Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas
(Lc 5,33-39)
Naquele tempo, os fariseus e os mestres da Lei disseram a Jesus: “Os discípulos de João, e também os discípulos dos fariseus, jejuam com frequência e fazem orações. Mas os teus discípulos comem e bebem”. Jesus, porém, lhes disse: “Os convidados de um casamento podem fazer jejum enquanto o noivo está com eles? Dias virão em que o noivo será tirado do meio deles. Então, naqueles dias, eles jejuarão”.
Jesus contou-lhes ainda uma parábola: “Ninguém tira retalho de roupa nova para fazer remendo em roupa velha; senão vai rasgar a roupa nova, e o retalho novo não combinará com a roupa velha. Ninguém põe vinho novo em odres velhos; porque, senão, o vinho novo arrebenta os odres velhos e se derrama; e os odres se perdem. Vinho novo deve ser posto em odres novos. E ninguém, depois de beber vinho velho, deseja vinho novo; porque diz: o velho é melhor”.
I. Reflexão
Celebramos hoje o Papa e Doutor da Igreja — grande até no título — São Gregório I, apelidado de Magno. São Gregório foi Papa durante um período difícil da história da Igreja. O Império Romano caíra no Ocidente sob o poder dos bárbaros. Eram ostrogodos, lombardos etc., que tinham invadido a cidade de Roma e destruído vários monumentos. A cidade, antes esplendorosa, chegou a ter um milhão de habitantes, mas na época de São Gregório não tinha mais do que cem mil e vivia em condições precárias, sem falar das tragédias e catástrofes que vinha sofrendo, como enchentes, pestes, fome, desordem… Eis a Roma da época.
Gregório era de família importante e nobre. Por conta disso, foi incumbido de servir política e administrativamente a cidade. Aos 30 anos, Gregório foi eleito prefeito de Roma, encarregado de administrar muita confusão e dificuldades, o que ele fez sempre com grande caridade. Embora não fosse ainda monge, diácono ou Papa, Gregório já buscava a santidade e era homem de grande virtude. Terminado o tempo de sua administração, Gregório, aos 35 anos de idade, decide deixar tudo para ser monge. Fundou um pequeno mosteiro numa propriedade da família, no Monte Célio, em Roma. A cidade estava quase despovoada. Todos os seus grandes monumentos foram depredados pelos bárbaros: o Circo Máximo, destruído, o Palatino, em ruínas; tudo, enfim, despencado. No entanto, perto dessas mesmas ruínas, Gregório começou uma vida dedicada a Deus, à contemplação das verdades divinas e à meditação das Sagradas Escrituras.
Mas que uma alma se recolha para buscar a santidade não quer dizer que Deus a vá “deixar em paz”. Pelo contrário. Retirado à solidão do mosteiro, livre enfim de funções políticas, Gregório foi convocado pelo Papa então reinante para desempenhar uma importantíssima missão. Roma fora abandonada pelo imperador, que havia tempos residia em Constantinopla, quase do outro lado do mundo. São Gregório, já feito diácono, foi enviado à nova capital do Império como uma espécie de núncio apostólico, cargo conhecido na época como apocrisiário. A missão consistia em trazer à memória do imperador a importância e o estado de Roma, que merecia toda proteção não só pelo que significara na história, mas por ser o ponto de união entre o Oriente e o Ocidente cristãos.
Foi nesse período que Gregório escreveu seu famoso Comentário ao livro de Jó, uma verdadeira enciclopédia de ascética e mística. Nele se vê um monge que era ao mesmo tempo grande pastor de almas e um sábio conselheiro. A partir de uma leitura alegórica e espiritual do livro de Jó, Gregório fala dos vícios e pecados que devemos combater e dos meios que nos podem servir para nos aproximarmos de Deus. Trata-se de uma obra de grande valia, que será comentada, lida e relida, conhecida e reconhecida durante toda a Idade Média. Essa é uma das razões por que ele será proclamado mais tarde Doutor da Igreja.
