Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus
(Mt 11, 28-30)
Naquele tempo, tomou Jesus a palavra e disse: “Vinde a mim todos vós que estais cansados e fatigados sob o peso dos vossos fardos, e eu vos darei descanso.
Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração, e vós encontrareis descanso. Pois o meu jugo é suave e o meu fardo é leve”.
Hoje celebramos a memória do grande bispo e Doutor da Igreja, o franciscano São Boaventura, e no Evangelho Jesus fala mais uma vez de seu Coração. Começamos ontem essa reflexão. Jesus recebeu os discípulos de volta da missão e fez em seguida um grande louvor a Deus: Eu vos louvo, ó Pai, Senhor do céu e da terra. Por quê? Porque Deus revelara seu coração aos pequeninos. Agora, é Cristo quem revela o seu, dizendo: Vinde a mim todos vós que estais cansados e fatigados sob o peso dos vossos fardos, e eu vos darei descanso. Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim porque sou manso e humilde de coração, e vós encontrareis descanso, pois o meu jugo é suave e o meu fardo é leve. Sim, esse Evangelho é um daqueles momentos reveladores em que Jesus mostra sua intimidade. Louvado seja Deus por ter nos dito essas coisas, admitindo-nos aos segredos do Rei e tratando-nos como amigos! Jesus mesmo disse aos Apóstolos na Última Ceia: Já não vos chamo servos, chamo-vos amigos. Ora, um senhor não dá a conhecer seu coração aos servos, mas aos amigos, e Jesus nos revela hoje os segredos de seu próprio Coração. E o que há neste Coração santíssimo? Um jugo, um fardo. Sim, um fardo, mas o da caridade, do amor, de um amor infinito!
Tendemos a pensar o amor de forma algo “romântica”, como se fosse um gosto, certo gozo de estar com a pessoa amada. Claro, o amor também tem disso; mas ele é antes de tudo uma aliança. Não há verdadeiro amor se não se quer pagar o preço de estar com a pessoa amada, isto é, de querer e buscar o bem dela, importando-se mais com ela do que consigo mesmo. De alguma forma, pois, há no amor um peso suave porque o amor, se é verdadeiro, nunca é pesado. Para ver como isso se aplica ao Coração de Jesus, façamos a seguinte comparação: imaginemos uma mãe a preparar a festa de aniversário do filho. Ela está fazendo docinhos e salgadinhos. Cansada e preocupada, está já há algumas semanas nesses preparatórios. Chega o grande dia, os primeiros convidados já estão à porta, mas ela ainda está toda suja. Ela então corre para o banheiro e toma um banho rápido. Está toda cansada, mas feliz, alegre pelo filho! Há ali um fardo suave, a alegria de ter amado, de ter feito tudo aquilo para o filho. O fardo do amor não é algo do outro mundo. É uma experiência básica e fundamental que todos os que verdadeiramente amam já tiveram: o amor, mesmo quando sacrificado, é leve e suave. Por quê? Porque ele é marcado pelo esquecimento de si. Para usar uma linguagem um pouco mais “sofisticada”, podemos dizer que o amor é extático. “Extático” quer dizer o seguinte: o amor sai de si, levando a pessoa a mergulhar no bem do outro. É isso o que Jesus nos está revelando. Em seu Coração há o fardo suave do amor. Amor, primeiro que tudo, a Deus Pai. Embora Jesus seja uma Pessoa divina, a alma humana dele se vê tão agraciada, tão eleita, tão privilegiada (porque, afinal, é a alma que o Verbo divino uniu intimamente a si), que no seu Coração nasce um amor avassalador, uma gratidão que não se pode conter.
