Nesta aula, vamos nos preparar para o Carnaval de uma forma bem diferente daquela com a qual o mundo está habituado. Vamos nos preparar espiritualmente para reparar as ofensas que, infelizmente, todos os anos são cometidas contra Nosso Senhor Jesus Cristo, na véspera da Quarta-feira de Cinzas.
Como o nosso país é considerado a terra do Carnaval, o Papa João XXIII, em 1959, concedeu exclusivamente ao Brasil a possibilidade de celebrar a Festa da Sagrada Face de Nosso Senhor Jesus Cristo com especial solenidade. Essa festa foi instituída pelo Papa Pio XII, em 1958, e teve sua origem a partir das revelações privadas recebidas pela Beata Irmã Maria Pierina de Micheli, a quem Jesus pedia que fosse feita uma reparação pelas ofensas cometidas contra Ele. Essas revelações iniciaram numa Sexta-feira Santa — quando irmã Pierina tinha ainda 12 anos de idade —, durante o tradicional beijo ao Cristo Crucificado. Nessa ocasião, ela ouviu a inspiração interior de Jesus que lhe dizia: “Todos Me beijam as chagas, mas ninguém beija o Meu rosto para reparar o beijo de Judas”.
Por que reparar as ofensas contra Jesus. — O sentido da reparação é desenvolver em nós uma atitude mínima de reconhecimento e de amor, mesmo que Deus, por sua própria natureza perfeita, dela não necessite. Quando ofendemos a Deus e não nos colocamos à disposição para reparar minimamente tal ofensa, estamos agindo como ingratos que soberbamente se colocam acima de Deus.
Para que isso não ocorra, devemos nos portar como a pecadora arrependida que, chorando aos pés de Jesus, muito amou porque muito lhe foi perdoado. Essa é a atitude amorosa de quem quer reparar as faltas cometidas. E Jesus permitiu que ela fizesse isso, assim como permite a cada um de nós, justamente porque os atos de reparação são, para nós, uma fonte de crescimento espiritual.
Além do sentido da reparação, precisamos compreender que o rosto é a nossa identidade, aquilo que nos distingue dos demais. Podemos dizer que a Beata Maria Pierina viveu numa época agraciada em que já se tinha acesso às imagens do rosto de Jesus no Santo Sudário — através do negativo de uma foto tirada pelo fotógrafo Secondo Pia, em 1898 — e, assim, era possível contemplar de forma mais concreta a própria pessoa do Cristo Crucificado.
A essência da devoção à Sagrada Face é fazer aquilo que Santa Teresa tantas vezes queria fazer, ao meditar o sofrimento de Jesus no horto das Oliveiras: enxugar o sangue de seu rosto e consolá-lo. Essa também é a essência da história de Santa Verônica [1], cujo gesto amoroso consolou Nosso Senhor enquanto Ele estava sendo massacrado por seus algozes. Embora o gesto de Verônica pareça tão simples e insignificante, é marcado por um amor que, teológica e divinamente, é maior do que o ódio dos seus algozes, pois provém da graça de Deus.
A devoção à Sagrada Face e o Brasil. — Cem anos antes das revelações de Jesus à Beata Maria Pierina, a irmã carmelita Maria de São Pedro também recebera — em Tours, na França — revelações privadas acerca da devoção à Sagrada Face, às quais teve acesso o venerável leigo Léon Papin Dupont, que passou a divulgá-las. Após muita perseguição, esse leigo conseguiu, em 1876, a aprovação eclesiástica da devoção à Sagrada Face de Jesus, e criou as confrarias para divulgá-la. Estas, por sua vez, receberam o reconhecimento pontifício em 1885. E foi justo destas confrarias que participaram todos os membros da família de Santa Teresa do Menino Jesus e da Sagrada Face, cujo nome de religiosa já expressa sua vinculação à devoção [2].
Para o Brasil, a Festa da Sagrada Face ganha uma conotação ainda mais solene, porque “onde abundou o pecado, superabundou a graça” (Rm 5, 20). Considerando que, no nosso país, ofende-se a Deus com maior intensidade por meio dos pecados cometidos no carnaval, devemos também com maior solenidade celebrar a Festa da Sagrada Face, a fim de reparar tais ofensas.
Enquanto católicos, não precisamos acreditar nas “revelações privadas” que fundamentam essa devoção [3]. Porém, é necessário aderirmos à verdade teológica irrefutável segundo a qual Nosso Senhor Jesus Cristo sofreu na Cruz por amor a nós, e precisamos retribuir-lhe esse amor, amando-o de volta e reparando as ofensas cometidas contra Ele.
