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Santo Inácio: da “etiqueta” à ética verdadeira

Antes de se converter, Inácio de Loyola era um homem honrado, de muitas virtudes humanas. Mas faltava-lhe a principal: o jovem soldado fazia as coisas certas… pelas razões erradas. Em outras palavras, tinha “etiqueta”, não “ética” verdadeira.

Texto do episódio
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Celebramos hoje a memória de Santo Inácio de Loyola. A evangelização do nosso país deve enormemente a Santo Inácio e aos jesuítas, que vieram nos trazer a fé. Sua biografia nos apresenta uma dessas grandes conversões que, por sua vez, gerou outras milhões. No entanto, para compreendermos melhor essa história, precisamos falar de alguns aspectos importantes da vida do santo.

Nascido Iñigo López de Oñaz y Loyola, foi um soldado que buscava apenas glórias terrenas. Embora fosse um homem de princípios e valores, prezava apenas virtudes meramente humanas.

Durante o cerco francês a Pamplona, destacou-se como um dos oficiais que mais valorosamente defendeu a cidade espanhola. Quando os espanhóis finalmente viram que a derrota era iminente, entraram em acordo com os inimigos. Iñigo, ainda não convertido nessa época, recusou-se a aceitar a derrota desonrosa, e estava disposto a derramar seu sangue para defender a cidade. Assim, ele e seus companheiros refugiaram-se numa torre, resistindo bravamente até serem finalmente derrotados.

O nobre de Loyola foi atingido por estilhaços de uma bala de canhão que quebraram suas pernas, e então foi levado para casa, a fim de ser tratado. Seus inimigos, reconhecendo a honra e o valor extraordinários do homem que se destacou na defesa da cidade, ofereceram a ele todo o suporte para que fosse levado e tratado em sua casa. Era o reflexo de sua glória e de suas virtudes, ainda que meramente humanas.

Preocupado com sua aparência e integridade física, uma vez que tinha o desejo de se casar, quando Iñigo notou que sua perna havia se curado de maneira torta durante a convalescença, pediu que os médicos — numa época ainda sem o recurso da anestesia — quebrassem novamente sua perna para que, com uma nova cirurgia, corrigissem a deformidade. E ele então suportou corajosamente todo esse doloroso processo a fim de “preservar sua honra” da deformidade.

Portanto, não estamos tratando de um homem comum, mas de um sujeito valoroso, dotado de uma tremenda fibra e determinação, alguém capaz de enfrentar os maiores obstáculos para alcançar seus objetivos. No entanto, ele buscava sua própria honra, não a glória de Deus. Foi somente no leito do hospital que, durante um período de imenso tédio, Iñigo solicitou à enfermeira que trouxesse alguns livros de cavalaria para que pudesse ler. As então populares novelas de cavalaria eram histórias que relatavam os feitos de heroicos cavaleiros que combatiam pela honra e resgatavam donzelas. Mas a enfermeira lhe disse que ali só havia um relato da vida de Cristo escrito por um monge cartuxo e algumas histórias da vida dos santos. Inicialmente, o convalescente recusou, mas vencido pelo tédio, acabou cedendo à leitura daqueles livros religiosos (hoje, talvez nunca teria se convertido, pois provavelmente estaria com um celular na mão).

Contemplando a vida de Nosso Senhor Jesus Cristo e dos santos, Inácio começou a notar que sentia uma consolação e uma alegria que não passavam. Entretanto, quando pensava nos assuntos de que sempre gostara, como os temas de cavalaria, aquilo lhe dava uma alegria momentânea, mas depois só restava vazio e tristeza. Intrigado por isso e analisando profundamente seu interior enquanto pensava na vida de Cristo e dos santos, Inácio começou a se perguntar: “E se eu fizesse como eles fizeram?” E aplicando aqueles exemplos em sua vida, finalmente se converteu.

Em resumo, a vida de Inácio de Loyola, embora repleta de virtudes humanamente admiráveis, revelava-se “torta”. Todas aquelas virtudes, como bravura, coragem, preocupação com a decência e a aparência, eram falsas virtudes. Por quê? Porque careciam de uma finalidade verdadeira.

É crucial entendermos isso. Sem uma finalidade verdadeira e boa na vida, nossas virtudes não passam de simulacros de virtude. Para ilustrar,  imagine um grupo de assaltantes que está planejando roubar um banco — portanto, esta é a finalidade pela qual o grupo se reuniu. Ora, para alcançar esse objetivo, eles fazem um pacto de segredo entre si (“virtude” da fidelidade) e começam a fazer um grande planejamento (“virtude” da prudência) que envolve uma série de preparações físicas: submetem-se a exaustivos exercícios e a uma dieta regrada (“virtudes” da perseverança e da temperança). Adotam até mesmo o celibato, pois retiram-se, concentrados, para longe de suas famílias. Enfim, renunciam a muitos prazeres e facilidades, e fazem inúmeras decisões “virtuosas”. Mas quem de nós diria que tudo isso foi realmente virtuoso, quando sua finalidade era cometer um crime? Ora, nada disso é exemplo de virtude, porque a finalidade é má.

