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A obediência da fé gera a perseguição do mundo

Tanto no sacrifício de Abraão quanto na Transfiguração do Senhor somos instruídos sobre a obediência da fé. Crer em Deus é escutar o que Ele diz, conformando nossa vida aos seus mandamentos. Essa conversão, no entanto, tem um preço: o ódio do mundo.

Texto do episódio
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Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Marcos (Mc 9, 2-10)

Naquele tempo, Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João, e os levou sozinhos a um lugar à parte sobre uma alta montanha. E transfigurou-se diante deles. Suas roupas ficaram brilhantes e tão brancas como nenhuma lavadeira sobre a terra poderia alvejar. Apareceram-lhe Elias e Moisés, e estavam conversando com Jesus. Então Pedro tomou a palavra e disse a Jesus: “Mestre, é bom ficarmos aqui. Vamos fazer três tendas: uma para ti, outra para Moisés e outra para Elias”. Pedro não sabia o que dizer, pois estavam todos com muito medo. Então desceu uma nuvem e os encobriu com sua sombra. E da nuvem saiu uma voz: “Este é o meu Filho amado. Escutai o que ele diz!” E, de repente, olhando em volta, não viram mais ninguém, a não ser somente Jesus com eles. Ao descerem da montanha, Jesus ordenou que não contassem a ninguém o que tinham visto, até que o Filho do Homem tivesse ressuscitado dos mortos. Eles observaram essa ordem, mas comentavam entre si o que queria dizer “ressuscitar dos mortos”.

Todos os anos, nós refletimos no 2.º Domingo da Quaresma sobre o Evangelho da Transfiguração. É um esquema para a Quaresma que a Igreja segue já há muitos séculos. Sempre no 1.º Domingo da Quaresma o Evangelho é o das tentações de Cristo no deserto, e o do 2.º Domingo é o da Transfiguração. Com a reforma litúrgica, temos uma variedade de textos, de maneira que podemos, a cada ano, refletir o episódio da Transfiguração tal qual é apresentado por cada um dos evangelistas. Esse ano, estamos lendo S. Marcos. 

Aqui vem uma coisa interessante: este ano, o Evangelho de S. Marcos sobre a Transfiguração de Cristo é iluminado pela primeira leitura, embora não pareça que haja algo em comum entre ambos. Na primeira leitura, ouvimos a narrativa do sacrifício de Abraão. Todo o mundo sabe o que aconteceu com Abraão: ele ouvira um chamado de Deus, que lhe pedia que sacrificasse o seu filho, Isaac. Abraão, com uma fé heróica e realmente milagrosa, sobrenatural, conduziu o filho da promessa, sobre quem Deus falara: “É de Isaac que vai nascer uma numerosa descendência”. Isaac era jovem, não se tinha casado ainda, e Deus lhe pediu a vida: “Pega o filho da promessa e sacrifica-o”.

Na Carta aos Hebreus, em comentário a esse episódio, diz-se que Abraão sabia que Deus poderia ressuscitar os mortos, ou seja, o Deus que prometera que Isaac seria a origem da sua descendência é o mesmo que lhe estava pedindo que sacrificasse o filho da promessa. “Como Deus irá resolvê-lo”, pensaria Abraão, “isso é lá com Ele; eu, porém, vou obedecer”. Aqui nós vemos como Abraão se tornou o pai de muitas nações, não só pela descendência biológica de Isaac, mas por sua fé estrondosa. Ele então subiu o monte Moriá, e quando ia sacrificar o filho, um anjo enviado por Deus o deteve. Após Abraão sacrificar o cordeiro que fora providenciado milagrosamente, o Anjo lhe disse: “Por tua descendência serão abençoadas todas as nações da terra porque me obedecestes” (Gn 22, 18). Bênção de obediência, e obediência da fé! S. Paulo, na Carta aos Romanos, recorda exatamente isso: nós, evangelizadores, somos enviados aos outros para os levar até a obediência da fé. 

Essa é a primeira leitura. Mas que relação ela tem com o Evangelho da Transfiguração? Para quem não se lembra do que aconteceu na Transfiguração, recordemos. Jesus perguntara aos Apóstolos: “Quem dizem que eu sou?”, e S. Pedro respondeu: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”. Naquela ocasião, os Apóstolos já tinham fé. Jesus, uma semana depois da profissão de S. Pedro, sobe a uma montanha, que a tradição identifica com o Monte Tabor, e se transfigura na frente de Pedro, Tiago e João, mostrando-lhes quem Ele é de verdade. É uma coisa maravilhosa! O Evangelho está nos mostrando que, por meio da fé, Deus brilha para nós, como Jesus se manifestou aos Apóstolos. 