De volta a Roma, Gregório pretendia desincumbir-se destes encargos de política eclesiástica. Vai senão quando, tendo ele 49 anos, morre-lhe o então pontífice Pelágio II. Quem iria governar a Igreja? A palavra final acabou nas mãos do “senado e do povo romano”, senatus populusque Romanus, que clamou: “Gregório Papa!” Ele, que nunca na vida pensara em ser bispo, muito menos de Roma, “deu no pé”, “fugiu para o mato”, ou seja, retirou-se prontamente a uma fazenda no interior, por achar o sumo pontificado algo muito superior às suas forças e capacidades. Mas o povo precisava de ajuda e foi à caça! Sem poder mais se esconder, Gregório foi trazido quase à força para ser sagrado bispo e coroado papa. Tinha então cerca de 50 anos.
São Gregório Magno exerceu a função de Papa velando não só pela cidade de Roma e a conversão de seu povo, tão martirizado por invasões, doenças, pestes, enchentes do rio Tibre etc., mas também pelos de fora. Por isso deu especial atenção às missões, fazendo de tudo, por exemplo para evangelizar a Espanha e converter os arianos. Também enviou missionários para a Inglaterra, entre os quais estava ninguém menos que o famoso Santo Agostinho de Cantuária.
A vida de São Gregório Magno é, por assim dizer, uma “cartilha” valiosa. Temos problemas? Nossa vida está ruim? Está difícil? Pois bem, façamos o seguinte: ajudemos os outros, olhemos um pouco para fora de nós, sejamos mais missionários. Foi assim que, numa Roma capenga, claudicante, chagada de dificuldades e misérias, ele pôde fazer tanto bem a tantas almas. Fez-se missionário e se dispôs a ajudar não só o próprio povo, mas os outros, enviando-lhes apóstolos que fizessem brilhar em novas terras a fé católica, única luz para as nações. Eis o magnífico exemplo de São Gregório Magno, que certamente, de sua sede celeste, reza por nós e pelas necessidades tão prementes da Igreja nos tempos atuais. Mas se é grande a necessidade, não tenhamos medo: sejamos missionários. Convertamos mais almas. É exatamente nos momentos mais difíceis que Deus nos envia as maiores graças, para que a sua única e verdadeira Igreja seja luz para os povos.
II. Comentário exegético
Argumento. — Trata-se do terceiro conflito com os fariseus, ocasião para o Mestre expor sua doutrina sobre a relação entre o espírito novo e o antigo. A questão aqui não é sobre preceitos da Lei, mas sobre alguns costumes piedosos dos judeus; em particular, o de jejuar certos dias da semana.
1) As circunstâncias de tempo e lugar parecem claramente indicadas por Lc.: durante um banquete em casa de Levi (cf. 5,29); também Mt. escreve: Então foram ter com ele etc. (9,14; cf. v. 10). Mc., no entanto, afirma explicitamente que o episódio ocorreu no dia em que tanto os fariseus quanto os discípulos do Batista jejuavam, o qual dificilmente seria o dia de jejum legal (a saber, a festa da Expiação), mas um dia de jejum por devoção privada; os fariseus, com efeito (e, ao que parece, também os discípulos de João), jejuavam frequentemente (Lc.: πυκνά), sobretudo às 3.as e 5.as-feiras.
2) Exposição do texto (cf. Mt 9,14-17; Mc 2,18-22; Lc 5,34s). — Mt 9,14: Então, os discípulos de João (Mc. acrescenta: e os fariseus; Lc.: os fariseus e os mestres da Lei), dirigindo-se a ele, perguntaram: Por que jejuamos nós e os fariseus, e os teus discípulos não? Perguntam-no os discípulos de João, movidos talvez por certa rivalidade, e alguns fariseus, a) ou porque Cristo não impusera aos próprios discípulos nenhum preceito especial de jejum, como os fariseus e João, b) ou porque, como dito acima, no mesmo dia do banquete (cf. Mt 9,10; Mc 2,15; Lc 5,29), estavam eles de jejum por devoção privada.
