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Christo Nihil Præponere"A nada dar mais valor do que a Cristo"
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Não, você não sabe o que é melhor para a sua vida!

Se Deus é sábio, bom e poderoso, e nós, uns ignorantes, maus e impotentes, por que insistimos em confiar mais em nós do que nele? Haverá coisa mais tola e satânica do que entregar a própria vida a quem não sabe nem o que fazer direito com ela?

Texto do episódio
01

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Marcos (Mc 8,27-35)

Naquele tempo, Jesus partiu com seus discípulos para os povoados de Cesareia de Filipe. No caminho perguntou aos discípulos: “Quem dizem os homens que eu sou?”

Eles responderam: “Alguns dizem que tu és João Batista; outros que és Elias; outros, ainda, que és um dos profetas”. Então ele perguntou: “E vós, quem dizeis que eu sou?” Pedro respondeu: “Tu és o Messias”.

Jesus proibiu-lhes severamente de falar a alguém a seu respeito. Em seguida, começou a ensiná-los, dizendo que o Filho do Homem devia sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos, pelos sumos sacerdotes e doutores da Lei; devia ser morto, e ressuscitar depois de três dias.

Ele dizia isso abertamente. Então Pedro tomou Jesus à parte e começou a repreendê-lo. Jesus voltou-se, olhou para os discípulos e repreendeu a Pedro, dizendo: “Vai para longe de mim, Satanás! Tu não pensas como Deus, e sim como os homens”.

Então chamou a multidão com seus discípulos e disse: “Se alguém me quer seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e me siga. Pois, quem quiser salvar a sua vida, vai perdê-la; mas, quem perder a sua vida por causa de mim e do Evangelho, vai salvá-la”.

I. Reflexão

Olá, meus queridos irmãos, minhas queridas irmãs. É uma grande alegria estarmos juntos mais uma vez no nosso programa “Testemunho de Fé”. Aqui quem fala é o Padre Paulo Ricardo e quero convidar você, nos próximos minutos, para estarmos juntos para refletir a respeito da Palavra de Deus que a Igreja nos propõe neste 24.º Domingo do Tempo Comum. Neste domingo, nós, que estamos lendo o evangelho de São Marcos, vemos a profissão de fé de São Pedro. Trata-se do Evangelho tirado do capítulo 8, versículos 27 a 35.

É interessante a gente recordar uma coisa. A tradição nos diz que o evangelho de São Marcos é o evangelho de Pedro. Ou seja, São Pedro, humilde, simples pescador da Galiléia, não sabia falar línguas estrangeiras; ele falava o seu aramaico, simplesmente. Acontece que Jesus disse: “Ide pelo mundo inteiro e pregai o Evangelho”, e São Pedro foi pregar o Evangelho. Então, ele se serviu de um rapaz judeu, mas de cultura helênica (ou seja, de cultura grega), que sabia falar muito bem o grego. O nome dele era João Marcos; o nome dele, na língua de Jesus, (língua que São Pedro falava) era João, “Ioannes”, mas ele tinha um segundo nome, que era o seu nome grego: “Markos”, João Marcos. Foi ele quem andou Mediterrâneo afora com São Pedro, pregando o Evangelho, e traduzia o velho Pedro: Pedro contava as histórias de Jesus em aramaico, e São Marcos as traduzia para o grego.

Quando finalmente São Pedro chegou à cidade de Roma, Marcos resolveu pôr por escrito as pregações de São Pedro. Então, o evangelho de São Marcos foi, segundo a tradição, escrito numa casa que, depois, tornou-se a igreja de São Marcos, em Roma, que fica perto da Praça Veneza. Ali, São Marcos escreveu o evangelho de Pedro, e os testemunhos de Pedro ficaram tão vivos na memória de São Marcos, que muitas vezes São Marcos coloca a própria frase que São Pedro usou em aramaico porque aquilo ficou [gravado] muito forte nele. Ou seja, quando Jesus ressuscitou a filha de Jairo, quem foi testemunha disso? Somente Pedro, Tiago e João, os íntimos de Jesus que o viram olhar para a menina e dizer: “Talita kum”. Está lá no evangelho de Marcos, em aramaico. São Pedro, no Horto das Oliveiras, viu Jesus agonizando e se recordou do que Jesus disse: “Abba, Pai”. Aquilo ficou impresso em São Pedro, e por isso está lá em aramaico. Por isso o evangelho de São Marcos é o evangelho de Pedro, com todas as recordações e todas as lembranças de São Pedro.

Eu estou dizendo tudo isso por quê? Porque o Evangelho de hoje é a profissão de fé de São Pedro; então, é totalmente compreensível que São Pedro, humilde que era, sendo santo, nos relate que ele professou a fé dizendo para Jesus que Ele de fato era o Messias, e logo em seguida vem aquele episódio meio vexatório em que São Pedro aconselha Jesus a não abraçar a cruz. Aí Jesus se volta para Pedro e diz: “Vai para longe de mim, Satanás! Tu não pensas como Deus, e sim como os homens”. Só que, se você ler o evangelho de Marcos simplesmente, você notará uma grave lacuna: há uma coisa que está faltando ali, e o que está faltando? Está faltando aquilo que está no evangelho de São Mateus, capítulo 16, em que Jesus olhou para Pedro, feliz e contente, e disse: “Bem-aventurado és tu, Simão, filho de João, porque não foi a carne nem o sangue que te revelou isso, mas o meu Pai que está no céu. Eu te digo: tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja, e as portas do inferno não prevalecerão”.

