I. Introdução
Estando às portas do quinquagésimo aniversário do Concílio Vaticano II, queremos dedicar a aula ao vivo desta semana ao problema das chamadas falsas conversões. Dentre as diversas frentes pelas quais se pode encarar o tema da conversão cristã, restringimo-nos hoje a seus aspectos pastorais, pois o convite à fé e o chamado de volta a Deus constituem, em primeiro plano, o núcleo da pregação evangélica e, portanto, a missão básica da Igreja [1]: "Cumpriu-se o tempo e o Reino de Deus está próximo. Arrependei-vos e crede no Evangelho" (Mc 1, 15). Embora forneçam importantes esclarecimentos, deixamos à margem do nosso estudo as questões referentes seja à antropologia teológica, ocupada com os meios por que a Graça divina nos pode converter, seja à psicologia religiosa, que analisa a estrutura e o processo pelo qual somos levados a aderir à fé, seja ainda à missiologia, que, enquanto ramo da Teologia Pastoral, estuda os meios e métodos de propagação da Palavra e de evangelização dos povos.
II. Missão e conversão
O mistério da Igreja é a "reação de Deus ao caos provocado pelo pecado" [2]. Concebida desde toda a eternidade em ordem à redenção do gênero humano, a Igreja nasce da entrega total de Jesus Cristo; ela brota, por assim dizer, do lado trespassado do Senhor crucificado e é na razão desta "morte que vence a morte" (cf. 1 Cor 15, 20; Is 25, 8; Os 13, 14) que se encontra a essência de sua missão: sendo uma só pessoa com nosso Redentor [3], a Igreja é "sacramento universal de salvação" [4] e "instrumento da comunhão de Deus e dos homens" [5]. Mas se a finalidade última de sua existência é a conversão das almas para Deus, pode-se dizer que a eficácia de sua atividade missionária dependerá da aptidão dos meios empregados para atingir ou não esse fim. Neste sentido, a medida de um método pastoral é e só pode ser a sua capacidade de servir ao processo de conversão.
Ora, há alguns anos o Papa Emérito Bento XVI nos tem alertado para uma instrumentalização do Concílio Vaticano II que consistiria, dum modo geral, em forjar um falso "espírito do Concílio"; tratar-se-ia, noutros termos, de uma tentativa não apenas de dar aos documentos conciliares um sentido estranho e até mesmo avesso ao que neles de fato se ensina, mas também de atribuir ao próprio Concílio intenções e projetos que apenas dificilmente se podem deduzir do que na realidade dispõem seus decretos e constituições [6]. Estas distorções deram-se de modo especialmente danoso no âmbito pastoral, pois a abordagem proposta pelo Vaticano II foi a tal ponto adulterada e amputada, que muitos, dentro da Igreja, começaram a agir no sentido contrário ao que indicavam as disposições do Concílio. Foi justamente a confusão causada na esfera pastoral que acabou por gerar o fenômeno do que aqui denominamos "falsas conversões".
No entanto, é importante compreendermos, antes de tudo, o que se entende por conversão. O Decreto conciliar "Ad Gentes" sobre o caráter missionário da Igreja traz subsídios bastante esclarecedores a esse respeito. Ao falar da pregação do Evangelho, o Concílio aponta para alguns dos elementos constitutivos da conversão: "Esta [...] há-de considerar-se como inicial, mas suficiente para o homem cair na conta de que, arrancado ao pecado, é introduzido no mistério do amor de Deus, que o chama a entabular relações pessoais consigo em Cristo." [7] Com base neste trecho, pode-se considerar a conversão sob dois lados que lhe constituem o caráter ao mesmo tempo negativo e positivo. De uma parte, a negação do pecado: é necessário primeiramente romper com tudo quanto seja pecaminoso ou ocasião de iniquidade; de outra, o contato positivo com o amor de Deus, que chama Seus filhos errantes a retomarem a dignidade de herdeiros do Reino (cf. Rm 8, 17). A conversão, em resumo, consiste na atitude do filho pródigo (cf. Lc 15, 11-32) e se articula em dois momentos principais: a) a metanoia (μετάνοια), isto é, uma reorientação profunda do espírito que, reconhecendo as faltas cometidas, determina-se a recolocar Deus no centro de seu coração; e b) a epistrophé (ἐπιστροφή), ou seja, o processo de volta contínua a Deus.
