Leia aqui a primeira parte da “História das tentativas de liberação do aborto no Brasil”.
Enquanto os brasileiros se preparavam para o Natal, no dia 21 de dezembro de 2009 o então presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, assinou o Decreto 7.037/2009, instituindo o Plano Nacional de Direitos Humanos 3.
O PNDH-3
Apresentado como plano de desenvolvimento dos direitos humanos, o documento original continha propostas contrárias aos direitos fundamentais e à fé cristã:
- relativizava o direito à propriedade privada, condicionando a posse de imóveis à comprovação da “função social da propriedade” [i];
- pretendia regulamentar os meios de comunicação e impor penalidades às empresas que veiculassem “programação ou publicidade atentatória aos direitos humanos”, o que, na prática, levaria à instituição da censura [ii];
- promovia a implantação da ideologia de gênero nos currículos escolares [iii];
- combatia a repressão ao tráfico de drogas, propondo a busca de “modelos alternativos de tratamento do uso e tráfico de drogas” [iv]; e
- proibia a utilização de símbolos religiosos em repartições públicas [v].
Como se não fosse o bastante, o documento se comprometia a legalizar o aborto no Brasil, assumindo o seguinte objetivo: “Apoiar a aprovação do projeto de lei que descriminaliza o aborto, considerando a autonomia das mulheres para decidir sobre seus corpos” (2009, p. 91).
Diante de um Decreto presidencial com medidas tão problemáticas do ponto de vista moral e civil, publicado sem ruído às vésperas das festas de fim de ano, a Igreja Católica no Brasil não se calou e denunciou os graves problemas do PNDH-3.
Foi tal a oposição da Igreja e da sociedade civil que o Decreto teve de ser alterado em diversos pontos. Com respeito ao aborto, manteve-se a recomendação “ao Poder Legislativo” de adequar “o Código Penal para a descriminalização do aborto” (2010, p. 92), mas foi excluído do conjunto de objetivos o compromisso explícito de apoiá-lo, colocando-se no lugar o seguinte eufemismo: “Considerar o aborto como tema de saúde pública, com a garantia do acesso aos serviços de saúde” (2010, p. 91). O argumento é usado até hoje por defensores do aborto, inclusive em campanhas eleitorais.
À época, o Decreto deixou o governo Lula politicamente desgastado, de modo que sua indicada à sucessão presidencial, Dilma Rousseff, foi bastante questionada durante a campanha de 2010 sobre suas intenções de legalizar o aborto.
O tema ganhou ainda mais publicidade quando, em sabatina à Folha de São Paulo em 2007, Dilma Rousseff afirmou com todas as letras: “Eu acho que tem de haver a descriminalização do aborto. Não é uma questão de foro íntimo”. Durante a campanha eleitoral de 2010, no entanto, confrontada sobre o tema, usou do mesmo artifício que seu predecessor e mentor político, afirmando ser “pessoalmente contra o aborto” (Folha de São Paulo, 1.º/10/2010, caderno especial, p. 10).
Ao mesmo tempo que se declarava publicamente contra o aborto, o governo trabalhava nos bastidores em prol da causa. Prova disso é a publicação, no dia 4 de outubro de 2010, um dia após o 1.º turno das eleições, no Diário Oficial da União, da renovação de um grupo de estudos sobre a liberação do aborto: “Prorrogar a vigência do Termo de Cooperação n.º 137/2009, destinado [sic] Estudo e Pesquisa – Despenalisar [sic] o Aborto no Brasil, até 04/02/2011, a contar de seu vencimento” (D.O.U., 04/10/2010, p. 88).
Manobras do governo Dilma Rousseff
Uma vez eleita, Dilma Rousseff mostrou suas verdadeiras pretensões. Ciente da dificuldade de descriminalizar o aborto por meio do Congresso Nacional, o governo federal começou a agir em outras duas frentes: o ativismo judicial, sobretudo em Tribunais Superiores, e as Normas Técnicas do Ministério da Saúde. Por nenhum dos dois caminhos conseguiria alterar a lei, embora tornasse possível, na prática, a realização de abortos em grande escala.
