Ao celebrar o martírio de São João Batista, esse drama que é a morte do precursor de Cristo, nós poderíamos analisar vários de seus personagens: as motivações de Herodíades, de sua filha (que a tradição chama de Salomé), ou do próprio santo e de seus discípulos. No entanto, peço permissão ao último dos profetas, cuja festa comemoramos hoje, para falar de Herodes. Veremos que o comportamento do Tetrarca da Galileia é uma luz para resolvermos problemas que muitos de nós experimentamos.
Notamos que o Evangelho aponta um dado curioso: Herodes gostava de ouvir João Batista. Herodes é um homem que vive em adultério, pois se uniu maritalmente com a mulher de seu irmão. Ele sabe que está em pecado, e que está fazendo algo errado — e João Batista lhe diz isso claramente. Mas, estranhamente, embora sinta-se embaraçado, Herodes não se decide pela mudança. Até aí, temos um fenômeno psicológico comum: o da pessoa que ouve uma pregação, fica “incomodada” ao ver que aquelas palavras são para ela, e sabe que é preciso mudar de vida — mas a luz da verdade ainda não afetou sua vontade o suficiente para que ela dê o passo da conversão. O que nos deixa mais intrigados nesse relato evangélico, no entanto, é o fato de que Herodes, nessa incômoda posição, gostava de ouvir João.
Como explicar esse fenômeno? Afinal, ninguém gosta de ficar desconsertado, ou de ser desmascarado. Para lançar luz sobre algo que podemos ter em comum com Herodes, vamos entender o que uma pessoa faz quando ouve uma pregação. É certo que muitos católicos gostam de ouvir a vida dos santos: é algo bom e edificante ouvirmos sobre aqueles atos heróicos e valorosos — histórias cheias de maravilhas. Mas o problema está no que decidimos fazer depois com essas narrativas.
Quando ouvimos, por exemplo, sobre a vida do Padre Pio, as aparições de Nossa Senhora de Fátima, sobre Santa Faustina, São João Bosco e suas visões, ou até mesmo sobre a história dos missionários que vieram evangelizar o Brasil, o que acontece? Ouvimos a narrativa, guardamos aquilo na memória e, dali para a frente, recordamos aquilo por uma faculdade que chamamos de imaginação: é o que acontece quando tiramos algo da memória para “revivermos” em nossa mente. Mas, para que a imaginação seja frutuosa, é preciso aplicar aquelas memórias em nossa vida.
A imaginação precisa ser um instrumento, uma serva daquelas experiências que ouvimos, para que elas sejam aplicadas no mundo real. Inicialmente, eu pego aquilo que pertenceu à vida dos outros: as passagens bíblicas, as aparições de Nossa Senhora, a vida dos santos; então eu as recordo, acessando a minha memória. Tudo isso é bastante prazeroso, mas ainda bastante inútil quando permanecemos somente no mundo “dos contos de fada”. É como, somente por entretenimento, ler O Senhor dos Anéis: é um mundo de sonhos, você sabe que aquilo não existe. Então você pode contar tanto os “Contos da Carochinha” quanto a vida dos santos e, como aquilo tem beleza, será algo que nos dará prazer.
Ora, as coisas que São João Batista falava para Herodes também eram belas! E é prazeroso ouvir algo assim porque a nossa inteligência foi feita para isso — para o Belo, o Bom e o Verdadeiro. Mas precisamos pegar essas coisas belas e “aterrisar”, ou seja, imaginá-las em nossa vida. A imaginação deve ser serva da experiência: “E se eu fizesse isso?”, “E se eu agisse dessa maneira?” Temos de fazer como Santo Inácio de Loyola: depois de ter a sua perna quebrada em uma batalha, o jovem que estava “hospitalizado” e entediado, pediu a um criado que lhe trouxesse alguns romances de cavalaria — ele queria se distrair com algo que simplesmente o tirasse do mundo real, “viajando” para o mundo de Lancelot e dos Cavaleiros da Távola Redonda . Acontece que, em vez disso, trouxeram-lhe alguns livros contando a vida de Cristo e dos santos. E, então, veio o grande milagre de sua vida: Inácio começou a “fantasiar” sobre aquelas leituras, sobre todos aqueles relatos hagiográficos, mas de forma a se perguntar: “E se?...” — e se ele mesmo fizesse o que aquele santo fez? E se vivesse daquela forma? Ele soube usar a imaginação: passou a fazer hipóteses de ação, a pensar como seria aplicar aquilo em sua vida. Então, engajou a sua vontade, cada vez mais robustecida, a fim de intimar uma verdadeira mudança em sua vida.
Temos aqui a mesma capacidade de fantasia e de imaginação, mas usada de formas diferentes: ou como mecanismo de mera fuga prazerosa para o mundo irreal, ou como serva da verdade, elaborando hipóteses de vida para, em seguida, engajar-se em uma mudança de fato no seu modo de agir.
Herodes tinha, a seu dispor, talvez um dos melhores pregadores que já existiram — ninguém menos do que aquele que Deus escolheu pessoalmente para preparar o caminho de Cristo. Imagine com que autoridade João Batista era capaz de pregar! A graça da “voz que clama no deserto: Preparai o caminho do Senhor” (cf. Jo 1, 23), capaz de verdadeiramente tocar almas, de convidar as vontades, de transformar inúmeros corações. Mas Herodes, em contato com essa graça, decidiu jogá-la fora.
