Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus
(Mt 1,16.18-21.24a)
Jacó gerou José, o esposo de Maria, da qual nasceu Jesus, que é chamado o Cristo. A origem de Jesus Cristo foi assim: Maria, sua mãe, estava prometida em casamento a José, e, antes de viverem juntos, ela ficou grávida pela ação do Espírito Santo. José, seu marido, era justo e, não querendo denunciá-la, resolveu abandonar Maria, em segredo. Enquanto José pensava nisso, eis que o anjo do Senhor apareceu-lhe, em sonho, e lhe disse: “José, Filho de Davi, não tenhas medo de receber Maria como tua esposa, porque ela concebeu pela ação do Espírito Santo. Ela dará à luz um filho, e tu lhe darás o nome de Jesus, pois ele vai salvar o seu povo dos seus pecados”. Quando acordou, José fez conforme o anjo do Senhor havia mandado.
COMENTÁRIO EXEGÉTICO
Angústia de José (v. 18s). — V. 18. Ora, a origem (gr. ἡ γένεσις) de Jesus Cristo, com respeito tanto à concepção quanto à natividade, foi assim: Maria, sua mãe, estava prometida em casamento [1] a José e, antes de passarem a conviver, i.e. antes de José conduzir Maria à casa, um ano após a celebração dos esponsais. Alguns interpretam o verbo ‘conviver’ (ou ‘coabitar’, em outras traduções; lt. convenire, gr. συνελϑεῖν) no sentido de ‘fazer uso do matrimônio’ (e.g. Crisóstomo, Ambrósio, Jerônimo, Maldonado etc.).
A primeira interpretação, mais comum e tradicional, é também a mais provável: (a) porque a este verbo se contrapõe, nos vv. 20.24, o verbo ‘receber’ (gr. παραλαβεῖν, lt. accipere), que se diz propriamente do homem ao conduzir a esposa à casa para viver com ela; (b) porque pouco depois, no v. 25, exprime-se o uso do matrimônio pelo eufemismo ‘conhecer’, típico da linguagem bíblica. Tenha-se presente, no entanto, que, mesmo admitida a segunda interpretação, daí não se segue dificuldade alguma para a virgindade perpétua de Maria: ‘Do fato de ser dito “antes de passarem a conviver” [com união carnal] não se segue que depois tenham convivido [sexualmente], senão que a Escritura diz apenas o que não foi feito’ (S. Jerônimo, In Matth. I = Mt 1,18 [ML 26,24B]), sem insinuar que tenha ocorrido mais tarde.
— Ela encontrou-se grávida, i.e. depois de certo tempo, talvez após três meses de permanência em casa de Isabel, ela apareceu (visivelmente) grávida, mas pela ação do Espírito Santo (gr. ἐϰ πνεύματος ἁγίου), i.e. porque concebera por ação e virtude divina. (Com efeito, a ausência de art. definido no texto gr., aqui e no v. 20, indica que a concepção virginal não é obra só da terceira Pessoa, mas de toda a SS. Trindade, cujas operações ad extra são sempre comuns às três.) [2]
O evangelista acrescenta, na mesma cláusula, pela ação do Espírito Santo, para que o leitor nem por um momento suspeite qualquer coisa contra a virgindade de Maria. Alguns intérpretes opinam que este v. devera ler-se conjuntamente com o seguinte a modo de explicação, de forma que o sentido do texto seria: ‘José conheceu que Maria concebera pela virtude do Espírito Santo e, por humildade, a quis despedir’. Essa explicação, contudo, vai de encontro ao dito em seguida: Não tenhas receio de receber Maria, tua esposa; o que nela foi gerado vem do Espírito Santo (v. 20). Segundo tais autores, o que o anjo teria dito, na verdade, foi: ‘Embora tenha ela concebido do Espírito Santo, não tenhas receio de a receber’.
Note-se a propriedade do verbo ‘encontrou-se’ (lt. inventa est, gr. εὑρέϑη), que ressalta, do ângulo de Maria, o caráter miraculoso de sua concepção e evidencia, ao mesmo tempo, a surpresa de José, que não podia encontrar explicação razoável, afastada toda suspeita de adultério, para aquela gravidez.