A isto responde Cristo com fina sabedoria: agora o jejum seria intempestivo e, além do mais, nocivo, o que ele explica em seguida com quatro belas e elegantes parábolas, rebatendo a questão com outra:
a) Os filhos do esposo (cf. Mt 9,15; Mc 2,19s; Lc 5,34s):
α) Imagem. — Enquanto dura o tempo das bodas, não convém que os convidados jejuem, pois isto seria dar sinais de tristeza (Mt.: πενθεῖν = chorar, lamentar) num momento em que é preciso alegrar-se. Do mesmo modo, é indecoroso que os discípulos, enquanto estão na companhia de Cristo, se macerem de jejuns e obras de penitência. Após a ida dele, será tempo de jejuar e chorar. — A expressão filhos do esposo (em Mc., filhos das bodas, lt. filii nuptiarum; gr., nos três sinóticos, οἱ υἱοὶ τοῦ νυμφῶνος, i.e. filhos do tálamo ou do cubículo nupcial; hebr. benê chuppa), embora designe na Mishna (cf. hier. Sukk. 53a) todos os convidados para as bodas, parece significar aqui certos adolescentes em companhia dos quais o esposo ia ao encontro da noiva, com pompa festiva e alegre. Cabia-lhes manter a alegria durante os sete dias de núpcias. Não devem ser confundidos com os chamados amigos do esposo (hebr. shoshbînîn, gr. παρανυμφίοι) de que se fala em Jo 3,29, que eram apenas dois (ao menos na Judeia) e gozavam de maior familiaridade, mesmo no que dizia respeito apenas ao casal.
β) Sentido espiritual. — A permanência do Verbo encarnado entre os homens é certo tempo de bodas (cf. Sl 44 e Ct, passim), no qual têm os convidados o único dever de desfrutar da presença do Esposo e em tudo lhe fazer a vontade; mas dias virão em que lhes será tirado (ἀπαρθῇ, alusão à morte de Cristo) o esposo, e então eles jejuarão, i.e. terão luto e tristeza pelas tribulações iminentes e pela ausência de Cristo. Como se depreende das palavras dias virão etc., é evidente que a imagem é uma comparação mais alegórica que estrita.
b) Retalho novo em roupa velha (cf. Mt 9,16; Mc 2,21; Lc 5,36):
α) Imagem. — Ninguém põe (gr. ἐπιράπτει = costura, cose) um remendo (gr. ἐπίβλημα, lt. vulg. assumentum; em Mt.: comissuram) de pano novo (ἀγνάφου = pano cru, ou ainda não apisoado) numa veste velha, porque arrancaria uma parte (gr. πλήρωμα, lt. plenitudinem) da veste, ou seja, quando se molhar, irá contrair-se, repuxando as partes circunstantes, e por isso o rasgão ficaria pior que dantes. Mc. o diz com mais clareza: do contrário, o remendo novo leva parte do velho, e torna-se maior o rasgão. A mesma ideia, um pouco modificada, é apresentada por Lc.: Ninguém tira retalho de roupa nova para fazer remendo em roupa velha; senão vai rasgar a roupa nova, e o retalho novo não combinará com a roupa velha. Em Mt. e Mc., portanto, o que sofre prejuízo é a roupa velha, ainda mais rasgada; em Lc., a nova, retalhada sem propósito.
β) Sentido espiritual. — Da questão sobre o jejum Cristo se eleva a um argumento mais amplo e profundo, a saber: ao espírito da Nova Lei, i.e. do Evangelho, na medida em que se opõe, segundo a interpretação dos fariseus, ao rigor e às múltiplas observâncias da Velha. O remendo de pano rude (pannus rudis) é a lei mosaica; a veste nova, a lei evangélica. Seria pois insensato e perigoso misturar uma com a outra ou tentar complementar a segunda com a primeira. As duas são distintas e como tais devem ser tratadas. Não podem, numa palavra, ser combinadas sem detrimento quer do mais (Lc.), quer do menos instruído (Mt.–Mc.). — Observação: A rigor, a lei divina se divide em antiga e nova, não como em espécies coordenadas sob um gênero comum, mas como o imperfeito se distingue do perfeito dentro da mesma espécie, na medida em que, sendo idêntico o fim de ambas, a segunda ordena o homem a tal fim de modo mais eficaz e perfeito do que a primeira (cf. Santo Tomás de Aquino, STh I-II 107,1c.) [1]. Daí dizer São Paulo que a Lei se nos tornou pedagogo encarregado de levar-nos a Cristo, para sermos justificados pela fé (Gl 3,24).
c) Vinho novo em odres velhos (cf. Mt 9,17; Mc 2,22; Lc 5,37s):
α) Imagem. — Não se coloca tampouco vinho novo (não fermentado) em odres velhos; do contrário, por ser o vinho novo mais forte, os odres, já desgastados pelo uso, se rompem, o vinho se derrama e os odres se perdem. Coloca-se, porém, o vinho novo em odres novos etc. — Os palestinos e, de modo geral, os orientais transferiam o vinho do lagar, antes de ter-se completado a fermentação, para cântaros (dolia) de barro ou madeira, ou também, com frequência, para odres de pele de cabra, ovelha e, mais raramente, de asno e camelo. Se o vinho ainda não totalmente fermentado for guardado em odres velhos, i.e. desgastados pelo uso e pela fricção, é evidente que tanto o vinho quanto os odres vão-se perder.
