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Texto do episódio
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Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus
(Mt 8,28-34)

Naquele tempo, quando Jesus chegou à outra margem do lago, na região dos gadarenos, vieram ao seu encontro dois homens possuídos pelo demônio, saindo dos túmulos. Eram tão violentos, que ninguém podia passar por aquele caminho. Eles então gritaram: “Que tens a ver conosco, Filho de Deus? Tu vieste aqui para nos atormentar antes do tempo?”.
Ora, a certa distância deles, estava pastando uma grande manada de porcos. Os demônios suplicavam-lhe: “Se nos expulsas, manda-nos para a manada de porcos”.
Jesus disse: “Ide”. Os demônios saíram, e foram para os porcos. E logo toda a manada atirou-se monte abaixo para dentro do mar, afogando-se nas águas. Os homens que guardavam os porcos fugiram e, indo até a cidade, contaram tudo, inclusive o caso dos possuídos pelo demônio. Então a cidade toda saiu ao encontro de Jesus. Quando o viram, pediram-lhe que se retirasse da região deles.

O Evangelho de hoje nos recorda alguns pontos importantes de nossa fé, especialmente no que se refere à existência dos demônios e ao seu modo de atuação no mundo. Como diz o IV Concílio de Latrão, o diabo e seus sequazes foram criados por Deus naturalmente bons, mas por culpa e iniciativa próprias tornaram-se irremediavelmente maus. O pecado de Lúcifer — o maior de todos os anjos, na opinião de Santo Tomás (cf. STh I 63, 7c.) — foi de soberba: Teu coração se inflou de orgulho, diz o Espírito mediante pela boca do Ezequiel, devido à tua beleza; arruinaste a tua sabedoria, por causa do teu esplendor (28,17).

Ao rejeitar a Deus e o seu reino, Satanás arrastou consigo outros espíritos rebeldes (cf. Mt 25,41), que, confirmados para sempre no mal e no pecado, foram precipitados nos abismos tenebrosos do inferno, onde o Senhor os reserva para o Juízo (cf. 2Pd 2,4). A opção dos demônios, portanto, é irrevogável, sem qualquer possibilidade de perdão (cf. CIC 393), assim como não há para os homens arrependimento depois da morte (cf. São João Damasceno, De fide orth. II 4).

Cheios de ódio, os anjos caídos são absolutamente incapazes de fazer o mal seja a Deus, Criador e Senhor de todas as coisas, seja aos anjos bons, confirmados na bem-aventurança eterna. Podem, no entanto, por permissão divina, voltar-se contra nós, incitando-nos ao mal por meio de tentações (cf. Ef 6,11; 1Ts 3,5; 1Pd 5,8s) ou, como ouvimos no Evangelho, tomando-nos posse do corpo (cf. Mt 4,24; 10,1; Lc 8,2).

Esse poder, em todo o caso, é sempre limitado e só pode ser exercido se e como Deus o quiser. O demônio não pode de forma alguma penetrar o santuário de nossa alma nem nos obrigar a pecar; pode, no máximo, seduzir-nos a fazê-lo. Embora permaneça um mistério, a permissão divina da ação demoníaca no mundo é uma das formas por que Deus sabe, em sua imensa sabedoria, tirar do mal bens muito maiores, porque Ele tudo faz concorrer para o bem dos que o amam (cf. Rm 8,28). Nenhuma vontade diabólica poderá impedir a edificação do reino de Deus nem frustrar os desígnios daquele que tem sob o seu cuidado a quantos predestinou à glória celeste (cf. CIC 395).

Aproveitemos esta quarta-feira para, diante de Cristo sacramentado, renovarmos a nossa fé e lhe agradecermos de coração por nos haver libertado do jugo de Satanás e seus demônios. Recorramos com confiança à Virgem Maria, nova Eva, que esmagou com pé imaculado a cabeça da antiga serpente. — Vem, Senhor Jesus (cf. Ap 22,20), livrar-nos de uma vez para sempre das forças do maligno!