O ativismo judicial é uma forma de usurpação de poderes. Não satisfeitos em aplicar a lei, juízes de direito se arrogam o papel de legisladores, confeccionando “normas” com base no que cada um interpreta como o “espírito” da lei.
O ativismo judicial possibilitou, por exemplo, que em abril de 2012 o Supremo Tribunal Federal decidisse, na ADPF n.º 54, por oito votos a dois, que o aborto de bebês anencéfalos não contrariava o direito à vida, expresso textualmente na Constituição Federal, e que, portanto, não poderia ser considerado crime. Cabe notar que o então advogado requerente da causa, o sr. Luís Roberto Barroso, seria nomeado pela presidente Dilma, em 7 de junho do ano seguinte, ministro do STF.
Passemos agora às Normas Técnicas do Ministério da Saúde. Em matéria da Folha de São Paulo, de 6 de junho de 2012, Helvécio Magalhães, à época secretário de Atenção à Saúde do Ministério, explicou que, para “reduzir os danos” dos abortos ilegais, estava em estudo a seguinte medida: “Orientar o sistema de saúde a acolher a mulher decidida a fazer o aborto clandestino e dar a ela informação sobre riscos à saúde e métodos existentes [para abortar]”. A reportagem detalhava:
A ideia é polêmica porque pode envolver a indicação de métodos abortivos considerados mais seguros que outros, como o uso de misoprostol, princípio ativo do remédio estomacal Cytotec, amplamente usado em abortos, apesar de ter venda restrita (Folha de São Paulo, 06/06/2012, p. C5).
Em outras palavras, por essa Norma Técnica, ainda que abortar permanecesse crime, os hospitais poderiam orientar a mulher a ir para casa, tomar remédios abortivos e depois retornar para fazer a curetagem dos restos mortais do bebê.
Segundo a Folha de São Paulo, a ideia foi defendida na última semana de maio de 2012 pela ministra Eleonora Menicucci, da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, que afirmou ser crime realizar o aborto, mas não orientar a mulher a fazê-lo: “Já temos a ideia de que isso não é crime, o crime é o ato em si” (Folha de São Paulo, 06/06/2012, p. C5).
Já o Estado de São Paulo, na reportagem “Governo prepara cartilha para mulher que decide abortar”, deixou claros os passos para implantar a medida:
O Ministério da Saúde e um grupo de especialistas se reúnem na segunda-feira para discutir um programa para aconselhamento de mulheres que decidiram abortar. [...] a Comissão vai sugerir a formulação de uma cartilha, com orientações para que o procedimento seja feito com segurança.
“A intenção é fecharmos o material de orientação em, no máximo, um mês”, afirmou o coordenador do Grupo de Estudos sobre o Aborto da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Thomaz Gollop.
A rodada final de discussão termina no fim do mês, em São Paulo. O formato final do programa será definido pelo Ministério. A cartilha conteria, por exemplo, informações para a mulher escolher o lugar do procedimento. (Estado de São Paulo, 07/06/2012, p. A22).
Como previra a reportagem, ainda em junho de 2012 o Ministério da Saúde do governo Dilma publicou a Norma Técnica sobre o Tratamento dos Agravos à Violência contra a Mulher. Na prática, o documento servia de instrumento para contornar a lei e dar ares de legalidade a uma prática não só imoral como criminosa.
Mas o empenho do PT em liberar o aborto não parou por aí. Como a população brasileira e o Congresso Nacional são majoritariamente contrários a essa barbárie, a única maneira de liberá-la seria agir de forma camuflada, apresentando como um “presente” às mulheres aquilo que na verdade seria a sua destruição.