Ora, é uma passagem extremamente elogiosa a São Pedro, mas São Pedro, quando pregava o Evangelho, não falava nada disso por humildade, por isso está ausente no evangelho de São Marcos. Só de a gente saber isso já é interessante, o que ilumina a leitura do Evangelho de outra forma. Vamos lá, vamos analisar, vamos olhar de perto a realidade dessa reprovação que São Pedro fez questão de documentar aqui na sua pregação. Jesus pergunta: “Quem dizem que eu sou?” Pedro responde muito corretamente, fazendo a sua profissão de fé, pela qual ficou famoso: “Tu és o Messias”; São Mateus acrescenta e especifica mais ainda: “O Filho de Deus vivo”. São Pedro não reconheceu em Jesus somente o Messias, mas o próprio Deus encarnado que está lá. É certeza que São Pedro fez isso. Por quê? Porque depois, quando Jesus foi condenado à morte, foi condenado exatamente por isso: porque “se fazia Deus”. Ou seja, os judeus não acreditaram em Jesus e o condenaram à morte exatamente porque, sendo homem (segundo eles, somente homem), se fazia igual a Deus.

Bom, São Pedro acertou dizendo que Jesus era o Ungido de Deus, que Jesus, de fato, era o Filho de Deus. Mas em seguida, uma vez que São Pedro professou a fé, uma vez que São Pedro falou corretamente, Jesus o elogiou e logo em seguida começou a falar da sua Paixão; e, falando de sua Paixão, Jesus usa termos e expressões muito parecidos com aqueles da 1.ª leitura deste domingo, que é tirada do capítulo 50 do profeta Isaías. Ou seja, Jesus está dizendo: “É verdade, Pedro, eu sou de fato o Messias, o Ungido, o Cristo, aquele que foi prometido; mas eu sou também aquela figura misteriosa do Antigo Testamento, do profeta Isaías, que vocês não sabem quem é: aquele Servo sofredor descrito tão maravilhosamente por Isaías nos três cânticos do Servo sofredor”.

Aí São Pedro “encrespa” o negócio! São Pedro não aceitou. São Pedro, então, viu que aquelas palavras de Jesus pareciam inconvenientes. São Pedro chama Jesus de lado. Jesus disse isso abertamente. (O evangelho de São Marcos é claro. Olhe o versículo 32: “Ele dizia isso abertamente”.) Aí São Pedro, com prudência humana, chama Jesus de lado e diz: “Jesus, vem cá! Deixa eu falar uma coisinha no teu pé de ouvido”. São Pedro tomou Jesus à parte e começou a repreendê-lo: “Jesus, esse negócio de morrer na cruz… Aí não, né? É melhor não”. Jesus, então, se voltou para Pedro, olhou para os discípulos e, diante deles, fez Pedro passar a maior vergonha. Ou seja, São Pedro, que acabou de ser elogiado na frente de todo o mundo, agora passou a maior vergonha que ele podia passar: foi chamado de Satanás! “Tu não pensas como Deus, e sim como os homens”.

São Mateus, que conta o episódio com mais detalhes, diz assim: São Pedro acabou de ser chamado de “pedra sobre a qual edificarei a minha Igreja”; Jesus olha para ele e diz: “Você é um escândalo! Você é uma pedra de tropeço!” (É pedra nos dois sentidos: é pedra para edificar e pedra para tropeçar.) Aí vem a pergunta, e aqui a gente chegou ao centro do que eu gostaria de dizer para vocês nessa reflexão: o que fez com que Pedro fosse pedra de tropeço, fosse esse escândalo? Por que Jesus foi tão duro com São Pedro, quando parece que, no fundo, no fundo, São Pedro queria o bem de Jesus? Afinal de contas, quem de nós, ao ouvir Jesus dizendo: “Olhe, eu vou para Jerusalém. Lá eu vou sofrer muito, vou ser rejeitado, vou morrer”, quem de nós diria: “Isso mesmo, Jesus. Vá lá morrer. Que legal”? Não, São Pedro disse: “Misericórdia, Jesus”, “Avertat a te Deus”, que Deus não deixe isso te acontecer! 

Jesus aqui está mostrando para São Pedro que este bem que São Pedro quer para Jesus não é o verdadeiro bem, e Ele diz isso numa frase muito clara no evangelho de São Marcos: “Tu não pensas como Deus, mas como os homens”. Jesus repreende São Pedro, além de chamá-lo de Satanás, ou seja, de opositor, de antagonista, de acusador (“Satã” quer dizer isso: o acusador, o advogado que acusa). Jesus diz aqui, no evangelho de São Marcos, uma coisa interessante; diz que “tu não pensas as coisas de Deus”. No original grego está escrito assim: ὅτι οὐ φρονεῖς τὰ τοῦ θεοῦ. Φρονεῖς quer dizer o seguinte: o φρόνημα é ao mesmo tempo “pensamento” e “sentimento” — digamos assim, a “vontade” —, ou seja, está dizendo que “o seu coração não é o coração de Deus”. A palavra φρήν, em grego, é a membrana que envolve o coração, como se fosse uma espécie de membrana que está no centro da pessoa. É claro que Jesus não está falando do coração, do músculo cardíaco de Deus, porque Deus não tem músculo cardíaco. Não é isso, mas está dizendo: “o interior da pessoa”. “Tu não pensas, Pedro”, ou seja, “tu não tens os sentimentos, tu não tens a mentalidade, tu não tens a visão de Deus”.

Para você enxergar a verdade, você tem de enxergar do jeito que Deus enxerga, e Jesus, repreendendo, diz: “Não pensas as coisas de Deus” (τά, o artigo aqui é neutro plural. A gente geralmente traduz em português como “as coisas”: ὅτι οὐ φρονεῖς τὰ τοῦ θεοῦ, “as de Deus”, “as coisas de Deus”; ἀλλὰ, “porém”, τὰ τῶν ἀνθρώπων, “mas as dos seres humanos”). Ou seja, São Pedro está pensando com uma prudência humana, está pensando como qualquer ser humano pensaria instintivamente. Diante da morte, o que eu quero? Fugir dela! A gente tem de ver uma coisa, gente: se você tem, de um lado, a Deus e, do outro lado, a você, é evidente que você tem de querer enxergar as coisas do jeito que Deus enxerga e fazer as coisas do jeito que Deus quer.