* * * 

1. Libertação dos possessos (cf. Mt 8,28s; Mc 5,1-10; Lc 8,26-31). — Em Marcos, lê-se: Foi logo ter com ele um homem possesso (5,2). Também em Lucas; em Mateus, porém: Saíram-lhe ao encontro dois endemoninhados (8,28). É difícil concordar os evangelhos: a) Lagrange explica o plural de Mateus como certa licença de estilo, como a que se lê em Mt 20, 30; outros, como negligência do intérprete grego. — b) Para a maioria, eram dois os energúmenos, como diz Mateus; Marcos e Lucas, contudo, mencionariam só o mais conhecido ou feroz deles, ou o que deu a Cristo provas de gratidão.

V. 28s. Descreve-se vividamente a ferocidade dos possessos. Marcos acrescenta que eles passavam os dias e as noites nos sepulcros, i.e. em aberturas cavadas ou fendidas nas rochas, onde os judeus, especialmente os pobres, sepultavam os mortos e às vezes habitavam. — Como vissem Jesus aproximar-se, começaram a clamar: Que tens tu conosco, Filho de Deus?, i.e. por que nos vens molestar? Marcos acrescenta: Eu te conjuro por Deus que me não atormentes [1]. “Eram invisivelmente açoitados, e mais do que o mar flutuavam imobilizados, combustos, sofrendo dores intoleráveis devido a tal presença” (São João Crisóstomo, Hom. 28 in Matt.). — Vieste aqui atormentar-nos antes do tempo estabelecido por Deus, i.e. antes do dia do Juízo? Era comum à época opinião de que os demônios, antes do Juízo, errariam pelo mundo e teriam poder sobre os homens, mas depois seriam lançados no inferno (cf. Enoque 15s); logo, os demônios ter-se-iam referido à opinião popular. Para outros, aludem à “consolação” que gozam os demônios enquanto podem atormentar homens, da qual serão privados a partir do Juízo [2].

Em Marcos, lê-se em seguida: Porque Jesus dizia-lhe: Espírito imundo, sai desse homem (5,8s). Cristo o disse no final do diálogo, mas o evangelista, invertendo a ordem (por prolepse), as coloca antes, enquanto o demônio ainda resistia e falava; ou talvez Cristo as tenha dito para permitir ao espírito imundo manifestar-se e implorar, o que é provável com base no v. 12s: Que nome é o teu? Cristo pergunta-lhe o nome, não porque cada demônio tenha um nome especial, mas para manifestar que era um demônio quem falava e, com isto, mostrar aos circunstantes por que os possessos tanto sofriam. “Legião” (lt. legio, gr. λεγεών), palavra latina introduzida na literatura grega e talmúdica, significa aqui “multidão”. O nome convém perfeitamente aos demônios porque, sendo ao mesmo tempo uns e muitos, constituem uma hoste poderosa e cruel. — As palavras: Porque somos muitos provavelmente foram inseridas pelo evangelista a título de de explicação; cf. Lucas: Porque tinham entrado nele muitos demônios (8,30).

V. 31. Os demônios suplicavam com insistência para que Jesus não os expulsasse — acrescenta Marcos — daquela região (cf. 5,9), na qual, por ser habitada sobretudo por gentios, tinham sua sede ou um poder especial. De acordo com Lucas, suplicavam-lhe que os não mandasse ir para o abismo.

2. A invasão dos porcos (cf. Mt 8,30-34; Mc 5,11-17; Lc 8,32-37).Estava não longe deles (em Marcos, 5,11: ao redor do monte) uma vara de muitos porcos, que pastavam (em Lucas 8,32: no monte). Marcos precisa explicitamente o número: cerca de dois mil (5,13). Os demônios, para não ser obrigados a sair da região, imploram a Jesus que lhes permita invadir os porcos e, concedida a licença, se lançam sobre os animais, precipitam-nos no mar e os sufocam sob as águas [3]. Alertados pelos pastores, os habitantes da cidade vêm até Jesus e lhe suplicam que deixe a região, para que não lhes venha a causar prejuízos mais graves [4].