Ora, por amar a Deus, Jesus nos ama também a nós. Se Ele quer fazer em tudo a vontade do Pai, e se o Pai deseja a salvação dos homens, é evidente que Cristo nos ama. São João d’Ávila, contemplando esse mistério, faz uma comparação com uma bala de canhão. A bala de canhão sai com todo o ímpeto do canhão e bate numa muralha. Ao chocar-se contra ela, a bala pode ricochetear, e quanto maior for o ímpeto com que partiu na direção da muralha, tanto maior será a força e a velocidade com que ela vai ricochetear na muralha e atingir outra coisa. É com essa comparação que São João d’Ávila entende o amor do Coração de Jesus. A alma de Cristo ama tanto a Deus, de forma tão extraordinária, tão agraciada, tão santa, tão sublime, que ela parte como uma bala de canhão em direção a Deus para amá-lo com todo o fervor, com doação, com toda a dedicação imaginável; mas quando Jesus chega ao coração do Pai e descobre que o Pai quer que Ele nos ame entregando-se por nós à morte de cruz, essa bala de canhão ricocheteia e vem com igual intensidade em nossa direção para nos amar, para se entregar por nós! Porque essa é a vontade do Pai. Eis a revelação do Coração de Cristo no Evangelho de hoje. Ele tem dentro do Coração o fardo do amor, de uma caridade ardente. Aprendei de mim, diz o Senhor. Contemplemos esse amor, essa fornalha ardente que é o Coração de Jesus e façamos o que Ele diz: Aprendei de mim. Ao contemplarmos esse amor, poderemos imitá-lo, abrindo o nosso próprio coração para amar a Deus e, amando a Ele, “ricochetear” em direção ao próximo.
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O brado do Redentor. — V. 28. Agora explica o Filho, por sua benignidade e benevolência para com os homens, a quem Ele deseja revelar o Pai, a saber: àqueles que, oprimidos por misérias, sentem sua infelicidade e pobreza; por isso, quem sejam verdadeiramente os pequeninos do v. 25, expõe-se em detalhes neste v.: Vinde a mim todos os que estais fatigados e carregados, e eu vos aliviarei; convida benignissimamente todos os aflitos: Enviou-me… a curar os de coração despedaçado… a consolar todos os que choram… a dar aos amargurados de Sião óleo de gozo em vez de pranto (Is 61,1.3). Ora, se os pequeninos são descritos deste modo, por oposição se pode concluir quem são os sábios e entendidos, a saber: os que se bastam a si mesmos, que não reconhecem suas misérias nem suplicam o socorro e a graça divina. É como diz aquilo: Encheu de bens os famintos, e despediu os ricos de mãos vazias (Lc 1,53). São João Crisóstomo expõe as palavras deste v.: “Vinde, não este e aquele, mas todos os que estais preocupados, tristes, no pecado; vinde, não para que eu vos aplique a pena, mas para que vos livre dos pecados; vinde, não porque eu precise de vossa glória, mas porque tenho sede de vossa salvação; eu vos aliviarei. Não diz somente salvarei (σώζω), mas, o que é muito mais: ἐν ἀδείᾳ καταστήσω πάσῃ, i.e., vos ‘porei em todo gênero de descanso’” (hom. 38, in Matt. 11,28: PG 57, 431). Refere Cristo em geral duas necessidades comuns ao gênero humano, de trabalho e de fardo, i.e., uma de ação, outra de padecimento: vós que estais fatigados por vossos trabalhos, que deixa sobre vós o peso que deveis carregar, de sorte que quem está livre de todo trabalho e, portanto, não tem sobre os ombros qualquer fardo, este é o único a quem Cristo não chama a si; e, certamente, como qualquer homem sofre de alguma aflição ou cuidado e vive oprimido por muitos males, segue-se que não só todos estão convidados, senão que por suas próprias moléstias são atraídos a Cristo (cf. Mt 6,28; Lc 11,46).
Embora se possa dizer com Jansênio que ambas as palavras, fatigados e carregados, significam em geral qualquer aflição, a maior parte dos autores, não obstante, distingue uma noção da outra, mas de diferentes maneiras. Por fatigados entendem alguns dos judeus, vergados sob o peso da Lei e de tradições humanas (assim e.g. Hilário, Jerônimo, Crisóstomo, Teofilacto etc.), enquanto os carregados seriam os gentios, mortos sob o peso do pecado; outros porém entendem por fatigados os que sofrem com as misérias da vida e dos pecados, ao passo que estariam carregados os que sofrem sob o fardo da Lei e das tradições farisaicas (assim e.g. Teodoreto, Crisólogo etc.). Eutímio, por sua vez, vê em ambos os termos o trabalho e o fardo das vãs preocupações e dos pecados. Ora, há, como diz Jansênio, uma tríplice aflição, ou fardo: a) primeiro, o fardo das misérias e cuidados desta vida, do qual o Senhor alivia os fiéis por sua doutrina e Espírito, ou porque lhes dá a graça de suportá-lo com ânimo igual, ou porque o retira ou ameniza; b) segundo, o fardo dos pecados e da má consciência, aliviado pela remissão dos pecados, que trás consigo paz e tranquilidade; c) por último, o fardo da Lei mosaica, que Ele retirou, feito sob a Lei, a fim de remir aos que estavam sob a Lei (Gl 4,5). — Promete então aos mesmos que convida brandamente: Eu vos aliviarei, i.e., dar-vos-ei descanso de vossos trabalhos e alívio de vossos fardos, promessa que, por ser universal, é aptíssima para atrair o coração de todos.
