Emily Brontë era filha de um ministro ordenado da Igreja Anglicana que serviu a sua paróquia com devoção e diligência durante quarenta anos. Tal como seu pai, Emily era uma cristã fiel e devota, fato que fica evidente na perspectiva moral manifesta em seu famoso romance.
A obscuridade da obra tem como motivação a recusa dos protagonistas a amar o próximo ou a perdoar aqueles que pecaram contra eles. O resultado é uma reação em cadeia destrutiva em que cada vez mais cordeiros inocentes são transformados em lobos vingativos. Este é o próprio espírito do romance e o ímpeto de sua trama.
A luz do cristianismo penetra a escuridão do romance nas palavras e ações de Nelly Dean. É ela quem tenta trazer à razão os protagonistas do enredo. Ela adverte Heathcliff que “gente orgulhosa forja tristeza com as próprias mãos” [i]. Estas palavras de sabedoria servirão como a moral e o lema definidores do romance. Toda a história é o entrelaçamento das tristezas trazidas aos principais protagonistas por seu próprio orgulho.
A sabedoria das palavras de Nelly, e a suspeita de que são palavras da autora que fala indiretamente, estão presentes numa conversa com Catherine, na qual Nelly surge como uma teóloga cristã incisiva. “Se eu estivesse no céu”, diz Catherine, “seria infelicíssima” [ii]. A razão, diz Nelly, é porque “qualquer pecador se sente infeliz no céu” [iii]. Sua resposta axiomática deve ser levada em conta enquanto o diálogo continua, particularmente à luz (ou escuridão) da obsessão de Catherine com Heathcliff:
Meus maiores sofrimentos neste mundo têm sido os sofrimentos de Heathcliff; fui testemunha deles e senti-os todos, desde o começo. Meu maior cuidado na vida é ele. Se tudo desaparecesse e ele ficasse, eu continuaria a existir. E se tudo o mais ficasse, e ele fosse aniquilado, eu ficaria só num mundo estranho, incapaz de ter parte nele. Meu amor por Linton é como a folhagem da mata: o tempo há de mudá-lo como o inverno muda as árvores, isso eu sei muito bem. E o meu amor por Heathcliff é como as rochas eternas que ficam debaixo do chão; uma fonte de felicidade quase invisível, mas necessária. Nelly, eu sou Heathcliff. Sempre, sempre o tenho no meu pensamento. Não é como um prazer — porque eu também não sou um prazer para mim própria — mas como o meu próprio ser. Portanto, não fale mais em separação: é impraticável; além disso… [iv]
Nesta passagem bem conhecida, Catherine confessa a natureza infernal de seu “amor” por Heathcliff, que não é apenas seu ídolo, mas seu deus demoníaco. Ela não só o adora, como está possuída por ele.
Esta dimensão demoníaca não se perdeu em G. K. Chesterton, que escreveu: “o fracasso de Heathcliff como homem é tão catastrófico quanto seu êxito como demônio”. O demoníaco é ainda sugerido pelo fato de as palavras de Catherine, “Eu sou Heathcliff”, ecoarem as do Satanás de Milton: Myself am hell, “Eu próprio sou o inferno”. Tal como Satanás, ela está exilada do Céu porque todos os lugares, mesmo o Céu, seriam a mighty stranger, “um poderoso estranho”, para ela se Heathcliff não estivesse lá; ela seria “incapaz de ter parte nele”.
Ela preferiria estar com ele no Inferno do que sem ele no Céu. Nada a separará do “amor” do seu deus, nem mesmo o amor de Deus. Ela estará com Heathcliff para sempre, não apenas “até que a morte nos separe”, mas para além da própria morte. Heathcliff é a “rocha eterna” sobre a qual ela constrói a sua igreja. Ele é a source of little visible delight, “uma fonte de pequenas delícias visíveis”, mas, pelo contrário, é “escuridão visível”, como o Satanás de Milton, e a fonte de todo o seu sofrimento. No entanto, ela não se separará do Inferno que escolheu. Ela recebe o que escolhe. Eis uma teologia cristã profundamente ortodoxa, na mais fina tradição do Inferno de Dante.
A influência imponente de Dante fica mais uma vez evidente na cena entre Heathcliff e Catherine, quando esta última está em seu leito de morte. O “amor” de Catherine por Heathcliff é tão desordenado, que parece indistinguível do ódio. “Não, não hei de ter dó nenhum!”, diz ela. “Você me matou… e parece até que isso lhe fez bem” [v].
O momento da morte, para Heathcliff e para Catherine, não é um momento de reconciliação, nem com Deus nem de um com o outro. É um tempo de amarga reprovação, um tempo de dar vazão à melancolia num ato final de abandono autodestrutivo. “Queria mantê-lo assim [abraçado em mim] até que nós dois morrêssemos!”, Catherine exclama. “Não me importava que você sofresse. Pouco me importo com os seus sofrimentos. Por que não há de você sofrer? Eu sofro!” [vi]
Catherine ainda não deseja o Céu; prefere o Inferno de Heathcliff. Faz a sua escolha e condena a si mesma por causa dela. Heathcliff, por sua vez, cospe seu veneno em Catherine, mas preferiria se retorcer com ela no Inferno, num eterno abraço de amor-ódio, do que viver sem ela no Céu ou na terra:
— Será que um demônio a possui — prosseguiu ele, num furor de paixão — fazendo-a me falar desse modo, quando já está morrendo? Então não compreende que todas estas palavras me ficarão gravadas a ferro em brasa na lembrança, e me hão de eternamente corroer por dentro, depois que você me deixar? Bem sabe que é mentira quando diz eu a matei; e também sabe, Catherine, que me seria mais fácil esquecer a própria vida do que me esquecer de você! Não basta ao seu egoísmo diabólico [infernal, no original] que eu me debata nos tormentos do inferno quando você já estiver em paz?
— Não hei de estar em paz! — gemeu Catherine [vii].
A ênfase foi acrescentada para destacar o drama metafísico que se esconde sob a superfície física da sua troca. Para Emily, tal como para o seu grande antepassado e inspirador, Dante, cada ato na vida tem um significado eterno.
Em forte contraste com a presença cristã benigna de Nelly está a presença maligna de Joseph, o calvinista puritano e moralista. Joseph representa o cristão superficial. Ele não é um verdadeiro cristão. Sua falta de caridade o desqualifica. Fazendo eco à condenação do escriba, do fariseu e do hipócrita por Cristo, Emily segue uma nobre tradição da literatura cristã ao expor a hipocrisia dos cristãos não caridosos. Dante tem uma seção inteira (bolgia, lit. “bornal”) do oitavo círculo do Inferno reservada especialmente para os hipócritas [viii], e Geoffrey Chaucer passa grande parte do Prólogo Geral [de seus Contos da Cantuária] expondo a hipocrisia de muitos dos seus peregrinos.
O romance termina numa nota leve e luminosa [ix]. Após a morte de Heathcliff, a escuridão desaparece e a luz emergente clareia o fardo do mal que pairava, carregado de desgraça, sobre toda a obra. Quando o Sr. Lockwood regressa a Wuthering Heights, ficamos quase deslumbrados pela luz e quase somos elevados pela alegria. O amor está no ar; amor verdadeiro, não a sua inversão infernal. Este final feliz serve como o juízo final sobre o próprio romance, confirmando que Emily Brontë, como a indomável Nelly Dean, está do lado dos anjos.
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