Mas, depois que Jesus se manifestou, soa uma voz, que dá a razão da manifestação de Cristo no monte Tabor. A voz sai da nuvem, símbolo do Espírito Santo. O Filho está ali, transfigurado, o Espírito Santo é a nuvem que ressoa a voz do Pai. É uma manifestação da Trindade: “Este é o meu Filho amado, escutai o que Ele diz”.

Escutar! Sabemos o que é escutar? Escutar é obedecer. Se já temos fé em Jesus, agora precisamos obedecer a Ele. Em grego, o que Deus diz nesse versículo é akouete (ἀκούετε). O verbo akouó (ἀκούω) quer dizer “escutar”. Ora, como é “obedecer” em grego? É ypakouó (υπακούω), ou seja, é o mesmo verbo akouó, mas com o sentido de pôr-se debaixo daquilo que se está ouvindo. É um ouvir intensamente. O latim também expressa isso. Quando alguém ouve a rádio, como se chama essa ação? É audiência, é estar ouvindo. Ora, o que é “obediência”? É ob-audientia, é um ouvir intensamente. Uma coisa é ouvir distraidamente: alguém está falando, mas nossa cabeça está em outro lugar. Outra coisa é ouvir com o coração de discípulo, de ouvinte ou, como se diz em hebraico, lev-shomer (לב-שומר), com um coração que ouve, que está pronto para ouvir a Deus e obedecer. 

Eis o que as leituras nos ensinam. É um grande ensinamento para a Quaresma. Afinal, se nós cremos em Deus, precisamos obedecer a Deus. E essa é uma das coisas mais difíceis de entender. Deus sabe o que é bom para nós, mas nós insistimos em não obedecer a Ele. Quando se prepara uma pessoa para a Confissão, muitas vezes leva tempo para convencê-la de que é preciso obedecer ao que Deus está mandando, porque, se não, é pecado. “Ah”, diz ela, “mas eu não concordo que seja pecado”. Ora, o pecado é uma coisa que foi revelada. Para nos simplificar e facilitar a vida, Deus revelou-nos o que é pecado. Nós acreditamos e ponto. Mas é só depois que obedecemos que nos fica claro por que um pecado é pecado.

Quantas vezes se vê isso na prática! A pessoa vem ao confessionário remoendo-se: “Mas, padre, eu vou obedecer, só que ainda não enxerguei, ainda não concordo”. Deve-se responder: “Faça um ato de fé, faça um ato de vontade. Deus está dizendo que é pecado. Você crê no que Deus está dizendo?”, “Sim, creio”, “Então irá obedecer a Deus?”, “Sim, irei, só não estou convencido, não estou enxergando; estou na escuridão da fé. Deus está dizendo que é pecado. Mas não sei por que é pecado”. A pessoa então obedece, e é aí que ela finalmente enxerga.

Isso aconteceu uma vez com o Cura d’Ars. Chegou-lhe um dia um sujeito agnóstico, que não conseguia crer nem descrer, porque estava sempre cheio de dúvidas sobre a existência de Deus. Era um intelectual de Paris que ouvira falar de um padre santo que vivia em Ars. Ao chegar à pequena vila, disse o seguinte a S. João Maria Vianney: “Ouvi dizer que o senhor é muito sábio. Tenho umas dúvidas de fé que queria resolver”, mas S. João Maria respondeu: “Ajoelhe-se e confesse”. “Não”, disse o outro, “eu não creio, não sei se Deus existe”. “Ajoelhe-se e confesse”, insistiu o Cura. “Não, mas eu…”. “Ajoelhe-se e confesse”, atalhou o santo. O homem obedeceu e confessou-se. Depois de receber a absolvição, ele se levantou do confessionário e ouviu do padre: “Pois, então, qual é a sua dúvida?” E ele disse: “Agora, nenhuma”. Desapareceu a dúvida, porque obedecera a fé.