Dificuldades: a) Como é possível que um rebanho de 2000 porcos estivesse pastando na região dos judeus? Resp.: Não consta que os donos dos porcos fossem judeus, uma vez que muitos gentios habitavam aquela região. Além disso, mais tarde foi proibido aos judeus não somente comer carne suína, mas também comcercializar porcos: “Dizem os sábios: maldito o que alimenta cães e porcos” (Maimonedes, Glossa in Baba Kama VII 7). É incerto, contudo, se no tempo de Cristo já estava em vigor esta proibição, porquanto não há qualquer menção a ela antes de 150 d.C.

b) Por que os demônios quiseram entrar nos porcos? Primeiro, para não ser lançados logo no abismo (cf. Lc 8,31); segundo, para prejudicar tanto quanto possível os habitantes da região; alguns acrescentam uma terceira razão, qual seja: para indispor contra Cristo o ânimo dos gerasenos.

c) Por que motivo Jesus permitiu que aqueles habitantes sofressem tamanho prejuízo? A resposta é tão difícil quanto saber a razão de todos os flagelos com que Deus castiga o homem. Com efeito, todas as vezes que nos fere, vale-se plenamente de um direito seu, enquanto Senhor de todas as coisas, que tudo pode dispor conforme a sua vontade. Acresce que, permitindo aquele dano temporal, Cristo quis manifestar seu poder sobre os demônios e, talvez, punir a corrupção daqueles homens.

A gratidão do possesso liberto (cf. Mc 5,18-20; Lc 8,37ss). — Dado que Mateus, que fala de dois possessos, omite uma parte da narrativa, não se sabe ao certo se ambos os energúmenos ou apenas um deles voltou para manifestar gratidão a Cristo. Marcos e Lucas, em todo o caso, fazem menção a somente um deles.

Liberto, pois, do demônio, o possesso suplicava a Jesus que lhe permitisse acompanhá-lo, i.e. que o aceitasse no número de seus discípulos. Jesus, porém, não o admitiu porque não era esta a vocação dele, por isso o mandou voltar a casa e tornar conhecida a misericórdia de Deus. Aos obsessos e a quantos na Galileia o Senhor fazia bem era proibido tornar públicos os milagres; mas na província do gerasenos, por não haver esse perigo, não só permitiu como mandou que fossem divulgados. O endemoninhado, portanto, obedecendo às palavras de Cristo, começou a publicar pela Decápole quão grandes coisas lhe tinha feito Jesus; e todos se admiravam.

Comentário espiritual. — a) Pecador, servo do diabo: Nestes endemoninhados libertos por Cristo podemos ver uma imagem do pecador, que, depois de ter-se conspurcado com todos os vícios e vivido nos sepulcros, isto é, convivido com os ímpios, sendo cruel com os outros, mas muito mais cruel consigo mesmo, é atraído pela graça do Redentor, volta ao bom caminho e prega por todos os lados a misericórdia de Cristo. — b) Tormentos do demônio: “Tal é a dor dele [de Satanás], infernal e cruel, que nem a natureza dos porcos foi capaz de o suportar; ao cabo, preferiu o rebanho lançar-se ao mar e morrer entre as ondas a padecer-lhe a imundice e tolerar-lhe a podridão” (São Pedro Crisólogo, Serm. 17). “Eis portanto a grande impotência dos demônios, que nem aos porcos que desejavam como habitação puderam salvar da destruição. Cristo, com efeito, só lhes permitiu ir aos porcos; daí se explica por que não os puderam salvar” [5]. — c) Nunca se desperdice a graça: “Não lemos que Jesus tenha voltado uma segunda vez aos gerasenos. O evangelista sugere o quanto é arriscado repudiar a graça oferecida: aos gerasenos foi oferecida uma vez; mas quantas não o fôra aos judeus? Se estes a repudiaram, muito maior será a sua culpa. Notam alguns que os gerasenos pecaram menos que os nazarenos. Aqueles, por terem sofrido um dano, pedem-lhe que os deixe; estes porém não sofreram dano algum: antes, pelo contrário, expulsaram-no da cidade, sendo seu benfeitor, e o quiseram precipitar” morro abaixo [6].