Por quê? Pelo simples fato seguinte. Vamos constatar: quem são essas duas pessoas? Quem é Deus e quem é você? Deus é sábio. Ele é a sabedoria, Ele é a fonte de toda a sabedoria. E você? Quem você é? Gente, nós somos ignorantes, nós somos seres humanos ignorantes! Nós nem sabemos o que é o nosso bem. Quantas e quantas vezes estamos numa encruzilhada e não sabemos o que fazer? Nós temos de pedir conselhos para outras pessoas. Já aconteceu isso com você? É exatamente isso. São Pedro está dando um péssimo conselho para Jesus. Por quê? Porque ele está pensando de forma humana. Deus é sábio, nós somos ignorantes; Deus é bom, Deus sempre quer o bem. Ele não somente é sábio: Ele quer o bem, Ele é o sumo bem e, quando Ele quer, Ele quer o bem. E Deus não somente é sábio, não somente é bom, mas Deus pode: Deus é poderoso. E nós? Nós somos ignorantes, nós somos maus porque nem sempre queremos o bem, e nós somos impotentes.

Agora pense bem: na mão de quem você vai querer entregar a sua vida? Já pensou? A sua vida está nas mãos de um sujeito ignorante, mau e impotente. Já parou para pensar nisso? A sua vida está na pior situação. Você está perdido, você está entregando a sua vida nas mãos de um sujeito ignorante, mau e impotente, quando você poderia fazer o contrário: entregar a sua vida nas mãos de Deus, que é sábio, bom e poderoso. Agora, o que acontece? Se você é ignorante, os seus pensamentos, o seu φρόνημα, a sua mentalidade, o jeito como você enxerga não é como Deus enxerga. Deus enxerga a verdade, Deus enxerga o que é; você, ignorante, vê coisas distorcidas.

Quantas e quantas vezes, por exemplo, a gente vai a um médico… Vamos supor que você tenha um médico muito bom, no qual você pode realmente confiar porque o sujeito é super-estudioso, um desses médicos que têm trinta anos de prática de medicina, nunca parou de estudar, nunca parou de se atualizar, nunca parou — o cara é o “bambambam”, ele é muito sábio. Aí você chega lá, senta na cadeira e já chega com um diagnóstico! Foi o que aconteceu comigo outro dia. Eu fui ao médico. Estava com uma dor no ombro, e todo o mundo dizia: “Essa é dor lombar, ou isso é bursite, é bursite, é bursite…”. Eu fui ao médico. O médico, muito experiente, me fez fazer uns movimentos e disse: “Padre, isso não é bursite de jeito nenhum; se fosse bursite, esse movimento aqui o senhor não o estaria fazendo, e o senhor o está fazendo perfeitamente. O seu problema é outro: o seu problema está no manguito rotador”. Eu disse: “Prazer! Nem sabia que eu tinha um ‘manguito rotador’”. O médico sabe, eu sou ignorante. Gente, eu estava tentando todo tipo de remédio para uma doença que eu não sabia qual era. Eu era ignorante, eu estava achando que era uma coisa, e era outra; agora eu sei o que tenho, agora eu posso fazer alguma coisa. Então, isso é uma comparação boba e banal, mas é a comparação que você pode fazer com a sua vida.

Quantas vezes você está batendo com a cabeça na parede porque acha que a solução da sua vida “é tal coisa, é tal coisa, é tal coisa”, ou: “não, isso é a solução, é a solução, é a solução…”. Cara, abrace a cruz aqui: “Não, isso não pode ser a solução”! Mas como “não pode ser” a solução? Muitas vezes, abraçar a cruz é a solução de tudo! Por quê? Porque você está gastando a sua vida batendo a cabeça numa parede que não vai virar porta nunca! Naquilo lá não vai abrir uma porta, e as pessoas fazem isso… Por quê? Porque são soberbas e acham que sabem qual é a solução. Quanta gente, por exemplo, chega ao absurdo de brigar com Deus. Vai lá rezar e chega dizendo: “Deus, você diz que é bom. Como você é bom, se você não está dando o que eu quero?! Eu, o grande eu; eu, o sábio eu; eu, o maravilhoso eu, que estou aqui. Deus, sente aí na carteirinha de estudante na escola, sente na mesinha e anote, Deus, que eu vou lhe ensinar do que eu preciso”.

Veja, gente, estou aqui ironizando, falando essas coisas exatamente para você entender a soberba de um sujeito que quer ensinar a Deus as coisas. São Pedro está querendo ensinar Jesus. São Pedro, aqui no Evangelho, está querendo chegar e dizer: “Jesus, a cruz não. Vamos resolver de outro jeito. O Senhor salve a humanidade de outro jeito. O Senhor marque um dia, e vêm os discos voadores com a cavalaria intergaláctica para salvar a gente. O Senhor faça de um jeito hollywoodiano aí, mais legal. O Senhor venha montado num cavalo branco e salve a gente de outro jeito. Cruz não, a cruz é feia, cruz dói”. Jesus olha para Pedro e diz: “Pedro, essa sua mania humana de querer fugir da cruz é satânica”.

Sim. Eu estou dizendo isso para você, católico bonzinho, por quê? Porque quantas e quantas pessoas acham que estão “servindo” a Deus! “Não, imagine, Deus não quer que você sofra, Deus não quer que você abrace uma cruz, porque Deus é bom”. Mas você está medindo Deus conforme a sua medida. Quem disse que Deus não está permitindo uma cruz porque exatamente essa cruz é a melhor coisa que podia acontecer na sua vida, para fazer de você uma pessoa melhor, para tirar você do seu egoísmo e salvar a sua alma? Nós temos de estar abertos, meus queridos, nós temos de estar abertos a outras possibilidades que não as nossas soluções. É isso o que o Evangelho de hoje nos ensina.

