Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo, segundo Mateus
(Mt 17, 1-9)
Quaresma é tempo de conversão. E a conversão é uma obra salvadora de Deus, maior do que a própria criação do céu e da terra. É isto que nos recorda Santo Agostinho:
"Eu diria que esta obra é maior do que o céu e a terra, e de tudo o que se vê no céu e na terra. De fato, o céu e a terra passarão, enquanto a salvação e a justificação dos predestinados, ou seja, daqueles que ele conheceu anteriormente, permanecem para sempre. No céu e na terra há somente a obra de Deus, enquanto neles se encontra também a imagem de Deus" [1].
Se os homens e os anjos tivessem sido criados sem a graça de Deus, seriam apenas servos. Mas, através do dom da graça, os servos tornam-se amigos de Deus. A criatura é elevada a um nível infinitamente acima de sua própria natureza.
Essa é a parte positiva e mais importante da conversão. Em nós age uma realidade muito mais poderosa do que qualquer tentativa do demônio de afastar-nos de Deus. É importante ter isso em mente antes de refletirmos sobre a realidade da tentação, que é o tema do evangelho deste domingo.
Se não fosse assim, poderia parecer injusto que Deus nos colocasse numa luta espiritual contra seres muito mais poderosos do que nós: os anjos decaídos. Por isto Santo Tomás nos recorda:
"Deve-se dizer que para que a condição da luta não seja desigual, o homem recebe em compensação principalmente o auxílio da graça divina, e em segundo lugar a graça dos anjos" [2].
Assim, o início de nossa vida espiritual é marcada pelas virtudes da humildade e da fé: a humildade de reconhecer nossa impotência e a fé que nos concede uma confiança inabalável no socorro sobrenatural.
A Quaresma é um Kairós, tempo favorável, da graça de Deus e dos anjos. É importante lembramos da ação dos anjos em nossa Quaresma. Pois, se é verdade que nem todas as tentações são ocasionadas pelos demônios, os anjos, ao contrário, SEMPRE agem quando fazemos algo de bom. É novamente Santo Tomás quem explica:
"Deve-se dizer que o homem pode por si mesmo cair em pecado, mas não pode chegar a ter merecimento sem o auxílio divino, a ele proporcionado pela mediação dos anjos. Por isto, os anjos colaboram em tudo o que fazemos de bom, enquanto todos os nossos pecados não procedem da sugestão do demônio" [3].
Esta verdade ensinada pelo Aquinate é tão importante que se encontra no próprio Catecismo da Igreja Católica: "Ad omnia bona nostra cooperantur Angeli – Os Anjos cooperam para todos os nossos bens" (n. 350). A atividade dos anjos em nossas vidas é muito maior do que podemos suspeitar.
Mas, é claro, a Quaresma é também tempo de luta. Deus, em sua misteriosa providência, permite que sejamos tentados pelos demônios. Se ele permite isto, é porque a luta contra a tentação aumenta o nosso amor por ele e, por consequência, a nossa glória no céu.
A Quaresma não é somente tempo de vivermos nossa primeira conversão, deixando os pecados mortais - embora isto já seja um grande passo -; é também um convite para fazermos muito mais: crescermos em nossa santidade. Sendo assim, a luta aguerrida contra os demônios, o mundo e a carne (os três inimigos da alma) converte-se numa oportunidade de aumentarmos e purificarmos nosso amor a Deus.
Fazendo isto estaríamos entrando, para usar a linguagem de Santa Teresa de Jesus, nas segundas moradas de nossa alma: um tempo marcado pela luta ascética da alma que espera de Deus a graça da segunda conversão.
"Que ela [a alma] sempre esteja de sobreaviso para não se deixar vencer; o demônio se afastará depressa se a vir com grande determinação de não voltar às primeiras moradas, preferindo a isso perder a vida, o descanso e tudo o que ele lhe oferece. Que seja viril, e não imite os que se deitavam de bruços para beber, quando iam para o combate (...). Em vez disso, ela deve determinar-se com firmeza: vai pelejar com todos os demônios e não há melhores armas do que as da cruz" [4].
Essa luta recordada por Santa Teresa é a mesma da qual nos fala São Paulo:
"Finalmente, irmãos, fortalecei-vos no Senhor, pelo seu soberano poder. Revesti-vos da armadura de Deus, para que possais resistir às ciladas do demônio. Pois não é contra homens de carne e sangue que temos de lutar, mas contra os principados e potestades, contra os príncipes deste mundo tenebroso, contra as forças espirituais do mal (espalhadas) nos ares. "Tomai, por tanto, a armadura de Deus, para que possais resistir nos dias maus e manter-vos inabaláveis no cumprimento do vosso dever. Ficai alerta, à cintura cingidos com a verdade, o corpo vestido com a couraça da justiça, e os pés calçados de prontidão para anunciar o Evangelho da paz. Sobretudo, embraçai o escudo da fé, com que possais apagar todos os dardos inflamados do Maligno. Tomai, enfim, o capacete da salvação e a espada do Espírito, isto é, a palavra de Deus" [5].
Dos três inimigos de nossa alma, o pior deles é a carne. Novamente Santa Teresa:
"Desapegadas do mundo e dos parentes e encerradas aqui nas condições de que falei, parece que já fizemos tudo e que já não há combate a travar. Ó irmãs minhas, não vos considereis seguras nem abandoneis a vigilância, pois acontecerá convosco o que se passa com quem se deita muito sossegado, por ter fechado muito bem as portas por temor aos ladrões, mas que os deixa dentro da casa. E já sabeis que não há pior ladrão do que o que fica em casa, pois ficamos nós mesmas e, se não tivermos grande cuidado e cada uma, em prol do que há de mais importante, não se empenhar em contrariar a própria vontade, muitas coisas haverá a impedir essa santa liberdade de espírito que permite à alma voar para o seu Criador sem um peso de terra e de chumbo" [6].
Que esta Santa Quaresma seja um combate espiritual frutuoso: "Combate o bom combate da fé. Conquista a vida eterna, para a qual foste chamado" [7].
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