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Texto do episódio
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Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas
(Lc 10,38-42)

Naquele tempo, Jesus entrou num povoado, e certa mulher, de nome Marta, recebeu-o em sua casa. Sua irmã, chamada Maria, sentou-se aos pés do Senhor, e escutava a sua palavra. Marta, porém, estava ocupada com muitos afazeres. Ela aproximou-se e disse: “Senhor, não te importas que minha irmã me deixe sozinha, com todo o serviço? Manda que ela me venha ajudar!” O Senhor, porém, lhe respondeu: “Marta, Marta! Tu te preocupas e andas agitada por muitas coisas. Porém, uma só coisa é necessária. Maria escolheu a melhor parte e esta não lhe será tirada”.

I. Reflexão

Com grande alegria celebramos hoje a memória de Santa Faustina Kowalska. É grande a devoção suscitada pelo nome desta santa, apóstola da Divina Misericórdia. Nosso Senhor quis que confiássemos na sua misericórdia e usou dessa humilde religiosa polonesa, que viveu no início do séc. XX, para que a Divina Misericórdia fosse conhecida nos quatro cantos da Terra. Quem diria, aliás, que ao pedido de Jesus a Santa Faustina para que se instituísse na Igreja universal uma festa da Divina Misericórdia seria atendido um dia por um papa, e um papa polonês como Santa Faustina, João Paulo II!

Todos nós conhecemos os ensinamentos de Santa Faustina e o quanto Nosso Senhor insiste em que devemos confiar na Divina Misericórdia. Ele mesmo disse que nada o ofende e entristece mais do que ver as pessoas duvidarem da sua misericórdia e do seu amor. Para ter uma visão real desse grande atributo de Nosso Senhor, tal como foi pregado por Santa Faustina, vale a pena recordar um trecho do Diário em que se descreve o dia em que a santa teve uma visão do inferno. Estamos ao redor do dia 30 de outubro de 1936; Santa Faustina, na entrada n.º 741, descreve o inferno e as inúmeras pessoas ali condenadas.

Alguém já deve estar pensando: “Mas, padre, ela não prega a Divina Misericórdia?” Sim. “Então por que falar do inferno?” Exatamente por isso: Faustina prega a Divina Misericórdia, e uma das misericórdias de Deus foi nos ter revelado que é agora, nesta vida, o tempo da misericórdia; depois, quando terminar a nossa peregrinação terrena, virá o tempo da justiça. Com efeito, não se pode entender a pregação de Santa Faustina, nem suas visões e o conteúdo do Diário, ou mesmo a devoção e a confiança na Divina Misericórdia, se não se entende que todo esse ensinamento se refere a esta vida. Jesus disse-lhe: “Faustina, eu terei a eternidade para fazer justiça; agora é o tempo da misericórdia”.

O que significa isso? Santa Faustina foi levada por um anjo até as profundezas do inferno, onde viu pessoas atormentadas de várias maneiras. Vejamos o que está no Diário. Escreve ela: “Percebi uma coisa: o maior número das almas que estão no inferno é justamente o daqueles que não acreditavam que o inferno existisse”. Nós cremos que existe o inferno e que ele é eterno; faz parte das misericórdias e bondades de Deus. Jesus, a Divina Misericórdia encarnada, pregou sobre ele, e Santa Faustina não seria apóstola legítima dessa devoção, se se calasse sobre o assunto. Ora, Jesus falou sobre o inferno exatamente porque quer exercer misericórdia, mas aqui nesta vida. Santa Faustina diz solenemente: “Eu, Irmã Faustina, por ordem de Deus, estive nos abismos do inferno para que possa falar às pessoas e testemunhar que o inferno existe”. E qual é a finalidade do testemunho? “Para que nenhuma alma se escuse, dizendo que não há inferno ou que ninguém esteve lá ou que não sabe como é”. Logo, não há mais quem possa dizer: “Ninguém esteve no inferno para saber sabe como é”. Não. Faustina lá esteve, viu como é e voltou para o contar.