Então, vamos ver de forma bem prática. Você chega e diz: “Padre, o senhor falou, mas e aí: como eu faço?” Bom, a primeira coisa: você quer seguir Jesus? Faça o que Jesus está dizendo a você: “Se alguém quer me seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e me siga, pois quem quiser salvar a sua vida vai perdê-la, mas quem perder a sua vida por causa de mim e do Evangelho vai salvá-la”. Transforme a sua dor em amor. “Abraçar a cruz” quer dizer isso. Renuncie a essa ideia preconcebida que você tem de que Deus é o “deus do analgésico”, um deus que não quer sofrimento de jeito nenhum. Deus, o que Ele não quer é egoísmo de jeito nenhum; o que Ele não quer é pecado de jeito nenhum; o que Ele não quer é maldade de jeito nenhum. Mas às vezes, como um pai bondoso, Ele tem de permitir algumas coisas desagradáveis na nossa vida. Então abrace isso, renuncie à sua ideia preconcebida, renuncie à sua mentalidade apegada às suas soluções e abrace!

Abraçar a cruz é exatamente o quê (na prática, concretamente)? Abraçar a cruz é abraçar coisas que estão na sua vida, estão contrariando a sua vontade e que você vê claramente que não têm solução. Têm solução? Se têm, então vá lá e solucione. Mas enquanto não soluciona, abrace. Não têm solução? “Não, não têm”, então abrace. Essa é a atitude da vida. Aquilo que contraria a sua vontade você pode abraçar e transformar em amor, dizendo: “Jesus, por amor a vós, por amor a vós eu abraço essa contrariedade; por amor a vós eu abraço essa cruz”. 

Então, como Pedro, ouçamos Jesus, que nos diz: “Tu não pensas como Deus, tu não pensas as coisas de Deus”, ou seja, “a sua mentalidade está apegada a um jeito humano de pensar. Renuncie a essa sua opinião, renuncie a si mesmo”. É isso: “Abrace outra vontade, e embora essa vontade de Deus o esteja contrariado, abrace-a com amor, transformando dor em amor. Aí você vai ver que esse é o caminho da salvação, porque quem salvar a própria vida vai perdê-la, mas quem perder a sua vida por amor de mim e do Evangelho vai salvá-la”. Quem está nos dizendo isso é Jesus, mas é também São Pedro, que aprendeu — aprendeu com a experiência da vida — e morreu crucificado por amor a Jesus.

Deus abençoe você. Em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Amém. 

II. Comentário exegético

Jesus em Cesaréia de Filipe (cf. Mt 16,13-28; Mc 8,27-39; Lc 9,18-27). — Os sinóticos seguem uma lógica comum. Narrados os milagres e as pregações de Cristo, i.e. as provas de sua missão divina e o núcleo de seu magistério, Mt., Mc. e Lc. convergem no mesmo ponto: a profissão de fé petrina. Trata-se, para muitos exegetas, do momento mais solene do Evangelho, do qual é como o centro e o coração. Três elementos principais compõem o episódio: 1) a confissão de Pedro, 2) a predição da paixão e morte do Senhor e 3) uma exortação à abnegação.

1. A confissão de Pedro (cf. Mt 16,13-20; Mc 8,27ss; Lc 8,18ss). — V. 13s. Como Jesus viesse a Cesaréia de Filipe (antigamente Pânias [1], hoje Banias), aos pés do monte Hermon, na Galauntide superior (a cerca de 45 km da margem setentrional do lago de Tiberíades), depois de passar sozinho a noite em oração, aproximaram-se dele os discípulos (Lc.), e, no caminho (Mt.), perguntou-lhes que opinião tinham as multidões sobre o Filho do homem. Os discípulos disseram o que ouviram do povo: para alguns, era João Batista, que voltara à vida, como já Herodes tinha pensado (cf. Mt 14,2); para outros, era Elias, o precursor do Messias (cf. Ml 4,5s); para outros, era Jeremias, muito venerado pelos judeus (cf. 2Mc 2,1-9; 15,13-16), ou então algum dos profetas.

V. 15s. Mas Jesus, que levantara a questão para pôr à prova a fé dos discípulos, continuou a perguntar: E vós quem dizeis que eu sou? Pedro, superando os outros tanto pelo fervor de sua índole como pelo ardor e a firmeza de sua fé, responde prontamente em nome de todos: Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo. Diz portanto duas coisas: a) Tu és o Messias esperado pelos judeus e, acima de tudo, 2) és de modo especial o Filho (ὁ υἱὸς) de Deus vivo, assim chamado por oposição aos ídolos, “deuses” mortos, i.e. falsos, fabricados por mãos humanas (cf. Sl 113,4ss). — Em Mc.–Lc. a resposta é mais sucinta (Tu és o Cristo; o Cristo de Deus), por isso afirmaram alguns racionalistas e protestantes liberais, aos quais se juntam poucos católicos, que o texto de Mt. diria o mesmo que o de Mc.–Lc., de forma que o Apóstolo teria reconhecido só a messianidade de Cristo, mas não sua divindade [2]. No entanto, devido ao elogio que Jesus faz a Pedro e à expressão o Filho de Deus vivo [3], que em lugar algum é usada como sinônimo de Messias, essa opinião é inadmissível. O contexto impede, com efeito, que as palavras de Pedro equivalham às ditas anteriormente pelos discípulos na barca (cf. Mt 14,33).

Ora, se Pedro reconheceu a filiação divina de Cristo, esta não pode ser senão natural, e não meramente adotiva, uma vez que o príncipe dos Apóstolos atribui ao Mestre algo que não compete a Elias, a Jeremias nem a nenhum dos profetas, os quais eram, não obstante, filhos de Deus por adoção. Estão de acordo com isso não poucos racionalistas modernos e de longe a maioria dos católicos; daí que os Santos Padres e os teólogos sempre tenham visto nesse trecho um argumento adequado para sustentar e confirmar a divindade de Nosso Senhor.

