt 25, 23). A outros, porém, dirá: “Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, que foi preparado para o demônio e para os seus anjos” (Mt 25, 41). E ainda: “Servo mau e preguiçoso” (Mt 25, 26). E serão entregues aos algozes e, atadas as mãos e os pés, serão atirados às trevas exteriores. Os justos, porém, resplandecerão como o sol ou mais do que ele.
Aquele dia será o horror para os maus. Não serão necessários nem documentos, nem provas, nem testemunhas: o eterno e justo Juiz supre tudo isso. É Ele quem acusa, dá testemunho e emite a sentença. Ele tudo sabe, nada lhe é oculto. Naquele dia não haverá ricos e pobres, fracos e poderosos, protegidos e protetores — serão somente os fatos nus e crus, em toda a sua realidade. Todas as máscaras cairão, e a verdade aparecerá em toda a clareza.
Afastemos de nós as vestes imundas do pecado, armemo-nos com as armas da luz, pratiquemos o bem e a glória de Deus nos revestirá.
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