Chamamos, pois, conversão a este movimento da alma arrependida que, com o auxílio da Graça e o firme propósito de não mais pecar, é reconduzida a Deus. É uma realidade que atinge "o passado e o futuro; nutre-se da esperança na misericórdia divina." [8]
III. Os problemas da «nova pastoral»
Sucede que, sob a influência de concepções teológicas pouco ortodoxas, criou-se entre muitos católicos a ideia de que, se Deus é amor, como Lhe chama o Evangelista São João (cf. Jo 4, 8), então não podemos admitir algo como o Inferno; e ainda que concedêssemos sua existência, ele decerto estaria vazio. Nessa linha, passou-se também a pensar, na base de uma visão ingenuamente otimista do homem, que todos, ainda que não o saibam, participam dalguma maneira da Graça divina; por isso, ninguém poderia encontrar-se num estado de real inimizade com Deus. Ora, se tal é assim, não parece ser necessário renunciar à vida passada, despojar-se do homem velho (cf. Ef 4, 22) nem tampouco pertencer efetivamente à Igreja, já que, para autores como Karl Rahner, "a ação salvífica <de Cristo> atinge as pessoas por intermédio da tradição religiosa a que pertencem" [9], e não apesar dela. Isto supõe dizer que, devido à sua potencial abertura à Salvação, todos os homens, ainda que decidam permanecer alheios à única Igreja de Cristo, em todo caso pertencem a ela: são cristãos anônimos e inconscientes desta sua condição. É evidente que, nesse quadro, a conversão se torna supérflua e a própria estrutura eclesiástica se esfacela.
Não obstante os esforços que Rahner mesmo empreendeu para contornar as dificuldades suscitadas por sua teologia [10], não é de espantar que estas ideias tenham acarretado uma progressiva relativização do anúncio do Evangelho e, ao fim e ao cabo, o arrefecimento do ardor missionário que sempre animou a vida pulsante do cristianismo. Como, então, levar Cristo a pessoas que já são "cristãs"? como aproximar da Igreja quem, na realidade, faz parte dela mas sem sabê-lo? A solução a princípio foi simples: se convertê-las é dispensável, temos de mostrar às pessoas como a Igreja pode adaptar-se, simpaticamente, a todos os estilos de vida; devemos urdir uma "comunidade" em que caiba qualquer comportamento, mesmo que contrário à fé e à moral. Numa palavra, é preciso mundanizar o cristianismo: já não é o mundo que tem de ser evangelizado pela Igreja, mas a Igreja que deve conformar-se aos caprichos e exigências do mundo; as pessoas já não são convidadas a entregar-se a Cristo e a não tornar a pecar (cf. Jo 8, 11), mas é Cristo que se vê obrigado a acomodar-se à mentalidade alimentada pelo pecado.
Acreditava-se, com efeito, que por meio desta aproximação o mundo enfim aceitaria a Igreja. O problema de uma tal abordagem, como de resto não poderia deixar de ser, é gerar conversões meramente aparentes: pessoas que não se decidiram a romper com a vida de pecado, que não pretendem mudar o caminho que até agora têm trilhado, começam a afeiçoar-se ao que creem ser a Igreja Católica, passam a participar de seus Ofícios, chegam mesmo a dizer-se cristãs, mas o seu coração e a sua vida continuam infiéis e apartados de Deus. Nossas paróquias enchem-se, assim, de pessoas completamente iludidas e que não tiveram a chance de conhecer nem a face autêntica do cristianismo, nem a renúncia pessoal que ele pede a cada um de nós. Não é difícil ver que está irremediavelmente fadado ao fracasso todo método pastoral que pretenda angariar para a Igreja os olhares e aplausos de uma realidade em que não há nenhum espaço para Deus. Conquistar-se-ão adeptos, mas não fiéis.
IV. O combate ao mundo
Ora, a fim de provocar verdadeiras conversões—sinceras e frutuosas—, todo apostolado precisa ter presente que Igreja e mundo são substâncias imiscíveis; a adesão real a uma implica espontaneamente a aversão ao outro, e vice-versa. Para ilustrar em maior detalhe a radical incompatibilidade entre essas duas realidades, parece-nos oportuno encerrar estas considerações examinado de mais perto o que o mundo, do ponto de vista espiritual, representa para o cristão, sob quais máscaras se manifesta e quais os meios de o combater. Antes disso, lembremo-nos de que, ao lado dos inimigos principais de nossa alma (o pecado quer mortal, quer venial), temos três adversários secundários: o demônio, o mundo e a carne. Embora o primeiro nos possa seduzir mediante os outros dois, estes mantêm no entanto certa "autonomia" e, por isso, podem constituir fontes próprias de tentação e tropeço para a vida espiritual do fiel. A despeito de sua complexidade, o mundo se apresenta, em última análise, como "o ambiente anticristão que se respira entras as pessoas que vivem completamente esquecidas de Deus e entregues por completo às coisas terrenas." [11] Materialmente, ele se se reduz ao conjunto dos que, de algum modo, se opõem a Jesus Cristo e, por conseguinte, à Igreja. São:
(1) os incrédulos, hostis à religião, precisamente porque condena o seu orgulho, a sua sensualidade, a sua sede imoderada das riquezas; (2) os indiferentes, que não querem saber duma religião que os obriga a sair de sua indolência; (3) os pecadores impenitentes, que amam o seu pecado, porque amam o prazer e não se querem desembaraçar dele; (4) os mundanos, que creem e até praticam a religião, mas aliando-a ao amor do prazer, do luxo, do bem-estar, e que por vezes escandalizam os seu irmãos, crentes ou incrédulos, fazendo-lhes dizer que a religião tem pouca influência sobre a vida moral [12].