V. 17. Respondendo Jesus, disse-lhe: Bem-aventurado és, Simão Bar-Jona, porque não foi a carne e o sangue (σὰρξ καὶ αἷμα) que te revelaram etc. Cristo começa aprovando plenamente as palavras de Pedro e declarando-o bem-aventurado por ter-se aberto com docilidade e fé à revelação do Pai. — A locução tipicamente hebr. carne e sangue (וָדָם בָּשָֹר) designa um ente vivo por referência a um duplo elemento, um passivo (carne) e outro ativo (sangue). Trata-se de uma circunlocução para referir-se ao homem do ponto de vista de sua fragilidade, sobretudo quando é contraposto a Deus, como aqui (cf. e.g. 1Cor 15,50; Gl 1,16; Ef 6,12); logo, não foi a natureza, a força do intelecto ou dos afetos humanos nem homem algum (cf. Gl 1,16) que te revelaram isto, i.e. que te inspiraram estas palavras a meu respeito, mas foi o meu Pai, que está nos céus, quem te manifestou este mistério por uma luz sobrenatural.

N.B. — São chamados na Escritura felizes ou bem-aventurados (gr. μακάριοι, lt. beati) os que recebem algum benefício especial de Deus ou uma graça de todo indevida, especialmente se tem relação com a vida eterna. — Note-se o paralelismo entre o macarismo em que Jesus prorrompe e o de Isabel, movida pelo Espírito Santo, quando da visita da Virgem deípara: Bem-aventurado és, Simão e Bem-aventurada és tu pelo mesmo motivo fundamental, a saber: a fé sobrenatural de um e de outra (cf. Lc 1,45).

V. 18a. E eu, de minha parte, digo-te que tu és Pedro etc. Nestes quatro vv. Jesus confere a Pedro: a) um novo nome; b) o ser o fundamento da Igreja; c) as chaves do reino; d) e plena potestade de governo.

a) Tu és Pedro. O nome que já antes prometera a Simão, filho de Jonas (cf. Jo 1,42), Jesus o confirma agora e explica: doravante, Simão será chamado Pedro. Petrus é a transliteração em lt. do nome gr. Πέτρος, versão literal, por sua vez, do aram. Kêphâ (כּיפָא) = rocha, o qual, sem dúvida, deve ter sido usado por Cristo: Tu és Kêphâ [4]. A razão desta mudança de nome funda-se no cargo confiado de agora em diante a Pedro.

b) E sobre esta pedra edificarei a minha Igreja (μου τὴν ἐκκλησίαν, com art. def., i.e. a minha única Igreja). — Para captar a força da expressão, atente-se a que o Senhor valeu-se aqui de certo jogo de palavras, que nem em lt. nem em gr. pode exprimir-se adequadamente: Tu és Kêphâ, e sobre este Kêphâ edificarei etc. [5], o que é o mesmo que dizer: e sobre ti, a quem chamei pedra, ou: e sobre esta pedra que tu és, edificarei etc. Noutras palavras: Hei de constituir-te fundamento do edifício espiritual que pretendo erigir. Cristo, por conseguinte, é como um arquiteto que planeja a construção de uma casa, e Simão, filho de Jonas, será a pedra sobre a qual todo o edifício estará apoiado. Eis por que lhe convém o nome Kêphâ. — Conclusão teológica: Ora, se o fundamento está para o edifício, a saber: como princípio de sustentação, estabilidade e continuidade (cf. Mt 7,24s; Lc 6,48), assim como Pedro está para a Igreja, e se o princípio de sustentação etc. na sociedade humana (com a qual a Igreja, em sua constituição, guarda estreita analogia, assim como a ordem sobrenatural é análoga à natural) não é senão o exercício da legítima autoridade, então é evidente que essas palavras outorgam a Pedro o principado da Igreja, i.e. um cargo de chefia e governo [6].

N.B. — 1) A metáfora edificar a Igreja é de sentido óbvio e foi utilizada mais tarde por São Paulo (cf. 1Cor 3,9-17; Ef 2,19-22 etc.). Parece derivar das passagens do AT em que o povo israelita é chamado casa de Israel, casa de Deus etc. — 2) A palavra ecclesia (ἐκκλησία), assim como o sinônimo synagoga (ambas equivalentes ao hebr. qāhāl), já no AT é utilizada para significar o conjunto, a assembleia, a congregação etc. dos fiéis judeus (cf. Nm 16,3; 20,4; Dt 23,2s; Sl 21,23.26; 34,18 etc.). — 3) No entanto, o v. 19 deixará claro que, a partir de agora, a ecclesia não se limita mais à carne e ao sangue judeu, i.e. ao povo de Israel, mas estende-se à terra inteira, que passa a estar unida, como um só corpo ou família, aos céus, de onde Deus confirma tudo o que, no exercício de sua função, decidir a suprema autoridade eclesiástica.

Observação: A Pedro compete um duplo primado: a) um de jurisdição, sobre toda a Igreja, fundado em b) um de fé divina, por ter sido ele o primeiro dos Apóstolos a professar a divindade de Jesus Cristo. Daí o listarem os evangelistas como o primeiro entre os Apóstolos: πρῶτος Σίμων ὁ λεγόμενος Πέτρος, i.e. o primeiro, Simão, chamado Pedro (Mt 10,2). Primeiro em honra e poder, por ter sido a primeira pedra e o sujeito do primeiro ato de fé a partir do qual o Senhor edificaria o novo Israel: Sobre esta fé etc. Donde se segue que o vínculo primeiro e fundamental que nos faz membros da Igreja é a fé, mas não qualquer uma: é a mesma fé, católica e apostólica, professada por Pedro, graças à iluminação interior do Pai celeste.