V. 29. Depois de dizer Darei descanso, ensina como se há de entender esse descanso, a saber: não para que se viva sem trabalhos ou lei, mas para que, sacudido o jugo do velho homem, se tome sobre os ombros o peso suave do Evangelho: Tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração. De que natureza seja o seu jugo, explica-o em seguida, onde diz: Aprendei de mim etc., i.e., devem confiar-se a Ele como ao seu Mestre, seguir os seus preceitos e refleti-los na própria vida. De fato, muitos autores interpretam jugo como sinônimo de preceitos e exemplos evangélicos (assim e.g. Eutímio, Hilário, Beda, Tomás, Caetano, Jansênio, Maldonado, a Lapide etc.). (Também no Talmud se chama jugo às obrigações do homem por força da Lei.) — Mas para que não tenham medo de aproximar-se dele e submeter-se ao seu governo, Cristo dá algumas razões muito eficazes:
1.ª razão: Sou manso e humilde de coração, i.e., “não temais vir a mim e tomar sobre vós o meu jugo e a minha disciplina; com efeito, não sou um Mestre duro ou severo, mas benigno e clemente. Não há em mim nem sombra de arrogância e crueldade, de forma que ninguém deve temer ser repelido por mim devido à própria indignidade. Ninguém há mais manso que eu”. — E com razão se diz humilde de coração, i.e., não da boca para fora, mas na integridade do coração; não pela forma pobre de vestir-se, embora também no corpo e nas palavras há que ser humilde com todos, mas em toda forma de devoção e na sujeição interior. — Quem é humilde de coração ninguém despreza, a todos respeita, está pronto para a todos socorre de todos os modos. Por isso Cristo, por sua mansidão e humildade, atrai todos a si, afasta das almas todo temor e oferece a todos os miseráveis, com suma benevolência, sua ajuda e seu amor. Ora, quem hesitaria em se entregar com empenho a um tal Mestre, que com onipotência e máxima ciência (cf. v. 27) reúne em si os modos mais suaves e um Coração prontíssimo para nos socorrer? A graça de Deus, fonte de salvação para todos os homens, manifestou-se (Tt 2,11; cf. 3,4).
A 2.ª razão que nos estimula a tomar o jugo cristão e a consagrar-nos à disciplina evangélica se toma eficazmente daquilo a que todos aspiram com o máximo desejo; todos, com efeito, ardentemente desejam a felicidade; ora, esta se acha unicamente nele: Achareis descanso para as vossas almas. Como todos buscamos com ardente desejo a paz e a bem-aventurança, o Senhor nos traz à memória que este desejo e ímpeto da natureza humana não pode ser saciado e satisfeito senão por Ele, só, verdadeiro Deus. Diz-se para as vossas almas, i.e., “para vós mesmos”, que é um hebraísmo em que o pronome reflexivo é expresso pela palavra alma (hb. נֶפֶשׁ), o que se aplica especialmente a esta passagem, já que as palavras do Senhor são tiradas de Jr 6,16 (cf. Sl 77,18; Is 46,2 etc.). Logo, não é necessário afirmar, como querem alguns intérpretes, que se diz para as almas porque os mandamentos de Cristo, neste século, seriam descanso apenas para a alma, e não para o corpo (cf. e.g. op. imp.: “Pois, conquanto trabalhem e sofram no corpo, todavia suas almas descansam e se alegram em espírito e na esperança”).