Assim, foi aprovada a Lei 12.845/2013, conhecida desde então como Lei “Cavalo de Tróia”, justamente por encobrir pela linguagem dispositivos que facilitavam a prática do aborto no país. A Lei originou-se do Projeto de Lei 60/1999, da deputada Iara Bernardi (PT-SP), que estava parado há mais de 10 anos, até que, em 5 de março de 2013, o então líder do PT na Câmara, deputado federal José Guimarães (PT-CE), solicitou que o projeto tramitasse em caráter de urgência. Em menos de cinco meses, em agosto de 2013, a Lei “Cavalo de Tróia” foi aprovada e sancionada pela presidente Dilma Rousseff.
Quais os problemas da lei? No art. 1.º, ela determina que os “hospitais devem oferecer às vítimas de violência sexual atendimento emergencial, integral e multidisciplinar”, o que, ao menos à primeira vista, parece sensato. O problema está na aplicação do artigo, que deve estar em conformidade com a Norma Técnica de 2012, mencionada antes.
Essa Norma, ao tratar das alternativas a uma gravidez decorrente de violência sexual, afirma: “Constitui um direito da mulher […] o direito à integral assistência médica e à plena garantia de sua saúde sexual e reprodutiva” (2012, p. 68). Ora, “saúde reprodutiva” é uma expressão evidentemente vaga para cobrir coisas muito diversas, entre elas um suposto “direito” ao aborto. Além disso, a Norma destaca que o “Código Penal não exige qualquer documento para a prática do abortamento nesse caso [de violência sexual], a não ser o consentimento da mulher” (p. 69).
Outro problema está no art. 2.º da Lei “Cavalo de Tróia”, que alarga o alcance da expressão “violência sexual”, a ponto de englobar “qualquer forma de atividade sexual não consentida”. Some-se a isso o fato de a Norma Técnica de 2012 prever que a palavra da mulher que afirma ter sofrido violência — entendida genericamente como “falta de consentimento” — deve ser “recebida com presunção de veracidade” (p. 69), sem necessidade de prova.
Na prática, a mulher que chegasse ao hospital dizendo ter tido uma “atividade sexual não consentida” teria “direito” a abortar seu filho. Qualquer um é capaz de ver que essa “maracutaia legal” representa uma “legalização” indireta do aborto indiscriminado.
Porém, ainda tem mais. O art. 3.º elenca, entre os serviços a serem prestados pelo SUS, a “profilaxia da gravidez”, como se a gestação fosse uma doença a ser combatida e o aborto, um “remédio” a ser aplicado.
Em síntese, sem se referir explicitamente à descriminalização do aborto, a Lei “Cavalo de Tróia”, proposta por parlamentares do PT e sancionada por Dilma Rousseff, possibilita que o SUS se torne uma grande rede de abortos. Para isso, é claro, seriam necessários recursos financeiros vastos, mas não impossíveis, dadas as muitas organizações internacionais (MacArthur, Ford e Rockefeller) dispostas a financiar a realização de abortos no Brasil.
Eis por que estão em tramitação no Congresso Nacional vários projetos de lei que visam implantar no Brasil o que poderíamos chamar de “abortoduto”, um canal de financiamento internacional para a prática de abortos no país.
Entre os mais conhecidos, podemos mencionar o Projeto de Lei 7.371/2014, elaborado no Senado pela Comissão Parlamentar Mista de Inquérito da Violência Contra a Mulher e assinado pelo então Primeiro-Secretário do Senado Federal, o senador Paulo Paim (PT-RS). O projeto pretende criar o “Fundo Nacional de Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres”, que na prática captaria recursos financeiros para inúmeras causas, inclusive a realização de abortos pelo SUS. Na época, Padre Paulo Ricardo chegou a fazer uma aula para alertar sobre os riscos desse projeto.
Outro projeto semelhante foi protocolado em meio à pandemia, a fim de se aproveitar da situação em que o mundo inteiro se encontrava. Trata-se do Projeto de Lei 1.444/2020, de autoria da deputada federal Alice Portugal (PC do B-BA), que pretendia estabelecer medidas emergenciais de proteção à mulher vítima de violência doméstica durante a pandemia do coronavírus, abrindo às escondidas a possibilidade de financiamento internacional. Sobre a gravidade do projeto, Padre Paulo também fez um alerta na aula “Abortoduto: eles sabem o que querem!”