A ordem que Deus está dando pode ser, inicialmente, uma pedra de tropeço intelectual: “Nossa! Como é possível que Deus peça o sacrifício de Isaac? Foi Ele quem deu Isaac e prometeu que a descendência viria por ele. Agora, o mesmo Deus pede-me que sacrifique Isaac. Não tem sentido isso… Que loucura é essa? Se Ele ia pedi-lo de volta, por que então o deu?” Mas Abraão não pensa assim. Ele obedece, e, no final, tudo faz sentido. No final, as coisas brilham. “Todas as nações da terra vão ser abençoadas porque me obedecestes”. Nós fomos abençoados porque Abraão, dois mil anos antes de Cristo, quatro mil anos atrás, obedeceu. Esse acontecimento foi há quatro mil anos, e estamos sendo abençoados ainda hoje por essa obediência! 

Nós estamos na Quaresma. O que vamos fazer? Obedecer aos Mandamentos de Deus, começar a seguir o caminho da Lei e confessar-nos. Peguemos um exame de consciência. Não é preciso estar “convencido” do que é ou não é pecado; basta saber que Deus está dizendo que algo é pecado. Creiamos! Deus revelou-nos o que é pecado, só depois poderemos entender por que o é. Primeiro, obediência. Confessemo-nos. Quando o tivermos feito, obedientes a Deus com sinceridade, talvez tenhamos a experiência que muitos têm: as escamas nos vão cair dos olhos e, a partir de uma vida obediente, começaremos a enxergar que tudo aquilo faz sentido. Esse é o primeiro passo.

Só que o problema não para por aí. Até aqui, se já nos confessamos, vencemos o diabo, que é o primeiro inimigo da alma; vencemos a carne, ou seja, a tendência a ser “cabeça dura”; mas ainda não vencemos o mundo. Como diz S. Francisco de Sales na Filoteia, quando começamos a vida de devoção — confissão feita, vida obediente! —, precisamos acertar e mudar nossa conduta. Passamos, por exemplo, a ir à Missa todo domingo. Antes falávamos palavrão com os colegas, contávamos piadas sujas, víamos pornografia; mas, de repente, tudo muda: cessam os palavrões, calam-se as piadas, fecham-se as indecências. E não leva uma semana para notarem a diferença. Todos veem o quanto mudamos e dizem: “Uai! O que foi? Virou anjo? Virou beato fanático?” S. Francisco de Sales alertava: quem entra na vida de devoção verá o mundo levantar-se contra si.

Por “mundo” não se devem entender as Fundações Internacionais, a ONU, ou as grandes corporações midiáticas. Não, o “mundo” aqui inclui: nossa mãe, nosso pai, nossa família, nosso marido, nossa esposa, nossos filhos, nossos colegas de trabalho… Os amigos com quem jogávamos bola vão notar a diferença. Por quê? O próprio Jesus, no Evangelho de S. João, capítulo 15, explica: “Se fôsseis do mundo, o mundo amaria o que é seu, mas Eu vos escolhi do mundo, por isso o mundo vos odeia”.

Uma vez que decidimos: “Vou obedecer a Deus! Tenho fé, Deus está me dizendo que isso é pecado, então deixo de fazê-lo. Deus está me mandando odiar isso, então odeio. Ainda gosto disso, mas agora odeio e detesto, porque Deus está mandando”, sentimo-nos melhor, livres, e começamos a entender as coisas de Deus. Mas o mundo não nos deixará em paz.

Os mesmos “caras” com quem passamos noites inteiras regadas a cerveja, sem poder acordar no dia seguinte, vão-nos dizer, assim que souberem que resolvemos fazer uma vigília diante do Santíssimo: “Olhe, assim você vai prejudicar a saúde…”. Ora, passamos a vida toda enchendo a cara de bebida alcóolica, estragando o fígado, comendo o que não devíamos, enchendo as veias de colesterol, e nunca ninguém nos disse nada; mas, quando começarmos a fazer jejum, alguém virá dizer: “Olhe, cuidado, isso prejudica a saúde”. Vão querer até nos mandar a um psiquiatra, como se estivéssemos “virados da cabeça”.

Quantas mulheres não passaram a vida imodestamente, levando outros a pecar, mas, depois de convertidas, por quererem cobrir-se de forma modesta, têm de ouvir: “Nossa! Você está se vestindo feito uma velha”! E não é preciso ir longe, não. Talvez a própria mãe lhes diga isso, mãe que nunca lhes ensinou a vestir-se direito e agora reclama, vendo as filhas resolvidas a parar de pecar, porque ouviram a voz de Deus: “Se você se veste de forma imodesta, que leva os outros a pecar com o olhar, falta com a caridade. Pare com isso, vista-se direito, deixe de ser ocasião de tropeço para os outros”. Mudam de guarda-roupa, jogam fora as roupas indecentes, e têm de ouvir justamente da mãe que “enlouqueceram”.