Segundo Antonio R. Marin, o clima malsão e insalubre que compõe o mundo se manifesta em quatro formas fundamentais [13], abaixo descritas. É mais do que óbvio que nenhuma delas pode servir de pretexto para atrair as pessoas para Igreja, pois é insensato doirar um cascalho e querer crer que é coisa preciosa e de valor.
- As falsas máximas que constituem a prudência mundana e que se opõem à verdade evangélica. De fato, o mundo sobrevaloriza a riqueza, o prazer, o poder; tudo põe a serviço da satisfação pessoal e do egoísmo. O espírito desta "sabedoria" costuma traduzir-se em pensamentos como: "Somos jovens, temos de desfrutar da vida, "Deus é muito bom e compreensivo; não nos há-de condenar por causa de umas diversões", "É preciso ganhar dinheiro a qualquer custo", "Comer bem, vestir-se bem, divertir-se muito: eis o que devemos procurar" etc. etc. O mundo não permite conceber nada mais elevado e nobre do que a satisfação imediata de nossos desejos e impulsos, mesmo que, para isso, tenhamos de usar das pessoas à nossa volta. Aborrece e execra, pois, tudo que o contradiga; daí também o ódio não raro virulento com que ora se opõe à doutrina cristã, ora busca atenuá-la ou mudar-lhe o sentido. O mundo manipula inclusive a linguagem: quer fazer do vício virtude e da beleza, feiura; e, subvertendo a realidade, nos induz a pensar que o ladrão é "um hábil negociante" e que a permissividade são apenas "os tempos modernos".
- O desprezo pela virtude e por tudo quanto cheire à piedade. A mentalidade mundana ridiculariza, por exemplo, a modéstia no vestir-se, que julga carolice; escandaliza-se com a probidade nos negócios, que pensa ser ingenuidade e falta de visão empresarial; desmerece a posição firme e intransigente da Igreja em relação às leis do matrimônio, pois lhes parecem impraticáveis, antiquadas e demasiado duras; enaltece o espírito "livre" da juventude, considerando tolos e reprimidos os que desejam pôr freio às paixões e levar uma vida santa. E os exemplos poderiam multiplicar-se indefinidamente.
- Os prazeres e divertimentos sempre mais frequentes, elaborados, envolventes e licenciosos: trata-se dos espetáculos, cinemas, bailes de vária sorte, casas de prostituição e "troca de casais", praias em que se expõem meninos e meninas a tantas formas de sedução e promiscuidade. Também não ficam de fora as conhecidas revistas de fofoca, as notícias indecorosas, sites de deboche, a terrível programação televisiva hoje produzida—são as novelas, os programas de humor, os afamados reality shows etc.—; tudo acaba por reduzir-se, afinal, a formas cada vez mais "criativas" e ousadas de lisonjear a curiosidade alheia, de açular a sensualidade e voluptuosidade [14] de qualquer faixa etária, e de fazer perder tempo a todos.
- A isso vêm somar-se os maus exemplos e escândalos fomentados pela atmosfera geral de desregramento; pois, à vista de tantos jovens desocupados e entregues a seus caprichos, de tanta infidelidade conjugal, de tanta desonestidade nos negócios, de tanto descaso pela sacralidade do sexo, "é forte a tentação de nos deixarmos arrastar a semelhantes desordens." [15] Basta ir à rua, abrir um jornal, ligar a televisão ou o computador, para depararmos com alguma incitação, crua e descarada, ao pecado nalguma de suas modalidades. Mas o Senhor disse: "Ai do mundo por causa dos escândalos! "Eles são inevitáveis", pois jazemos sob o Maligno (cf. 1 Jo 5, 19), "mas ai do homem que os causa!" (Mt 18, 7).