Quando um aparente ato de virtude é praticado por causa de uma finalidade inadequada, não pode ser considerado virtuoso. Se alguém se submete à lealdade, à fidelidade, à temperança, ao celibato e à coragem pelos motivos errados — como era o caso de Inácio, que buscava a própria honra pessoal —, então não está sendo verdadeiramente virtuoso.

Isso não significa que, antes da conversão, Inácio tivesse uma vida depravada, como Santo Agostinho ou Santa Maria Madalena. Ao olhar para a vida de Inácio antes da conversão, muitos de nós até mesmo pensaríamos que ele não precisaria se converter. Era alguém que tinha uma vida admirada pela sociedade, conforme o código de honra da época. Afinal, até seus inimigos admiraram as suas qualidades. Porém, ele queria a sua própria honra e glória, queria somente “a si mesmo”. Ou seja: tal qual assaltar um banco, a sua finalidade era ruim.

Para entendermos a fundo esse problema da finalidade, antes de apresentarmos a solução proposta por Santo Inácio, vamos a outro exemplo (pois precisamos compreender a doença de que padecemos para conseguirmos curá-la). Falarei de mim: imagine se eu, Padre Paulo Ricardo, fizesse tudo o que faço simplesmente por vaidade: abri mão de me casar, entrei no seminário, fundei um apostolado, passei por dificuldades, fui perseguido… Tudo isso para ser bem sucedido e famoso na internet, para vender cursos e ficar rico, para alimentar a minha vaidade. Ora, se essa é a finalidade da minha vida, tudo que faço não vale mais do que esterco!

Nenhuma das virtudes que eu possa apresentar em público — como perseverança, facilidade para reflexão das coisas de Deus, capacidade de pregação (ou quaisquer outras coisas que possam ver em mim) — vale alguma coisa, visto que sua finalidade é má, ou seja, sou eu mesmo. Por conta desse egoísmo, tudo seria ridículo. Seria inadmissível um marido dizer: “Sou fiel à minha esposa porque seria muito vergonhoso receber a pecha de adúltero.” Ora, quer dizer que o sujeito gostaria de cometer adultério, mas não o faz para não manchar sua “honra”, para não “passar vergonha”. Podemos imaginar também a pessoa que vai à Igreja e nunca falta a uma Missa porque, quando se ajoelha, fecha os olhos e posiciona as mãos postas em oração, fica muito feliz porque as pessoas a admiram e a acham santa. Perceba que são coisas boas, mas a finalidade é má.

Pois bem, Santo Inácio de Loyola elaborou um caminho que chamou de Exercícios Espirituais. Em termos simplificados (embora seja mais do que isso, vamos expressar de forma mais simples), trata-se de um retiro de 30 dias no qual a pessoa, meditando sobre a sua vida e sobre a vida de Jesus, busca reconduzir-se para aquilo ao que Inácio chama de princípio e fundamento. E o que é esse princípio e fundamento? Nascemos para servir a Deus em todas as coisas pela glória dele: “Ad maiorem Dei gloriam” (“Para a maior glória de Deus”). Eis a verdadeira finalidade: “Não pertenço a mim mesmo. Sou de Deus, nasci para Deus, devo tudo a Ele. Deus deve ser a minha finalidade e, por isso, vou amá-lo e servi-lo. Deus deve ser a razão de tudo. Sem essa finalidade, princípio e fundamento, absolutamente tudo o que eu fizer será absurdo, ridículo e sem virtude.”

Portanto, por que você, marido, deve ser fiel à sua esposa? “Porque Deus é muito bom e fiel comigo. Logo, serei fiel a ela como prometi diante de Deus.” E você que trabalha: busca ganhar dinheiro, sofre e passa dificuldades para quê? “Para que eu, servindo à minha família, sustentando a minha mulher e os meus filhos e conduzindo-os pelo caminho do Céu, possa amar e servir a Deus, que é a finalidade última da minha vida.” É deste modo que você faz as coisas com virtude!

O que estamos transmitindo é o ensinamento básico e fundamental de Santo Inácio de Loyola: se você não faz as coisas tendo a Deus como a finalidade última e razão de tudo, a sua vida não é ética. Isso não é ética; é apenas etiqueta. Sabe o que é etiqueta? É o diminutivo de ética. É uma “eticazinha”: você faz tudo pela aparência, por finalidades ridículas, por uma honra tola e passageira. Por que você, ao chegar à porta, permite que uma mulher passe primeiro? “Por etiqueta”. Mas se faz isso por amor a Deus, porque você diz assim: “Tratarei todas as mulheres como se fossem a Virgem Maria.” “Pois não, minha senhora, pode passar primeiro.” Aí você não tem mais etiqueta, tem ética, porque está agindo por uma finalidade maior, pela finalidade verdadeira e última.