Como, afinal, é o inferno? Faustina lista sete tormentos. — 1) O primeiro e o pior deles é a privação de Deus, ou seja, as almas no inferno sofrem por terem perdido a Deus. — 2) O segundo é o remorso. Os réprobos remordem sem cessar a consciência por causa de seus pecados. Não se trata de arrependimento. (Um retrato vivo do que é o remorso, nós o vemos naquela cena da Paixão de Cristo em que Judas, depois de dar o beijo da traição, foge transtornado e, sem conseguir aceitar seu crime, começa a lacerar os lábios na pedra até os deixar em carne viva. Judas se arrependeu? Não. Mas teve remorsos, que o levaram não a pedir perdão e a propor-se nunca voltar a pecar, mas a detestar os efeitos de sua ação sem conseguir aceitar a própria culpa.) Ora, como no inferno não há espaço para o arrependimento, os condenados, conscientes de suas faltas, não podem senão remoê-las, como um cão que volta ao próprio vômito sem poder se limpar.

3) O terceiro tormento do inferno provém do conhecimento que têm os condenados da eternidade de suas penas. Quando se sofre algum mal na terra ou mesmo no purgatório, há pelo menos um consolo: saber que tal situação não é definitiva. No inferno não; o inferno e suas penas duram eternamente. — 4) O quarto tormento é o fogo que atravessa a alma sem destruí-la nem se consumir. — 5) O quinto é a vergonha de ter os próprios pecados descobertos e o horror de conhecer os dos outros condenados; de fato, embora no inferno não haja luz, todos ali se veem mutuamente e não podem esconder suas culpas: é um reino de trevas, mas que não sufoca a luz da consciência, a qual já não pode ocultar suas culpas nem a si, nem aos outros. — 6) O sexto tormento é o infligido pelos demônios de que cada um se fez escravo ainda em vida, ao cair em tentação: Eles mesmos são escravos da corrupção, pois que se é escravo daquele por quem se foi vencido (2Pd 2,19). — O sétimo e último é o terrível desespero e ódio contra Deus, com maldições e blasfêmias. Quem está no inferno não quer se arrepender e odeia a Deus; no inferno não há amor. Os demônios não se amam nem amam os homens condenados; ali só há ódio, ódio mútuo e ódio a Deus.

Eis a visão do inferno que teve Santa Faustina. É importante recordá-lo para nos darmos conta de que essa doutrina faz parte do nosso Catecismo, faz parte da nossa fé, e se Cristo veio do céu para nos revelar o inferno, é porque Deus é misericórdia e quer que nós nos arrependamos enquanto há tempo. Lembremos sempre a palavra de Jesus: “Faustina, eu terei a eternidade para fazer justiça; agora é o tempo da misericórdia”.

II. Comentário exegético

Em Betânia. Marta e Maria. — Esta breve narração de Lc., conexa em tempo e lugar com a parábola do bom samaritano (cf. Lc 10,25-37), proferida provavelmente nos arredores de Jericó, contém uma cena cheia de simplicidade, que retrata a diferença de índole e natureza de duas irmãs e põe diante dos olhos do leitor um belíssimo exemplo da vida privada de Jesus Cristo. — Estando a caminho de Jerusalém, deteve-se ele em certo vilarejo, i.e. em Betânia (cf. Jo 11,18), a 15 estádios da cidade (cerca de 2½ km), na casa de Lázaro, seu amigo. As duas irmãs do anfitrião, Marta e Maria, procuram dispensar ao hóspede todas as honras e cuidados possíveis. Maria, naturalmente propensa à contemplação, sentada aos pés do Senhor, ouvia a sua palavra, alimentando o coração e a alma com a doutrina celeste, enquanto Marta, por temperamento mais inclinada à ação, afadigava-se (περιεσπᾶτο = distraía-se, dispersava-se etc.) muito na contínua lida da casa, i.e. estava toda entregue aos preparativos do jantar etc.. Como visse que ainda havia muito que fazer, Marta dirigiu-se ao Senhor, para que ele mandasse Maria ajudá-la no serviço da cozinha. Contudo, o divino Mestre propõe-lhe outra solução para o problema: Marta, Marta, tu te afadigas, i.e. te portas com excessiva ansiedade ou preocupação, e andas inquieta com muitas coisas (περὶ πολλά); entretanto, uma só coisa é necessária etc. Muito se discute sobre a redação e o sentido dessa frase.