2023: a cartada final do ativismo judicial
Como já dissemos, a descriminalização do aborto no Brasil por meio do Congresso Nacional é hoje praticamente impossível, visto que deputados e senadores não querem pôr em risco seus mandatos e sabem que a população brasileira é majoritariamente contrária ao aborto.
Os próprios defensores do aborto reconhecem que o caminho a trilhar é o do ativismo judicial, via STF, que tem usurpado competências do Poder Legislativo, passando a legislar em favor do interesse de seus ministros, nomeados em sua maioria pelos governos Lula e Dilma.
Atualmente, o principal ativismo judicial pró-aborto está acontecendo por meio da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n.º 442, proposta pelo PSOL em 8 de março de 2017. Com essa ação, o partido defende a descriminalização do aborto nos primeiros três meses de gestação, algo que somente o Congresso Nacional poderia fazer.
A relatora da ação, ministra Rosa Weber, já declarou em outro processo, de novembro de 2016, que a criminalização do aborto nos três primeiros meses é incompatível com os direitos das mulheres, conforme registrou a Revista Veja, em 15 de março de 2017. A julgar pelo modo como votaram seus pares em ações semelhantes, a maior parte deles pensa o mesmo — o que faz da referida ADPF nada mais que um “jogo de cartas marcadas”. Mesmo assim, a fim de dar ares democráticos à discussão, a ministra relatora convocou uma audiência pública sobre o tema, ocorrida nos dias 3 e 6 de agosto de 2018.
Repentinamente, porém, a ministra Rosa Weber “engavetou” a ação — mesmo tendo declarado que não irá arquivá-la (o que seria a única decisão sensata, visto que não é atribuição do STF criar leis). Desde 2018 não se fala mais no assunto. Segundo o ministro Luís Roberto Barroso, “não há clima de tranquilidade para julgar essa matéria” (UOL, 25/06/2022). Para uma das autoras da ação movida pelo PSOL, Luciana Boiteux, advogada e professora da UFRJ, “há uma ‘paralisia’ no processo no Supremo e um dos motivos possíveis é evitar que a discussão tensione a relação com outros Poderes, especialmente o Executivo” (UOL, 29/06/2022).
Essa tensão a que se refere Luciana Boiteux fica ainda mais evidente se considerarmos que tramitam no Congresso vários projetos de lei que pretendem aumentar o rol de crimes de responsabilidade dos ministros do STF, o que estenderia as possibilidades de impeachment dos mesmos.
Além disso, deve-se considerar o fato de que, em 12 de setembro de 2022, a ministra Rosa Weber assumiu a presidência do STF, cargo que ocupará até sua aposentadoria, em outubro de 2023. Conforme noticiou o portal G1, mesmo com as atribuições de presidente da corte, a ministra fez questão de continuar como relatora da ADPF 442, justamente por ser um dos principais processos que “têm repercussão na sociedade e podem testar a relação da Corte com o Legislativo e Executivo”. A reportagem ainda acrescenta: “Ministros avaliam reservadamente que, ao permanecer com as relatorias, a ministra indica que pode querer julgar esses casos até o fim da sua gestão, em outubro do ano que vem, quando se aposenta ao completar 75 anos” (G1, 14/09/2022, grifo nosso).
À luz dessas informações, surgem algumas perguntas relevantes. Caso a ministra Rosa Weber realmente decida pautar a ação, será que o Congresso Nacional ficará de braços cruzados, assistindo ao avanço do ativismo judicial pró-aborto? Será que o futuro presidente da República dará sua chancela a esse ativismo ou contribuirá para fazer valer os “freios e contrapesos” do tão alardeado “Estado Democrático de Direito”? São perguntas que só o tempo poderá responder.
Na hipótese de Rosa Weber não pautar a ação sobre o aborto ou não conseguir concluir o julgamento até sua aposentadoria, o caso será herdado pelo novo ministro do STF, a ser nomeado pelo próximo chefe do Poder Executivo.
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