V. 18b. É uma consequência das palavras anteriores: Pedro será o fundamento da Igreja, razão de sua firmíssima estabilidade, e por isso as portas do inferno não prevalecerão (κατισχύσουσιν) contra ela (καὶ πύλαι ᾅδου οὐ κατισχύσουσιν αὐτῆς). — Porta é uma metonímia típica do hebr. para significar cidade (cf. Gn 22,17; 24,60; Dt 5,14; Sl 86,2). — Inferno (Ἅδης) corresponde aqui ao vocábulo sheol e significa domicílio dos mortos, i.e. o lugar onde ficavam detidas as almas dos defuntos que ainda não gozavam a visão de Deus; mas, na época de Cristo, quando a diferente sorte dos bons e dos maus já fora mais bem revelada, servia para designar também o cárcere em que os condenados são punidos com eternos suplícios (cf. Lc 8,31; 16,22ss; Mt 25,41; Ap 1,18; 20,13 etc.), o qual é representado várias vezes como um poder ou reino contrário a Deus (cf. 1Pd 5,8; Ap 9,1; 12,7 etc.). — Disto decorrem duas interpretações possíveis: a) portas do inferno = o poder da morte (i.e. a própria morte, cf. Is 38,10; Sl 9,15; 106,18; 38,17), embora seja mais forte do que tudo neste mundo, não será todavia mais forte do que a Igreja (noutras palavras, a Igreja é imortal e jamais perecerá); b) portas do inferno = os poderes diabólicos ou das trevas (cf. Lc 22,53), que levam as almas para o inferno, nunca triunfarão contra a Igreja nem farão cessar sua obra salvífica, continuação da mesma obra de Cristo [7]. — É preferível a segunda interpretação por conta do verbo κατισχύω (= sobrepujar, impor-se a, sujeitar etc.), que supõe tentativas hostis positivas de destruir a Igreja.

V. 19. Explica com outra imagem o ofício de Pedro: E eu te darei as chaves do reino dos céus. Ora, aquele que detém as chaves da casa ou da cidade, segundo o uso bíblico, não é simples porteiro, mas ecônomo (οἰκονόμος) ou administrador da casa, i.e. o responsável por dispensar à família do senhor ou aos súditos do rei o que lhes for necessário (cf. Is 22,22; Ap 3,7ss etc.) [8]. Sem metáfora, o sentido é: Eu te darei a suprema administração do reino. Pedro será na Igreja [9] o ecônomo ou o ministro régio, por quem tudo será dirigido. Até onde porém se estende este poder administrativo, declara-se com mais uma imagem: Tudo o que ligares na terra etc., locução que, embora em seu uso rabínico não signifique nada mais que declarar algo lícito ou ilícito, não se restringe aqui ao papel de um jurisconsulto ou de um rabino, senão que, em razão do contexto, se aproxima mais do sentido grego das palavras, i.e. significa a potestade legislativa suprema (a ninguém subordinada) e verdadeiramente universal (ὃ ἐάν = tudo o que, tudo quanto, qualquer coisa etc.). Ora, tal poder não seria universal (sobre coisas e sobre homens) a menos que incluísse o poder não só disciplinar e doutrinal, mas inclusive o de perdoar pecados. Logo, Cristo promete que tudo o que Pedro, enquanto administrador do reino dos céus, decretar ou decidir, estará confirmado aos olhos de Deus. Noutras palavras, Cristo confere-lhe um verdadeiro poder legislativo na Igreja e, por conseguinte, a autoridade de obrigar por força ao cumprimento de suas leis.

O Senhor proclama, pois, e ilustra o primado de Pedro e seus sucessores no pontificado com uma tríplice metáfora ou símbolo (da pedra, das chaves e da faculdade de ligar e desligar). Essa doutrina, embora claramente atestada na Escritura, é todavia impugnada pelos cismáticos orientais. Mas consta historicamente que também os bizantinos, até a época do cisma de Fócio, i.e. durante os oito primeiros sécs. da história eclesiástica, criam no primado jurisdicional dos pontífices romanos enquanto sucessores de Pedro. São Teodoro Estudita, e.g., em carta ao papa Leão III (cf. MG 99,1155), saúda-o como sucessor do príncipe dos Apóstolos (διάδοχος τοῦ τῶν ἀποστόλων κορυφαίου), e afirma em outra epístola (cf. ad Pasc.: MG 99,1017) que o romano pontífice é o pastor supremo da Igreja debaixo do céu (ἀρχιποίμην τῆς ὑπ’ οὐρανὸν Ἐκκλεσίας). Ninguém menos que São Metódio, apóstolo dos eslavos, escreve em seu Νομοκάνων contra a teoria da translação do primado da antiga para a “nova Roma” (i.e. Constantinopla): “Não é verdade que foram os antigos Padres que atribuíram à velha Roma um primado para que fosse cabeça do império, senão que este primado lhe vem do alto, pela graça divina. Pois foi por causa do grau de sua fé que o príncipe dos Apóstolos, Pedro, mereceu ouvir estas palavras da boca mesma de Nosso Senhor Jesus Cristo: Pedro, tu me amas? Apascenta as minhas ovelhas. Eis por que obteve entre os prelados o principal lugar e a primeira sé” (cf. M. Jugie, Theologia dogmatica…, vol. 1, Paris, 1926, p. 111s).

V. 20. Após a confissão de Pedro, Jesus ordenou aos discípulos que não dissessem a ninguém que ele era o Cristo, i.e. o Filho de Deus vivo, como Pedro acabara de professar abertamente, já que os Apóstolos não tinham ainda recebido a luz do Espírito Santo para anunciar esse dogma, e porque, como a pregação apostólica só deveria começar depois da paixão e morte de Cristo, acabariam, mais do que propagar a fé, por causar escândalo e pôr-se a si mesmos em perigo, caso evangelizassem antes da hora. É o que parece dar a entender Lc. (9,21s): Ordenou-lhes energicamente que não o dissessem (i.e. o que Pedro acabara de confessar) a ninguém, e diz a causa: Ele acrescentou: É neces­sário que o Filho de homem padeça muitas coisas etc.

