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Christo Nihil Præponere"A nada dar mais valor do que a Cristo"
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Texto do episódio
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Mesmo sendo uma Pessoa divina e gloriosa, Cristo, nosso Senhor, não fugiu da Cruz, e esse é certamente o maior dos seus milagres [1]. 

Eis a conclusão a que chegou o escritor G. K. Chesterton, em sua obra O homem eterno, ao comparar Jesus com um filósofo contemporâneo seu, chamado Apolônio de Tiana, em torno do qual circulavam muitas histórias inverossímeis e até lendárias, como o seu desaparecimento no tribunal de Domiciano:

Quando Apolônio, o filósofo ideal, é trazido diante do tribunal de Domiciano e desaparece num passe de mágica, o milagre é inteiramente fortuito. Isso poderia ter ocorrido em qualquer momento da vida ambulante do tianense; na verdade, acho que isso seja duvidoso tanto em sua data quanto em sua substância. O filósofo ideal simplesmente desapareceu e retomou sua existência ideal em algum outro lugar por um período indefinido [2].

Destacando que a vida de Jesus não foi como a de Apolônio, Chesterton afirma que o maior milagre de Nosso Senhor foi justamente não ter desaparecido diante de Pilatos, mesmo podendo fazê-lo: 

Quando Jesus foi trazido diante do tribunal de Pôncio Pilatos, Ele não desapareceu. Nesse ponto, alcançou-se a crise e a meta; foi a hora e o poder das trevas. Seu ato supremamente sobrenatural, entre todos de sua vida miraculosa, foi que Ele não tenha desaparecido [3].

E Jesus não desapareceu justamente porque nasceu para morrer, de modo que o Calvário não era apenas um momento crítico de sua vida, mas sim a “meta”, a finalidade para a qual Ele veio a este mundo. Nesse sentido, a morte na Cruz não é apenas um entre tantos episódios de sua vida, mas o ápice dela; tanto que a Tradição da Igreja e os exegetas atuais veem os Evangelhos como uma narrativa da Paixão precedida por uma longa introdução que visa compreender o que acontecerá naquelas horas derradeiras.

O Evangelho de São João, por exemplo, dedica 7 de seus 21 capítulos para descrever a Paixão e Morte de Cristo na Cruz, que correspondem a algumas horas de sua vida. Já os evangelhos sinóticos possuem como núcleo a profissão de fé de São Pedro, porque, através dela, revela-se quem é Jesus realmente e para que veio a este mundo.

No Evangelho de São Marcos, por exemplo, logo antes da profissão de Pedro (cf. Mc 8, 29), é narrada a cura de um cego (cf. Mc 8, 22-26), que, sendo realizada em dois estágios, apresenta-se como prefiguração da cegueira do Apóstolo, também curada em dois momentos. Semelhante ao cego que via “os homens como árvores que andam” (Mc 8, 24), Pedro enxerga que Jesus é o Cristo, Filho de Deus; porém, logo em seguida, quando Nosso Senhor revela que deveria morrer, o próprio Pedro se opõe, mostrando que ainda não enxergava plenamente com os olhos da fé, pois, embora compreendesse quem era Jesus, não havia entendido para que Ele viera.

Mais à frente, pouco antes de Jesus entrar em Jerusalém, São Marcos cita a cura de outro cego, agora o de Jericó, que “no mesmo instante, recuperou a vista e foi seguindo Jesus pelo caminho” (Mc 10, 52). Ou seja, esse cego sai das profundezas de Jericó, situada abaixo do nível do mar, em direção à elevada altitude de Jerusalém, onde se cumpriria a missão de Nosso Senhor. Desse modo, o evangelista nos mostra que todos os acontecimentos narrados até então possuem como fim e ápice a crucifixão no Calvário.

O mistério da Paixão e Morte na Cruz está presente inclusive na Transfiguração, pois, conforme o Evangelho de São Lucas, esse era o tema da conversa de Jesus com Moisés e Elias: “E eis que falavam com ele dois personagens: eram Moisés e Elias, que apareceram envoltos em glória, e falavam da morte dele, que se havia de cumprir em Jerusalém” (Lc 9, 30-31).