O melhor remédio contra o mundo seria fugir materialmente dele, como fazem os ermitãos e os vocacionados à vida monástica. Como porém nem todos os cristãos são chamados à radicalidade do monasticismo, para nadar contra a corrente é preciso em primeiro lugar morrer para o mundo, quer dizer, renunciar às suas vaidades e, permanecendo nele, lutar por viver a plenitude da caridade que todos os fiéis, de qualquer estado, são chamados a realizar. Esta morte se concretiza à medida que vamos adquirindo "o verdadeiro espírito de Jesus Cristo, que é diametralmente oposto ao espírito mundano." [16] Há quatro grandes estratégias de luta:
- Evitar as ocasiões perigosas. — Aos que não vivemos no claustro é necessário conviver com o mundo; mas, devido às abundantíssimas situações de pecado em que ele nos põe, devemos preservar-nos dele, isto é, viver nele como se a ele não pertencêssemos. Por isso, precisamos abdicar com decisão firme e sincera das situações em que o mundo nos inocula o seu veneno e vai, assim, amortecendo nossa consciência e sensibilidade moral: "Quem ama o perigo nele perecerá" (Eclo 3, 27), diz o Eclesiástico. Além de fugir das ocasiões que nada nos podem oferecer de edificante e útil à santificação, temos de usar dos bens do mundo como se os não usássemos (cf. Cor 7, 31), ou seja: o nosso relacionamento com as coisas terrenas tem de ser iluminado pela fé e posto sob a perspectiva da eternidade que nos aguarda.
- Avivar a fé. — É a fé que nos dá a vitória nesta batalha (cf. 1 Jo 5, 4). "Guiados por ela", escreve o pe. Royo Marin, "temos de opor às falsas aparências do mundo a firme adesão do espírito às coisas divinas [...]; às suas máximas perversas, as palavras de Jesus Cristo; às suas seduções, as promessas eternas; aos seus prazeres e diversões, a paz de nossa alma e a serenidade de uma boa consciência; às suas burlas e menosprezos, a inteireza dos filhos de Deus; aos seus escândalos e maus exemplos, a conduta dos santos e a afirmação constante de uma vida irrepreensível diante de Deus e dos homens." [17] Adolphe Tanquerey aconselha a sempre ler e reler o Evangelho, porque é a própria Verdade Eterna que nesta leitura nos fala. Esse momento de intimidade e escuta é excelente para pedirmos a Cristo, que ali Se nos dirige de modo particular, a vontade e a força necessária para queremos o que Ele quer e cumprimos o que nos pede [18].
- Considerar a vaidade do mundo. — A figura deste mundo é passageira (cf. 1 Cor 7, 31) e com ela vão-se os prazeres, as lisonjas, as honrarias: "O mundo passa com as suas concupiscências" (1 Jo 2, 17). "Tudo é vaidade" (Ecl 1, 2), clama o Eclesiastes; nada há de estável e permanente sob o Sol, pois o mundo se transforma e se desfaz a pouco e pouco: ele é inconstante em seus juízos, sempre insatisfeito em seus gozos e riquezas; o que ontem aplaudira com frenesi e entusiasmo, renega-o hoje ao esquecimento, "indo de um a outro extremo sem o menor escrúpulo, permanecendo constante unicamente quanto à facilidade da mentira e da obstinação no mal." [19] Com efeito, apenas Deus não se muda; juntamente com Ele, só a Sua verdade (cf. Sl 116, 2), a Sua Palavra (cf. 1 Pd 1, 25) e a Sua justiça (cf. Sl 110, 3) permanecem para todo o sempre.
- Desprezar os respeitos humanos. — Por "respeitos humanos" costuma-se entender a vergonha de dar a conhecer aos homens a nossa fé. Esse tipo de acanhamento espiritual se transforma não raro numa constante preocupação com o que dirão ou pensarão a nosso respeito, caso manifestemos, por exemplo, uma opinião cristã que sabemos ser contrária e antipática às expectativas do mundo. Trata-se, pois, de uma evasão socialmente discreta, mas sempre injuriosa, de negar Deus e Sua Igreja perante os demais. É o que ocorre quando receamos fazer o sinal da cruz em público; quando, numa conversa, tememos tocar em questões de fé e moral, pois pressentimos que o interlocutor fará de nós um mal juízo; quando (e é o que de mais vil se pode esperar de um cristão) renegamos a fé por medo de represálias ou humilhações etc. O remédio para esta como que anemia da alma é a virtude da santa desvergonha, isto é, uma atitude franca e decidida dos que nos sabemos filhos de Deus e a simplicidade de desprezar o que dirão [20], pois o Senhor nos advertiu que negará diante de Seu Pai todo aquele que O houver negado diante dos homens (cf. Mt 10, 33). Ainda que o mundo inteiro, com burlas, desprezos ou chacotas, despenque sobre ele, o cristão, pondo os olhos na Paixão de Nosso Senhor, tantas vezes humilhado e alvo de cusparadas, deve seguir adiante e suportar, confiante na justiça e misericórdia divinas, os ódios e perseguições reservados ao Povo de Deus (cf. Jo 15, 18-20).
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