2. O primeiro anúncio da paixão (cf. Mt 16,21ss; Mc 8,31ss; Lc 9,22). — V. 21. Até agora, o Senhor nada ensinara aos Apóstolos, exceto por alusões veladas (cf. Jo 2,19; 3,14s; Mt 9,15), a respeito de seu destino; desde então (ἀπὸ τότε), i.e. desde o tempo em que viu os discípulos cientes de sua divindade (não necessariamente “logo após” a cena anterior), Jesus começou a manifestar-lhes (Mc. abertamente, παρρησίᾳ) que era preciso, segundo a vontade divina muitas vezes manifestada nos vaticínios do AT, que ele, o Filho do homem, sofresse muitas tribulações da parte dos judeus, nominalmente: dos anciãos, escribas e chefes dos sacerdotes, fosse rejeitado por eles (Mc.–Lc. ἀποκτανθῆναι), que por fim o condenariam à morte, e ao terceiro dia ressuscitasse dentre os mortos. Contempla-se de perto a imagem do Servo sofredor de Javé (cf. Is 53 passim).

V. 22. O anúncio desse drástico desfecho não pode não ter soado incompreensível aos Apóstolos, imbuídos, como o resto do povo, das mesmas ideias vulgares acerca de um Messias glorioso, motivo por que é no mínimo duvidoso que eles tenham entendido bem as palavras do Senhor; talvez pensassem que deveriam interpretá-las em sentido figurado (cf. Mc 9,21; Lc 9,45), pois sabiam que o Mestre falava às vezes por parábolas. Pedro, no entanto, sem dúvida alguma as entendeu em sentido próprio, ao menos quanto às perseguições dos judeus e às tentativas de homicídio. Inconformado pois com a sorte do Mestre, tomou-o à parte (Mc 8,32), ou para dissuadi-lo mais facilmente, ou porque não se atrevia a falar-lhe em termos mais duros na frente dos outros, começou a interpelá-lo e protes­tar, i.e. a falar com veemência, mas com afeto de quem ama: Que Deus não permita isso (em gr., na verdade, ἵλεώς σοι = Que Deus te seja propício), Senhor! Isso não te acontecerá!

V. 23. Ele, voltando-se, i.e. olhando indignado para Pedro, ou virando-lhe o rosto em sinal de indignação, ou, segundo outros, voltando-se para os demais discípulos, disse a Pedro: Afasta-te, Satanás, i.e. sai daqui, adversário, tu és para mim um escândalo, i.e. tentas impedir-me de cumprir a vontade divina; teus pensamentos não são de Deus (οὐ φρονεῖς τὰ τοῦ θεοῦ = não compreendes as coisas de Deus), quer dizer, a disposição divina para a redenção do mundo, mas as dos homens, que aborrecem tudo o que repugna e contraria a natureza; são ainda demasiado humanas e carnais as ideias que tens do Messias.

Observação: Assim como a encarnação do Filho de Deus se ordenou de fato à redenção do gênero humano, pela qual Cristo mereceu sua ressurreição e glorificação, assim também, na narrativa evangélica, à profissão petrina da divindade de Cristo se segue o anúncio da paixão e a este, pouco depois, a cena da Transfiguração, como se por três etapas escalonadas quisesse Cristo propor os três capítulos principais da fé cristológica, desde a sua vinda de junto do Pai até o seu retorno, tendo atravessado o vale da morte, à glória dos céus: 1.º Encarnação: “Creio em Jesus Cristo, seu único Filho, Nosso Senhor, que foi concebido pelo poder do Espírito Santo”; 2;.º Paixão: “Padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado”; 3.º Glorificação: “Ressuscitou ao terceiro dia, subiu aos céus, está sentado à direita de Deus Pai todo-poderoso”.

3. Exortação à abnegação (cf. Mt 16,24-28; Mc 8,35-39; Lc 9,23-27). — Por ser necessário que os discípulos tomem parte na sorte do Mestre, com boa lógica os três sinóticos concluem a predição da paixão com algumas graves advertências sobre a necessidade de renunciar a si mesmo e carregar a cruz todos os dias. É lícito questionar, em todo o caso, se foram ditas nestas mesmas circunstâncias, visto que em Mc. são dirigidas explicitamente às multidões.

V. 24 (Mc 8,34). E, chamando a si o povo com seus discípulos, disse-lhes (em Lc. a todos): Se alguém me quer seguir (ὀπίσω μου ἀκολουθεῖν), i.e. ser verdadeiro discípulo meu, negue-se (ἀπαρνησάσθω = lit. ignore, desconheça, cf. Is 31,7; Lc 12,9; 22,34) a si mesmo, i.e. trate-se como se fora um estranho, esqueça-se de si, prefira-me a seus próprios interesses, não tenha em conta alguma a si e todas as suas coisas; tome a sua cruz: os condenados ao suplício da cruz tinham de carregar sozinhos o patíbulo ou mesmo a cruz inteira, e siga-me; do mesmo modo, o discípulo de Cristo deve suportar dia após dia (Lc. καθ’ ἡμέραν), com paciência e fortaleza, as adversidades e injustiças, e dessa forma siga-me até a morte, i.e. persevere até o fim nessas disposições. A locução em Mt.–Mc. tome a sua cruz pode ser lida em sentido próprio = siga-me até o suplício, i.e. mantenha-se fiel até o martírio.

V. 25 (Mc 8,35). É uma repetição de Mt 10,39: O que se prende à sua alma (= a si mesmo), i.e. o que se livra da morte negando a Cristo, ou também (εὑρών, aoristo gnômico incoativo = o que buscar…), como em Lc.: o que procurar [salvar] a sua alma (= a si mesmo) da morte ou livrar-se de algum prejuízo temporal, perdê-la-á, i.e. perderá a si mesmo (deitará a perder a vida eterna, ou: também nesta vida); mas, pelo contrário, quem se expõe a um perigo para a vida material por meu amor, por causa de mim ou do meu Evangelho (Mc.), achá-la-á, gozará da vida verdadeiramente feliz. É um λόγιον tão familiar a Cristo, que se encontra seis vezes nos evangelhos (cf. Mt 10,39; 16,25; Mc 8,35; Lc 9,24; 17,33; Jo 12,25).