Ao contemplar a transfiguração do Senhor — acontecimento sobrenatural inigualável na história da salvação, semelhante apenas à visão beatífica no Céu —, São Pedro ficou impressionado com a beleza (καλόν) daquilo que testemunhava: “Senhor, é bom estarmos aqui” (Mt 17, 4). E sugeriu que permanecessem naquele momento de glória: “Se queres, farei aqui três tendas: uma para ti, uma para Moisés e outra para Elias” (Mt 17, 4). Nessas palavras de Pedro, o termo grego ποιήσω (poiēsō), que significa “fazer” ou “confeccionar”, demonstra a tentativa do ser humano de construir um paraíso terrestre, para fugir da Cruz, uma “técnica” (poiēsis) para não precisar sofrer [4].

Nessa atitude de Pedro, vemos uma doença espiritual muito comum em nosso tempo, a acídia, que nos leva a querer somente a glória, a ficar tristes e apáticos diante da cruz, e a buscar um caminho alternativo no qual não haja sofrimento. Tomados pela acídia, desejamos a glória do Tabor e fugimos da dor do Calvário.

Para constatar isso, basta olhar para a situação presente. Temos, hoje, uma cruz bastante pesada, que é, na verdade, constituída por dois aspectos. O primeiro deles é que vivemos sob influência da cultura da morte, enquanto poder educacional materialista contrário à lei natural e à existência da verdade. E o segundo e mais trágico consiste no fato de que a Santa Igreja renunciou ao seu poder educacional, deixando de ensinar a doutrina e a moral católicas. Tal é o nosso calvário: os materialistas e pagãos impõem seus “ensinamentos” com facilidade, ao passo que a Igreja Católica, portadora da Verdade que é Cristo, não faz sua voz ser ouvida.

Essa é a cruz que somos chamados a carregar, embora muitas pessoas tentem “confeccionar” um jeito de não mais sofrer, de fugir das dificuldades e criar um “faz de conta” no qual não existam problemas. 

Nós, cristãos, porém, não devemos buscar artifícios que nos livrem dos sofrimentos. Isso não significa que devamos ser suicidas, intentando obras inalcançáveis. Mas o cumprimento fiel de nosso dever, no estado de vida em que Deus nos colocou, já traz consigo inúmeras dificuldades, que devemos enfrentar com fé e coragem evangélicas. Quando essas provações se nos apresentarem, é importante que nos unamos a Nosso Senhor, sol fulgurante de luz, cujo maior milagre foi esconder sua magnificência por detrás do madeiro da Cruz, pois só Ele pode nos alcançar a vitória sobre as nossas próprias cruzes.

Notas

  1. Não ignoramos que a transfiguração do Senhor constitua um dos milagres mais extraordinários operados por suas mãos. Trata-se de um feito deveras incomparável na história da salvação. Alguns exegetas tentam associá-lo ao rosto iluminado de Moisés, no Antigo Testamento, mas a verdade é que os dois episódios são totalmente desproporcionais. Na Transfiguração, o rosto de Cristo “brilhou como o sol” (Mt 17, 2). Ora, o brilho do sol sobre a retina humana, dependendo da intensidade, pode até cegar; e isso não ocorreu enquanto o povo de Deus olhava para o rosto resplandecente de Moisés (cf. Ex 34, 29-35). Na Transfiguração, além disso, a glória e o esplendor de Jesus são maiores que qualquer uma de suas manifestações na Ressurreição, porque, depois de ressuscitado, embora estivesse em corpo glorioso, Jesus se revelou aos Apóstolos de forma a não lhes causar espanto, sem manifestar totalmente a sua glória. De todo modo, em consonância com o que o próprio Cristo profetiza em Mt 12, 39, sua Paixão, Morte e Ressurreição continuam a ser “o ‘sinal’ por excelência, a prova decisiva do caráter divino da Sua pessoa, da Sua missão e da Sua doutrina” (Bíblia Sagrada anotada pela faculdade de teologia da Universidade de Navarra, v. 1: Os Santos Evangelhos. Braga: Edições Theologica, 1985, p. 258).
  2. G. K. Chesterton, “A história mais esquisita do mundo”. In: O homem eterno. 2. ed. Campinas: Ecclesiae, 2019, p. 268.
  3. Ibidem, p. 268.
  4. Essa tentação do ser humano — de fazer uma “máquina” para não enfrentar os sofrimentos e adversidades desta vida — permeia toda a obra O Senhor dos Anéis, conforme explicado na primeira aula do curso “Tolkien e a Imortalidade”.
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