Por exemplo, ao observarmos, no rito de Paulo VI, os textos da Missa da Festa da Sagrada Face, constataremos que eles estão diretamente relacionados à Paixão do Senhor [4]. Vejamos, por exemplo, na primeira leitura, do livro do profeta Isaías, capítulo 50, o cântico do Servo Sofredor: “Ofereci o queixo aos que queriam arrancar a barba, não desviei o rosto de bofetões e cusparadas, mas o Senhor é o meu aliado, por isso não me deixei abater o ânimo, conservei o rosto impassível como pedra”. O Salmo Responsorial, que diz: “Mostrai-nos a Vossa face, ó Senhor” (Sl 30), narra a Paixão de Jesus afirmando: “Tornei-me o opróbrio dos inimigos [...], objeto de pavor para os amigos”, e clamando pelo auxílio de Deus.
Já no Evangelho de São Lucas, capítulo 22, é narrada a Paixão de Jesus a partir da negação de Pedro. Aqui, é interessante observarmos que as duas irmãs que receberam revelações de Jesus — a Venerável Maria de São Pedro e a Beata Maria Pierina — possuem, em seus nomes, referência ao Apóstolo Pedro, e ambas falavam que a contemplação do rosto de Jesus converte os pecadores, exatamente como ocorreu com São Pedro, quando negou a Cristo. O olhar de Pedro se encontra com o de Jesus, de modo que ele se encontra com a Sagrada Face, com Jesus esbofeteado, escarrado, cuspido, já com o rosto todo inchado e desfigurado; então, Jesus olha para Pedro e, desse olhar, vem a conversão. Esse mesmo olhar Jesus dirigiu a Judas, porém sem o mesmo resultado. Vemos assim a extraordinária riqueza dos textos bíblicos da Festa da Sagrada Face, na Missa de Paulo VI.
O objetivo precípuo deste programa é levar-nos a amar Jesus na sua Paixão, no seu rosto santíssimo, repetindo o gesto de Verônica, que pode ser o gesto de uma santa histórica, cujo nome não sabemos, ou simplesmente o gesto de todo cristão que, como Santa Teresa d’Ávila, quer consolar Nosso Senhor na sua Paixão. É isso que realmente importa, e é isso que recordamos liturgicamente na terça-feira de carnaval e que podemos realizar em nossas vidas todos os dias.
As formas de devoção à Sagrada Face. — Olhando para o modo como essa devoção se desenvolveu historicamente, observamos algumas particularidades relevantes. Nas revelações privadas da Venerável Maria de São Pedro, em Tours, na França, vemos que a devoção à Sagrada Face está relacionada ao véu de Verônica. Por outro lado, a devoção cultivada pela Beata Maria Pierina baseia sua devoção no Santo Sudário. Seja como for, as duas coisas confluem na mesma realidade: a Paixão de Nosso Senhor.
A devoção de Santa Teresinha à Sagrada Face — por ser influenciada pelas confrarias fundadas a partir das revelações da Venerável Maria de São Pedro — também está relacionada ao véu de Verônica, e aborda aspectos bastante significativos, como a realidade da consolação a Jesus e da conversão dos pecadores ao verem o rosto desfigurado de Nosso Senhor. Em sua Poesia 20, intitulada Meu céu na terra!, Santa Teresinha descreve como a face de Jesus nos remete à Pátria Celeste:
Tua face é a minha única Pátria,
Ela é o meu Reino de amor,
É a minha alegre Campina,
Meu doce Sol de cada dia.
Ela é o Lírio do vale
Cujo perfume misterioso,
Consola minha alma exilada
E a faz gozar da paz dos Céus [5].
Na sequência da mesma poesia, a carmelita de Lisieux pede a Cristo que lhe conceda a graça de esconder-se dentro da sua Sagrada Face, a fim de assemelhar-se ainda mais a Ele, cuja glória foi humildemente escondida sob o véu do sofrimento:
Tua Face é a minha única riqueza
E não peço nada mais.
Nela, escondendo-me sem cessar,
A ti, Jesus, hei de assemelhar [6].
Essa necessidade de sermos semelhantes a Cristo é uma das razões de buscarmos a comunhão com a Paixão de Cristo, de modo que, assim, nossa vida seja transformada por Ele.
Essa é, em suma, a história dos últimos duzentos anos da devoção à Sagrada Face de Jesus [7]. Diante de tudo que foi exposto, precisamos ter clara a ideia básica e fundamental de que a devoção à Sagrada Face consiste em uma devoção ao amor de Jesus por nós na Paixão. E como o rosto remete ao conceito de “pessoa”, essa devoção pode ser definida como hipostática, no sentido de que está ligada à identidade, ao rosto de Cristo que, mesmo escondido e desfigurado pelo sofrimento da Paixão, poderá ser visto por nós face a face no Céu.
Para isso, precisamos oferecer reparações à Sagrada Face, que foi ofendida pelo beijo de Judas e hoje continua a ser atingida por nossas faltas. Vivamos, pois, intensamente estes dias preparando-nos para a Quaresma e pedindo a Deus pelos pecadores, a fim de que, pelo encontro com a Face de Jesus, eles se convertam, configurando suas vidas à Paixão de Nosso Senhor.
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