Referências

  1. Assim se chamava o lugar por causa do deus Pã, a quem era especialmente dedicado.
  2. Que em Mc.–Lc. não se leiam as palavras o Filho do Deus vivo nada prova contra a autenticidade de Mt 16,16ss nem contra o sentido cristológico da confissão de Pedro em Mc.–Lc. a) Com efeito, é sabido que nenhum dos evangelistas teve a pretensão de narrar todos os ditos e feitos de Cristo, e que há muitas coisas registradas apenas por Mt. — b) Tampouco faltam razões para que o segundo e o terceiro evangelhos omitam essas palavras: α) por um lado, é consentâneo que Pedro, em sua pregação, tenha calado por humildade um fato que o enobrecia, e como Mc. quis refletir fielmente a catequese dele, não é de estranhar que em seu evangelho relate o episódio em termos gerais; β) por outro lado, visto que o terceiro evangelho parece depender em muitas coisas da narração de Mc., é natural que Lc. tenha recebido o diálogo entre Cristo e Pedro de forma “incompleta”, i.e. abreviada; γ) por último, ainda que se admita a hipótese de uma interpolação no texto de Mt., ainda ficaria sem explicação: (i) por que ela ocorreu apenas no primeiro evangelho, e não nos demais, (ii) como os cristãos, durantes sécs., toleraram sem qualquer oposição que a igreja romana adulterasse o Texto sagrado em matéria tão importante, a saber: a própria estrutura hierárquico-monárquica da Igreja, (iii) e o motivo de Simão ter recebido o nome de Pedro, atestado tanto em Mc. (cf. 3,6) como em Lc. (cf. 6,14).
  3. São João Crisóstomo, MG 58,533: “Se Pedro não o [Jesus] tivesse verdadeiramente confessado como gerado pelo próprio Pai, não seria isto obra de uma revelação; se o considerasse um dos muitos [profetas, filhos de Deus por adoção], não seria isto digno de bem-aventurança. Com efeito, já antes disseram os que estavam na barca depois da tempestades: Este é verdadeiramente o Filho de Deus (Mt 14,33), mas nem por isso foram chamados bem-aventurados, embora tenham dito a verdade. Logo, não confessaram o Filho como Pedro o confessou”.
  4. Alguns aa. (e.g. Strack–Billerbeck i 731s) opinam que Jesus, falando em aram., teria usado o nome Petros. No entanto, já nas primeiras comunidades cristãs era comum usar o nome Cephas para referir-se ao príncipe dos Apóstolos (cf. 1Cor 1,12; 2,22; 9,5; 15,5; Gl 1,18; 2,9; 11,14).
  5. Segundo Burney, Jesus teria dito em aram: We amarana lak: de ’att hû kêphâ, we ‘al hāden kêphâ ’ebn’e liknishti, o que equivale a: “Eu te digo: tu és rocha, e sobre esta rocha edificarei a minha Igreja”.
  6. Houve entre os Padres quem interpretasse essas palavras de Cristo aplicando-as ora aos Apóstolos e bispos em geral, ora à fé (mas não à pessoa) de Pedro, ora ao próprio Cristo. Resp.: Já São Roberto Belarmino fez notar que essa interpretação é proposta apenas em exposições morais do Evangelho: quando expõem ex professo, i.e. dogmaticamente essa passagem, todos dizem que se trata da pessoa de Pedro. — Os protestantes em geral sustentam que as palavras não se referem a Pedro, mas a Cristo, que se teria indicado a si mesmo (“sobre esta pedra”) por algum gesto ou sinal; para outros, referem-se não à pessoa, mas à de Pedro, e por isso se aplicariam tanto a ele quanto aos outros Apóstolos, em cujo nome se pronunciou. Resp.: Embora seja verossímil que Pedro tenha querido responder por si e pelos outros, Cristo se dirige única e expressamente a ele, apesar de ter interrogado a todos: Bem-aventurado és, Simão, filho de Jonas etc. Jesus fala da fé de Pedro como da causa pela qual (e não como do sujeito ao qual) concederá a graça do pontificado. Além disso, é perverter o texto com um absurdo e contrassenso dizer que algo é “construído” sobre a qualidade de outrem. Conquanto a fé seja, sim, por certo ângulo, o fundamento da Igreja, as palavras de Cristo neste contexto designam in recto o fundamento visível dela (ἐπὶ ταύτῃ τῇ πέτρᾳ), e só in obliquo o seu fundamento espiritual. — Tampouco é problema para o dogma católico que em Mc.–Lc. não se leiam as palavras da instituição petrina: E sobre esta pedra edificarei a minha Igreja, pelas mesmas razões apresentadas supra, na nota 2.
  7. M. J. Lagrange, Évangile selon saint Matthieu, Paris, 1923,2 p. 326: “É pois a luta de um edifício, que é o império do mal, contra a Igreja, que é a casa de Cristo. Satã não é mencionado nem designado diretamente, nem mesmo os poderes infernais. Mas se as portas são atuantes, é porque representam a cidade [do mal, de Satã, dos poderes infernais]”.
  8. As chaves não são aqui símbolo da ciência (como em alguns lugares do Texto sagrado, cf. Lc 11,51; 24,32), por isso não se promete a Pedro uma autoridade meramente doutrinal. Com efeito, “a função de mordomo ou superintendente descrita por Isaías era o mais alto cargo da corte: o mordomo tem a chave do palácio, cabe-lhe permitir ou proibir a entrada, e tudo na casa real está sujeito à sua administração” (Médibielle 579).
  9. O reino dos céus deste inciso equivale à Igreja do inciso anterior (cf. “tudo o que ligares sobre a terra…”).
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