a) Há três leituras conforme as variantes textuais: 1.ª ἑνὸς δέ ἐστιν χρεία (= uma só coisa é necessária); 2.ª ὀλίγων δέ ἐστιν χρεία (= poucas coisas são necessárias); 3.ª ὀλίγων δέ ἐστιν χρεία ἢ ἑνὸς (= poucas coisas são necessárias, ou uma só). — b) Há também diferentes interpretações: 1) admitida a 1.ª leitura, o sentido espiritual da frase é patente: “Só uma coisa é da máxima importância, a saber, buscar a própria salvação” (assim o interpretam a maioria dos aa. antigos e grande parte dos modernos), ou (o que é mais adequado ao contexto) “escutar a palavra de Deus” (cf. Mt 6,39), “prestar atenção ao que Jesus diz” etc. — 2) Os que preferem a 3.ª leitura e alguns dos que optam pela 1.ª (e.g. Toledo, Jansênio, Brugense, a Lápide etc.) o interpretam por referência ao pouco que se devia preparar (talvez bastasse um prato ou bandeja) para satisfazer as necessidades do convidado. Mas esse sentido não é necessário; também é cabível o seguinte: “Marta, tu te afadigas e preocupas com muitas coisas, sendo que poucas são necessárias (ao sustento desta vida); na verdade, só uma é imprescindível (i.e. o que diz respeito à alma). De fato (γάρ), Maria escolheu a melhor parte (τὴν ἀγαθήν = a boa, com art. enfático; pt. a parte boa), i.e. tua parte não é ruim, mas a de Maria é melhor”; com efeito, vale mais escutar a Cristo com atenção e docilidade que servi-lo apenas materialmente. — A qual lhe não será tirada.

“A construção do episódio”, comenta Fitzmyer, “é tremendamente sutil. Num primeiro momento, parece que a resposta de Jesus a Marta pretende acalmar o nervosismo dela dizendo-lhe que basta preparar um só prato. Mas quando se lê a declaração de Jesus em todo o seu conjunto, cai-se na conta de que a expressão ‘uma coisa’ significa algo mais que ‘um prato’; há um matiz muito mais profundo. Essa ‘uma coisa’ é identificada com ‘a melhor parte’, e é o próprio Mestre quem garante que ‘essa não lhe será tirada’ a Maria em troca de deixá-la dar uma mão nos afazeres de sua irmã” [2].

N.B. — A) A partir de Orígenes (cf. in Ioh. 11,18), ao que tudo indica, muitos Padres e escritores eclesiásticos (cf. eg. São Basílio, const. ascet. i 1: M 31,1325; Santo Agostinho, serm. ciii 5; civ 2.4; clxxix 3s: M 38,615.617.979; São Gregório, in Ezech. ii 2.8: M 76,953) afirmaram que Maria e Marta representam respectivamente as vidas contemplativa e ativa: uma só coisa é necessária ao homem, buscar a salvação e dedicar o tempo a Deus; esta é a melhor parte que se pode escolher, a qual nunca será tirada da alma cristã, pois será eternamente a sorte ou herança dos eleitos. “A vida contemplativa começa já aqui, para que na pátria celeste chegue à perfeição” (São Gregório Magno), i.e. pelo ato de visão de Deus por essência. Seria, porém, um exagero interpretá-lo assim: “Só uma coisa é absoluta e exclusivamente necessária: entregar-se apenas à oração e à contemplação” [2]. — B) Também é costume dizer que as irmãs de Betânia representam a vida temporal, passageira, e a vida celeste, que há de durar para sempre.

Referências

  1. Joseph A. Fitzmyer, El evangelio según Lucas. Traducción y comentario. Trad. esp. de Dionisio Mínguez. Madrid: Cristiandad, 1987, vol. 3 (= Lc 8,22–18,14), p. 294.
  2. A razão é que o homem não pode prescindir por completo da vida prática (deve, com efeito, procurar o necessário à subsistência) nem se entregar ininterruptamente à contemplação, na medida em que as operações da alma, inclusive a intelectiva, dependem de operações orgânicas, o que cedo ou tarde leva ao esgotamento físico. Por isso, além da oração, também são necessários sob certo aspecto o trabalho e o descanso, tanto mais meritórios quanto melhor se ordenam à contemplação (cf. Santo Tomás de Aquino, STh II-II 168, 2c.).

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