β) Sentido espiritual é o mesmo da parábola precedente: o novo espírito que o Messias veio trazer não há de ser coarctado àquelas formas antigas, não deve nem pode ser aprisionado naquelas leis estreitas que constituíam o jugo e a servidão da Lei. Aqui, no entanto, se mostra com cores mais vivas como é nociva tal mistura não só para os elementos antigos, mas também para o novo espírito; agrega-se positivamente, ademais, a necessidade de uma completa renovação: cumpre pois que sejam novos, além do espírito, também os homens e os costumes.
d) Vinho novo em odres velhos (cf. Lc 5,39):
α) Imagem. — E ninguém, depois de beber vinho velho, deseja vinho novo; porque diz: o velho é melhor, i.e. quem está acostumado ao vinho velho, que é sempre mais suave e agradável, se recusa a beber do novo, que é mais acre e áspero ao paladar.
β) Sentido espiritual. — Alguns aa. pensam que o ponto da comparação está na qualidade, i.e. na bondade do vinho; ora, dado que o vinho velho é melhor do que o novo, concluem que Jesus estaria comparado a austeridade dos fariseus com o vinho novo, e a suavidade de seus modos com o vinho velho. Contudo, essa interpretação é pouco provável, já que atribui o conceito de “velho” à Lei nova, e o de “novo” à velha, o que vai na contramão das parábolas anteriores. — A mais provável parece ser a sentença, comum entre os expositores, que vê o ponto de comparação, não na bondade do vinho, mas no gosto dos que bebem. O vinho velho, portanto, é a Lei velha, e os que estão acostumados a ela, como e.g. os fariseus e alguns discípulos de João, apenas a contragosto aprenderão a saborear a doutrina nova de Cristo. Trata-se, em suma, de certa escusa para a relutância e pertinácia com que muitos judeus se aferravam às tradições dos antigos.
N.B. — 1. Não convém forçar a interpretação destas pequenas parábolas como se fossem alegorias carregadas de simbolismo. Afinal, o objetivo geral delas consiste em pôr em evidência a incompatibilidade entre o espírito novo do Evangelho e as antigas observâncias legais. São duas coisas que não podem ser confundidas nem unidas; os discípulos de Cristo, por conseguinte, não devem buscar ou aferrar-se ao que não é compatível com a doutrina, os princípios, os valores etc. do cristianismo. Perscrutar minuciosamente que sentido teria cada pequeno detalhe das imagens costuma gerar não poucas incoerências. Diga-se pois que Cristo não condena, como tais, os usos antigos nem as práticas penitenciais dos discípulos de João; limita-se a ensinar que se excluem mutuamente o espírito que inspirava as práticas antigas e o espírito verdadeiramente novo que deve inspirar e orientar a vida dos fiéis. — 2. São Paulo desenvolveu essa doutrina em inúmeros lugares, ao exortar a que vivamos uma vida nova (Rm 6,4); a que sirvamos [a Deus] segundo o novo espírito, e não segundo a antiga letra [da lei de Moisés] (Rm 7,6). Cf. 1Cor 5,7; Ef 4,20-24; Col 3,9s; Rm 12,2 etc. E a fundamenta no fato de que, em Cristo…, passaram as coisas velhas (2Cor 5,17); cf. Gl 6,15; Ef 2,15; Rm 8,1.10 etc. — 3. Donde se vê a incoerência com que algumas seitas protestantes, ao mesmo tempo que condenam como contrárias ao espírito evangélico certas práticas católicas plenamente legítimas (e.g. jejum, abstinência, vigílias, orações pré-formuladas e repetitivas, uso de imagens e paramentos litúrgicos etc.), buscam com afã quase judaizante reviver à letra práticas e símbolos do Antigo Testamento. Ora, se negam em bloco a autoridade dos Concílios ecumênicos, não admira que neguem também a do concílio de Jerusalém (cf. At 15,1-34).
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