V. 19. José, seu esposo (gr. ἀνήρ = ‘varão’, porque entre os hebreus o esposo já era considerado marido), sendo justo, i.e. íntegro, fiel observador da lei, não queria habitar com uma esposa grávida de outro ou por outro meio, por ser prática contrária aos preceitos da lei (cf Dt 22,23s); mas, por outra parte, não queria denunciá-la (lt. traducere, gr. δειγματίσαι = ‘difamar’, ‘tornar infame’), i.e. abandoná-la publicamente, seja por delação aos juízes, seja por libelo de repúdio entregue perante eles, pois não podia duvidar de sua inocência: é próprio do justo, com efeito, não fazer juízo temerário de uma situação que não chega a compreender de todo. Então pensou (lt. voluit, gr. ἐβουλήϑη = ‘deliberou consigo mesmo’, ‘considerou’) em despedi-la secretamente, pensando talvez em partir para outra região ou em rescindir, na presença de duas testemunhas, por libelo de repúdio, o contrato esponsalício (cf Dt 24,1, que a antiga tradição rabínica interpretava não só em referência à mulher, mas também à esposa) [3]
Dubium: Teria o bem-aventurado José suspeitado de adultério por parte da Virgem SS.? —1. Afirmam-no muitos escritores (e.g. Ambrósio, Agostinho, Crisóstomo etc.). Mas tal suspeita parece inadmissível, além de ser indigna tanto de José quanto de Maria e de Cristo, por implicar certa injúria à pureza intemerata da Mãe, macular de certo modo a prudência do pai e, com isto, acarretar certa ignomínia para o divino Salvador. Menocchio tentou amenizar, sem sucesso, o rigor dessa opinião, dizendo: ‘Talvez [José] tenha pensado que Maria fora violentada, por isso não tinha culpa daquela gravidez’.
2. Muitíssimos autores preferem outra via, que já a S. Jerônimo parecera mais razoável e adequada: ‘José, sabendo da castidade dela e atônito ante o que sucedera, cobre com silêncio aquilo cujo mistério desconhecia’ (ibid.). S. Tomás o expõe nos seguintes termos (Super Matth. I, l. 4): ‘Segundo Jerônimo . . . [José] não suspeitou de adultério. Sabia, com efeito, da pureza de Maria; lera na Escritura que uma virgem havia de conceber: “Um renovo sairá do tronco de Jessé, e um rebento brotará de suas raízes” (Is 11,1; cf 7,14); sabia também que Maria era descendente de Davi. Logo, era-lhe mais fácil crer que isto se cumprira nela que pensar que ela houvesse fornicado. Julgando-se pois indigno de coabitar com tão grande santidade, quis despedi-la em segredo, como S. Pedro disse: “Retira-te de mim, Senhor, porque sou um homem pecador” (Lc 5,8; cf Mt 8,8)’. — Objeção: Se fosse assim, fora infundado o receio de a denunciar (saberia não haver culpa) e supérflua a revelação do anjo (já teria notícia do mistério).
3. Outra explicação possível para a perplexidade de José funda-se na opinião, bastante comum entre os medievais, segundo a qual Maria e José, embora unidos por verdadeiro matrimônio, fizeram voto de castidade perpétua antes do casamento. É o que parece depreender-se das palavras da Virgem, que, já casada e sob o poder marital de José, pergunta ao anjo: ‘Como se fará isso, pois não conheço homem?’ (Lc 1,34), como se dissesse: ‘Como hei de conceber se, estando casada, me obriguei diante de Deus a não conhecer varão?’ Ora, como José conhecesse a pureza e a integridade de Maria, além de seu propósito de manter-se virgem ao seu lado, vendo aquela gravidez, não pôde senão guardar silêncio, como se estivesse na presença de um mistério para o qual não havia explicação [4].
Revelação do anjo (vv. 20-25). — V. 20. Mas, no que lhe veio esse pensamento (gr. ἐνϑυμηϑέντος, i.e. ao considerar de si para si essas coisas), apareceu-lhe em sonho (ϰατ’ ὄναρ, por sonho, i.e. durante o sono) um anjo do Senhor, que lhe disse: José, Filho de Davi, não tenhas receio de receber, i.e. de trazer para tua casa Maria (como) tua esposa; o que nela foi gerado (gr. γεννηϑέν = ‘concebido’) vem do Espírito Santo, e não de homem.
V. 21. Em seguida, ouve do anjo (que, não sem probabilidade, deve ser o mesmo Gabriel) o que já fora revelado a Maria (cf Lc 1,31ss): Ela dará à luz um filho, e tu lhe porás o nome de Jesus, alusão evidente a Is 7,14: Uma virgem conceberá e dará à luz um filho. — Jesus (Jeshua‘, antes Jehoshua‘, composto de duas palavras: ‘יהוה’, da forma apocopada ‘יה’ = ‘Jahweh’, e ‘שוע’= ‘salvar’, i.e. Jahweh salva), é o mesmo que ‘salvador’; por isso as palavras que vêm em seguida—ele vai salvar o seu povo dos seus pecados—não são mais do que uma explicação do nome.
A José são atribuídos verdadeiros direitos paternos sobre o Filho que nascerá de Maria, pois dar nome é prerrogativa tanto da mãe quanto do pai, como mostram inúmeros exemplos (cf Gn 41,1; 5,29; 21,3 etc.). — O vocábulo ‘povo’ significa, de modo imediato, Israel, a quem Cristo foi enviado primeiro e ao qual, enquanto homem, pertencia; mas, em sentido lato, abarca todo o gênero humano, visto que, pela redenção, todos os homens se tornaram povo de Cristo, que tem direito de conquista sobre todas coisas [5]. Ao mesmo tempo, declara-se a índole espiritual desta libertação, contrária à expectativa comum dos judeus: dos pecados deles (i.e. do povo, por enálage de número), e não tanto da opressão política de nações estrangeiras.