Não se trata de brigar com o mundo. Sejamos mansos, sejamos humildes. Não há por que declarar guerra a ninguém. O que é preciso saber é que, se obedecermos a Deus, sem que precisemos declarar a ninguém, o mundo irá declarar guerra contra nós. Isso vai acontecer. Como diz S. Francisco de Sales, quem não vê que o mundo é um juiz iníquo, favorável a seus filhos, mas intransigente e severo com os filhos de Deus? É assim que o mundo é. Se somos filhos do mundo, ele nos aplaude! Se estamos acabando com nossa vida, perdida em masturbação, pornografia, preguiça, sem fazer nada de real valor, sem ideal, nem virtudes, o mundo nos deixará em paz, ninguém nos há de incomodar! Mas, se nos atrevemos a fazer uma coisa virtuosa, aí se levanta um batalhão para nos criticar e dissuadir!

Não nos surpreendamos. Sejamos mansos e humildes de coração. Não briguemos com ninguém, mas tenhamos paciência, porque brigarão conosco. Não é preciso sair batendo boca com ninguém, nem declarar guerra, nada disso. Amemos essas pessoas, mas saibamos que seremos insultados por elas.

Conta-se de um rapaz que, acostumado a receber pronografia dos amigos pelo celular, se converteu e pediu a quem mandava: “Pare de mandar isso”. (Interessante é que o rapaz que lhe enviava pornografia era evangélico, pessoa que supostamente aprecia a S. Escritura.) O rapaz católico tinha-se confessado e dito ao outro: “Pare de me mandar essas coisas”. O evangélico reagiu, dizendo: “Ué? Que foi? Não gosta mais?”, como quem quer dizer: “Mudou de ‘orientação’ sexual?”. Então, o rapaz católico, em oração, abriu uma página da Escritura e decidiu mandá-la em resposta ao amigo. Era uma passagem da Primeira Carta de São Pedro, capítulo 4, versículo 4: “Agora eles estranham que não mais vos entregueis à mesma torrente de perdições”. O que são perdições? Diz o versículo anterior: dissolução, paixões, embriaguez, comilança, bebedeira, idolatria abominável — “Agora eles estranham que não mais vos entregueis às mesmas torrentes de perdições a ponto de vos insultarem”.

É isso: “Basta o tempo que passastes praticando os caprichos dos pagãos entregues à dissolução, paixões, embriaguez, comilanças, bebedeiras, idolatrias abomináveis. Basta” (1Pe 4, 3). Não nos preocupemos: irão insultar-nos, nossos ex-companheiros de pecado irão insultar-nos. Isso não é ser profeta, é lembrar que o mundo precisa ser vencido dentro de nós. 

Sejamos mansos, sejamos humildes, aguentemos firme. Obedeçamos a Deus, sejamos perseverantes e amigos de Cristo — “vós sois meus amigos se fizerdes o que Eu vos mando”, disse Jesus.

A Quaresma é para nós uma ocasião de luta. Já no domingo passado ouvimos o Evangelho da tentação no deserto, onde Jesus venceu o diabo, o Tentador, dando-nos exemplo para que possamos vencer a carne, que são nossas tendências ao pecado, por meio do jejum. Mas temos como inimigos da alma não só o diabo e a carne, mas também o mundo, isto é, as pessoas que vivem em estado habitual de pecado, que têm mentalidade mundana e querem que estejamos na mesma situação. Se quisermos sair do pecado, não nos preocupemos: preparemo-nos, porque o mundo virá com toda sua fúria sobre nós, com os argumentos mais loucos, mais incoerentes e mais insensatos.

Sejamos mansos, sejamos humildes, mas sejamos ainda mais firmes, decididos, resolutos! Não voltemos atrás, porque Deus é nosso amigo, somos nós que somos nossos inimigos. Confiemos naquele que nos ama e por nós se entregou. É o que a segunda leitura nos diz: “Se Deus é por nós, quem será contra nós? Deus, que não poupou seu próprio Filho, mas o entregou por todos nós, como não nos daria tudo junto com ele? Quem acusará os escolhidos de Deus? Deus, que os declara justos? Quem condenará? Jesus Cristo, que morreu, mais ainda, que ressuscitou, e está à direita de Deus, intercedendo por nós?” (Rm 8, 31-34). Jesus não nos condenará, Ele é nosso amigo.

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