V. 30. Eis a 3.ª razão para tomar com alegria e disposição o jugo do Senhor: Porque o meu jugo é suave, e o meu peso leve. Como se sabe, o jugo imposto sobre os animais de carga costuma vexá-los mais pela aspereza e o incômodo que pelo peso propriamente dito, que é o que torna molestos os fardos. Querendo pois afastar toda dificuldade, para que ninguém fique aterrorizado, diz o Salvador que o seu jugo não molesta pela aspereza, mas é suave e cômodo, e que o seu fardo não molesta pelo peso, mas é leve e fácil de levar. Observa Maldonado que a palavra “suave” (gr. χρηστός) se aplica menos a coisas que a pessoas e costumes, por isso se indica aqui o jugo de um pai benigno, suave e clemente, a moderação de um Mestre extramemtne benévolo, que ama muito os seus. Ora, o seu jugo é suave e o seu fardo, leve por várias razões: a) primeiro, porque aboliu a Lei mosaica, jugo que, como atesta Pedro, nem os nossos pais nem nós pudemos carregar (cf. At 15,10): a Lei só deu preceitos, e aqueles que a própria natureza ensina, contidos em pouquíssimas palavras: O que quereis que vos façam os homens, fazei-o vós a eles. Cristo nos prometeu graças abundantes para cumpri-los, pois, como diz Agostinho (cf. serm. 70,2), nos foi dado o Espírito Santo, para renovar de dia para dia o homem interior na corrupção do exterior e, saboreado o descanso espiritual na afluência das delícias de Deus, na esperança da beatitude futura, suavizar todas as presentes asperezas e aliviar todos os pesos. — b) Além disso, Cristo inspira seu amor no coração dos fiéis; ora, o amor torna fáceis e quase desprezíveis os maiores tormentos e sofrimentos (cf. Santo Agostinho, serm. 70,3). O amor, com efeito, não sente peso; quando se ama, não se sofre, ou, quando se sofre, ama-se o sofrimento. — c) Também se pode acrescentar, como nota São João Crisóstomo, que na lei de Cristo não estão previstos de modo algum aqueles suplícios temporais com que a Lei antiga ameaçava seus transgressores; Cristo acolhe os pecadores com benignidade, concede o perdão facilmente, instituiu remédios eficazes para a reconciliação. — d) Enfim, que fardo pode ser tão pesado, se se considera o dito pelo Apóstolo: O que presentemente é para nós uma tribulação momentânea e ligeira, prepara-nos, além de toda a medida, um peso eterno de glória (2Cor 4,17)?
Por isso escreve o autor de op. imp.: “Oh! gratíssimo fardo, que tanto conforta os que o carregam! Pois o fardo dos senhores da terra sufoca as forças dos ministros; mas o fardo de Cristo ajuda a quem carrega, porque não somos nós que carregamos a graça: é a graça que nos carrega a nós”. Cristo, portanto, convida todos a que, no lugar da fadiga e do peso que os oprimem, tomem sobre si o jugo evangélico, suave contra o trabalho, leve contra o fardo. Nem contradiz este convite o que o Senhor dissera pouco antes a respeito da porta estreita, do caminho apertado (cf. Mt 7,13s) e da cruz diária (cf. Mt 10,38). Afinal, o que para o homem, abandonado às próprias forças, é impossível, torna-o fácil e suave a graça de Cristo. Tais são os Apóstolos e os santos todos, que nas tribulações se gloriavam e, trazendo aos ombros a cruz de Cristo, experimentavam as maiores delícias. A justiça de Cristo é pesada para os que não conhecem a graça, mas suave para os que a conhecem.
Por fim, não se deve passar em silêncio que as palavras dos vv. 28–30 se leem apenas em Mateus. De fato, a judeus e cristãos palestinenses, por causa do ônus e jugo da Lei mosaica, agravado ainda mais pelas novas tradições, estas palavras eram as mais apropriadas, e pela própria expressão o meu jugo, usada duas vezes, os ouvintes e leitores são levados a entender a grande diferença entre o jugo da Lei e o de Cristo. Dado que os escribas, ou doutores da Lei, e os fariseus impunham ao povo fardos pesados e insuportáveis (cf. Mt 23,4), além de o tratar com grande desprezo (cf. Jo 7,49: Quanto a esta plebe, que não conhece a Lei, é maldita), daí entendemos por que São Mateus quis deixar consignadas essas palavras do Senhor: Aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração. É como se perguntasse a seus compatriotas de quem preferem ser discípulos, se de Cristo, se de homens maus [1].
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