V. 22. Tudo isto que se disse sobre a concepção, a natividade e a imposição do nome de Cristo, aconteceu para que se cumprisse (gr. ἵνα πληρωϑῇ, fosse levado a cabo) o que foi dito pelo Senhor por meio do profeta, que diz: Eis que a virgem etc. — Como (ca. 735-734 a.C.) os reis da Síria e de Israel se tivessem coligado contra Acaz, rei de Judá, a este, por boca de Isaías, prometeu o Senhor a vitória; não só isso: para confirmar o vaticínio, daria qualquer sinal que lhe pedisse o rei. Mas como Acaz, por incredulidade e falsa modéstia, recusasse a oferta, o profeta, por ordem divina, vaticinou o nascimento futuro do Messias de uma virgem, como o maior e mais eficaz milagre de todos (cf Is 7,1-14).
O evangelista cita as palavras do profeta (segundo a LXX): Eis que a virgem (gr. ἡ παρϑένος, com art. definido; hebr. hā-‘almā [הָעַלְמָ֗ה], i.e., aquela virgem determinada, dentre todas eminente) ficará grávida e dará à luz um filho. Em hebr. há dois particípios: concebendo (הָרָה) e parindo (יֹלֶדֶת), que, por se referirem ao sujeito virgem, indicam a permanência da virgindade em ambos os estados, ante partum e in partu. — E lhe porão o nome de Emanuel (hebr. עִמָּ֥נוּ אֵֽל = Deus conosco).
Com esta profecia, de acordo com os católicos e muitos protestantes, são explicitamente anunciados a concepção e o nascimento do Messias de uma virgem; ao mesmo tempo, demonstra-se, como dito, a virgindade de sua Mãe antes do parto e durante o parto: de fato, ela conceberá virgem e ainda virgem dará à luz. Por isso é menos provável a opinião dos que vêem nas palavras do profeta uma referência imediata a alguma moça, à mulher de Isaías ou do próprio Acaz, e apenas mediata e tipológica à Mãe do Messias [6]. — Não há dúvida de que Mt vê na concepção e no nascimento de Jesus o cumprimento da profecia. Ele é verdadeiramente Emanuel porque, ‘ainda que Deus sempre tenha estado com os homens, nunca antes esteve de modo tão manifesto’ (Crisóstomo, Hom. 5 in Matth. = Montfaucon, 87), i.e. em carne visível. — As palavras finais, que significa etc., parecem uma inserção do intérprete grego de Mt.
V. 24s. Quando acordou, José fez conforme o anjo do Senhor tinha mandado e publicamente acolheu Maria como sua esposa; e não teve relações com ela até o dia em que deu à luz…
Dessas palavras, maldosamente entendidas, se serviram Joviniano, Helvídio [7] e outros hereges para negar impudentemente a virgindade de Maria depois do parto. Ora, em Gn 8,7 se diz que o corvo não voltou até que aparecesse a terra seca; em 2Sm 6,23, afirma-se que Micol não teve mais filhos até o dia de sua morte. Acaso teriam os hagiógrafos querido dizer que o corvo, depois que se secaram as águas, voltou à arca, ou que Micol, depois de morto, teve mais filhos?… É evidente, pois, que a cláusula até o dia em que deu à luz não implica que, daquele dia em diante, tiveram relações, mas que Maria engravidou e deu à luz sem ter tido relação carnal.
— O seu filho primogênito (cf infra 2,6s). A palavra ‘πρωτότοϰον’, aqui, provavelmente não é autêntica, já que é omitida em diversos códices e versões. Entretanto, em Lc 2,7 de fato se lê: E deu à luz seu filho primogênito, o que não foi escrito pelo evangelista sem razão, por ser Cristo o primogênito de Deus em sentido particularíssimo (i.e. unigênito por natureza), além de possuir sobre seus irmãos certos direitos e incumbências enquanto Cabeça a que pertencem os membros do Corpo místico, i.e. da Igreja.
Nota sobre a virgindade de Maria. — É de fé divina e católica definida que a bem-aventurada Mãe de Deus Maria santíssima foi e permaneceu sempre e perfeitamente virgem, antes, durante e depois do parto, com virgindade de corpo (integridade física inviolada) e de mente (disposição perpétua de abster-se de toda e qualquer prática venérea, inclusive por simples desejo). Veja-se, e.g., a definição solene do Concílio de Latrão (649 d.C.) cân. 3 (DH 503): “Se alguém não professa… que depois do parto permaneceu inviolada a sua [de Maria] virgindade, seja condenado”, e a declaração de Paulo IV, ao condenar na bula Cum quorumdam hominum (DH 1880), de 1555, a seita dos unitários, que afirmavam que “a beatíssima Virgem Maria não… permaneceu sempre na integridade virginal, i.e., antes do parto, no parto e perpetuamente depois do parto” (ante partum scilicet, in partu et perpetuo post partum). — Uma explicação ao mesmo tempo sucinta e detalhada dessa doutrina encontra-se disponível no programa A Resposta Católica, episódio 266
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