Por que ser casto? Sincero? Honesto? Por que ser corajoso para enfrentar as adversidades? Por que motivo pagar as suas dívidas? Todas as coisas boas que você faz, se não as faz por causa de Deus, então a sua vida é sem princípio e fundamento; você está fazendo as coisas certas pelas razões erradas. Busque fazer tudo “para a maior glória de Deus”! Isso nos leva a viver a vida como um exercício espiritual, ou seja, um exercício de revisão constante da consciência: “Por que faço o que faço? Por quê?” Pois os seres humanos têm a capacidade de começar as coisas com boas intenções, mas terminar fazendo-as por razões erradas.

O pequeno Paulo Ricardo Jr. — em casa, sou chamado de Júnior — sai de casa para ir ao seminário tornar-se sacerdote para a maior glória de Deus, “porque amo a Deus e quero dar a Ele a minha vida” etc. No meio do caminho, porém, ao ver que muitos me admiram como padre, aquilo que era a finalidade última, a glória de Deus passa a ser a minha própria glória. Desse modo, ainda que eu continue fazendo as mesmas coisas virtuosas de antes, perdi a razão. Troquei a ética pela etiqueta, e as minhas virtudes não são verdadeiras virtudes, porque tornaram-se “virtudes” de assaltantes de banco. São falsas virtudes de um padre egoísta, vaidoso e carnal. Estou colocando a “carapuça” na cabeça para você entender que tem de caber na sua!

Comece a compreender por que você faz o que faz. Perceba que, geralmente, você começa a fazer as coisas por boas razões. A maior parte das pessoas não vai à Igreja por vaidade. A maioria dos cristãos não deixa o pecado e adota uma vida nova em Cristo por egoísmo. Mas pode acontecer que você, que um dia deixou a vida velha por amor de Nosso Senhor, no meio do caminho se esqueça de Cristo e comece a fazer as coisas certas pelas razões erradas.

Precisamos, constantemente, buscar a purificação das intenções e da razão: “Por que faço cada coisa que faço?” Esta é uma luta, um exercício espiritual, que precisamos fazer todos os dias de nossa vida. Santo Inácio viu que tinha virtudes, mas que suas virtudes não eram ética, eram etiqueta. Ele viu que fazia o que fazia não por procurar o bem maior e supremo, a razão de ser de tudo. Inácio procurava a si mesmo. E quando se tem uma vida cheia de “virtudes” que servem unicamente ao seu “próprio umbigo”, há algo de profundamente errado.

Eis a síntese do que estamos transmitindo hoje nesta pregação: devemos fazer as coisas certas pelas razões certas, e não somente fazer as coisas certas. Ao contrário dos animais, precisamos nos recordar de que os seres humanos, ao agirem, possuem intencionalidade. Somos capazes de realizar feitos admiráveis com as mais pérfidas e más motivações. Quando seu filho senta em seu colo e beija você, isso pode ser um gesto virtuoso, que expressa amor e piedade filial, mas também pode ser  simplesmente um beijo interesseiro de quem pedirá um favor logo depois. Que mãe não se sentiria ofendida ao perceber que o suposto gesto de amor esconde outra intenção?

Santo Inácio, que levou uma vida humanamente admirável e reta, converteu-se porque reconheceu que sua vida, embora aparentemente íntegra, era, na verdade, má. Ele buscava somente a sua própria honra e glória. Desse modo, renunciou a tudo e passou a orientar suas ações “ad maiorem Dei gloriam”, princípio e fundamento da nossa existência. Por isso precisamos fazer esse exercício espiritual diariamente.

O homem foi criado para servir a Deus; portanto, deve se aproximar de todas as coisas em sua vida considerando se estas o ajudam a servir a Deus, e deve se afastar delas na medida em que não contribuem para a maior glória dele. A finalidade é tudo! Há um adágio popular completamente equivocado, que afirma: “O Inferno está cheio de boas intenções”. Isso não é verdade. Se há algo que não existe no Inferno, são boas intenções.

O Inferno pode estar repleto de pessoas que realizaram boas ações, mas suas intenções eram más. Não existem intenções verdadeiramente boas para fazer o mal. Se a intenção é reta, boa e legítima, se a finalidade é Deus, então tudo está justificado. Isso não significa que os fins justificam os meios. Acontece que aqueles que encontraram o fim verdadeiro, que é Deus, não se utilizarão de meios maliciosos, malignos e desonestos, pois assim a intenção deixaria naturalmente de ser pura e legítima.

Peçamos então a Santo Inácio para que, do Céu, interceda por nós, ajudando-nos a “desentortar” a nossa vida, a fim de que façamos qualquer coisa buscando a finalidade última e verdadeira. E que possamos nos recordar de que não basta fazer o que é correto, temos de fazer o que é correto pelas intenções certas. Colocar Deus em primeiro lugar, como razão de tudo. Isso é cumprir o mandamento de amar a Deus sobre todas as coisas.

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