Referências

  1. Cf. Caetano, In Matt. VIII, 29: “Não se esquece o diabo de seu ofício, pois à tentação a que dera início do deserto após o jejum de Cristo, para descobrir se Ele era o Filho de Deus, dá-lhe agora prosseguimento, chamando a Jesus, por indústria e arte exploratória, Filho de Deus. Não porque já soubesse que Ele era o Filho de Deus porque, se o tivessem conhecido, nunca teriam crucificado o Senhor da glória (1Cor 2, 8). — Vieste aqui atormentar-nos? É a expressão dos que sentem a tortura espiritual de ser coagidos por ordem de Cristo a deixar os homens possessos […]. De fato, a coação a abandonar as coisas possessas é uma tortura para criatura espiritual” (ed. Lyon, 1639, vol. 4, p. 45). 
  2. Cf. Juan Maldonado, In Matt. VIII, 29: “Deve-se sustentar a opinião, que na Igreja já é comum, segundo a qual os demônios são atormentados também agora e, aonde quer que vão, levam consigo os seus suplícios; são porém menos punidos agora porque têm ainda o poder de vagar pelo mundo e fazer mal aos homens, poder que não mais terão após o dia do juízo” (ed. Paris, 1668, col. 194).
  3. Cf. Caetano, In Matt. VIII, 31: “Com a mesma vontade iníqua com que vexam os pedem [os demônios] que a exerçam ao menos nos porcos, para que assim vexem os homens em suas posses. É semelhante este pedido ao que fez Satanás contra as coisas que possuía Jó. Daí compreendemos que o poder natural dos demônios sobre as coisas corpóreas está limitado e amarrado por Deus. O fato de precisarem de permissão para submergir os porcos, que não eram propriedade de nenhum homem santo, porquanto o proco é um animal proibido entre os judeus, dá a entender que nem sobre as coisas mais profanas eles podem exercer o seu poder, se não obtêm antes a permissão de Deus” (ibid.).
  4. Cf. Id., In Matt. VIII, 34: “Pediram-lhe que se retirasse do seu território. É expressão de grande temor. Vendo a salvação de homens libertos dos demônios e a perda dos porcos, com a vinda de Cristo antes temeram o aumento do dano nos bens temporais que desejaram o aumento dos espirituais. A salvação dos possessos gerou admiração na cidade; a perda dos porcos, medo de maior prejuízo. E assim, levados pelo temor, pediram-lhe que os deixasse. E talvez aqueles porcos fossem de algum gentil temido pela cidade, e porque não queriam ser contados entre os seguidores do responsável por tal ruína, por isso pediram [a Jesus] que se retirasse do seu território” (ibid.).
  5. R. Cornely, J. Knabenbauer, Fr. de Hummelauer et al., Cursus Scripturæ Sacræ. 3.ª ed., Paris: P. Lethielleux, 1922, p. 393.
  6. Id., p. 394.

Notas

  • A segunda parte do texto (a partir dos três asteriscos) é uma tradução levemente adaptada, com alguns acréscimos e omissões de nossa equipe, de H. Simón, Prælectiones Biblicæ. Novum Testamentum. 4.ª ed., iterum recognita a J. Prado. Marietti, 1930, vol. 1, pp. 358–361, n. 247s.

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