Baldados os esforços do santo precursor, Herodes continua na mesma vida, e hoje arde no fogo do Inferno apesar da graça divina ter-lhe batido à porta, com o próprio precursor de Cristo pregando em sua “capela privada”. Nada disso serviu a Herodes, porque embora aquelas palavras o desconsertassem por um certo momento, conduzindo-o na direção da realidade, o governante logo cuidava de voltar para o mundo da fantasia, tratando aquela pregação como nada mais que “romances de cavalaria”.
Podemos dizer que Herodes era daqueles que se denominam homens “práticos”. Um sujeito que não se apegava a “bobagens” no dia a dia. É claro que tinha aquele prazer onírico das boas histórias, mas depois que descia ao chão, simplesmente descartava tudo como histórias bonitas de um homem idealista, e partia para resolver seus problemas práticos do reino. Assim, Herodes não via problema algum em trapacear, em mentir, trair ou escamotear. Mais tarde, quando o próprio Jesus se encontra com Herodes, Ele permanece calado. Perceba que Nosso Senhor conversa com Pilatos e responde aos Sumos Sacerdotes Anás e Caifás, numa última tentativa de converter seus corações empedernidos; mas não dirige a palavra a Herodes — o Tetrarca já tivera a oportunidade com João Batista. Lembremos das palavras de Santo Agostinho: “Tenho medo do Deus que passa e não volta.”
Assim como Herodes tinha prazer em ouvir João, ele quer tratar Jesus da mesma forma. Os Evangelhos nos dizem que o governante queria ver Jesus; mas não porque queria ver a verdade, mas os milagres, o espetáculo. Herodes queria admirar um “leão de circo”; queria se divertir — porque para ele, que já tinha ouvido as verdades sublimes do Evangelho, tudo aquilo era nada mais do que fantasias de um mundo belo, mas irreal. E assim somos nós quando tratamos o Evangelho como um belo ideal, mas impossível de se viver de verdade. Cuidado, quem pensa assim está no caminho do Inferno. Herodes hoje arde no fogo eterno porque, tendo ouvido o Evangelho, descartou-o como um sonho igualmente agradável, mas inaplicável na vida real.
Você é daqueles que ouve a vida das virgens mártires, ouve sobre a pureza de Santa Inês, de Santa Águeda, de Santa Luzia, e diz que, infelizmente, o que vale no mundo real é o que Freud ensinou: que ninguém vive sem dar vazão à sexualidade? Fica enternecido ao ler sobre o heroísmo dos missionários que atravessaram mares, que subiram montanhas e enfrentaram onças para converter os índios, como São José de Anchieta, mas somente para concluir que aquilo, certamente, é só uma narrativa épica agradável — “Por que, afinal, precisamos de heróis?” Fica conjecturando que homens como aqueles jesuítas certamente tinham sempre algum “interesse” econômico e político? É fato que é belíssimo ouvirmos sobre Anchieta compondo o Poema da Virgem em uma das praias de Peruíbe; difícil é viver a castidade, o heroísmo e a fortaleza de Anchieta.
Vejam como descartamos os mais belos e sublimes exemplos, as verdades mais luminosas, para dizer: “É bonito, só que na vida real…” Temos a mania de nos acharmos muito críticos, com a ilusão de que isso automaticamente nos faz muito mais inteligentes! Somos condescendentes ao ouvirmos a vida dos santos, para em seguida jogarmos no lixo — mas com ar crítico — o que elas têm de mais importante: “Precisamos fazer uma crítica das fontes históricas. Essa historiografia católica está viciada porque são pessoas que congregam um ideal, mas na verdade o que está por trás de tudo são os interesses econômicos, sexuais e de fama e poder. Isso, sim, é o mundo real, mas o populacho precisa de ‘contos de fada’ para serem manipulados pelos detentores de verdadeiro poder. Viram só como sou crítico?” Para quem pensa assim, não se preocupe: o Inferno tem um lugar preparado para você, o Departamento Herodes — para onde vai quem trata o Evangelho como “história da carochinha”!
O que precisamos é pegar o Evangelho e usar a imaginação para aplicá-lo em nossa vida. O que fazer quando o Evangelho nos exigir uma verdadeira mudança? Está na hora de usarmos, na prática, essa capacidade de “fantasia”. Coloquemo-nos no lugar de Herodes: ele teria que reformular, reordenar toda a sua vida!
Imagine, passando na cabeça dele: “Eu vi Salomé dançando e jurei que lhe daria até mesmo a metade de meu reino, mas ela me pediu a cabeça de João Batista num prato”. Qual teria sido a sua única atitude possível e respeitável? Certamente, seria dizer: “Salomé, Herodíades e todos que ouviram meu juramento: desculpem-me, mas coloquei coisas sérias nas mãos de uma menina sem escrúpulos. Por isso, decidi voltar atrás, porque prometi a uma pessoa sem virtudes uma decisão grave, e não posso matar um inocente para contentar esse tipo de capricho.” E não somente isso. Imagine, depois da vergonha diante dos convidados, Herodes refletindo: “João Batista tem razão! Estou vivendo em adultério. Vou mandar Herodíades de volta para casa e pedir perdão a meu irmão. A partir de agora, eu preciso mudar de vida e me penitenciar.” E hoje nós estaríamos, quem sabe, venerando Santo Herodes, construindo igrejas e capelas dedicadas a um homem que encontrou e se devotou à verdade. É possível que hoje Herodes estivesse operando milagres tão grandes quanto aqueles que, levianamente, queria que Jesus fizesse diante dele como se fosse um bobo da corte.
Por fim, assim como agora estamos usando a nossa imaginação para enxergarmos um desfecho diferente nesse drama de Herodes e São João Batista, convido você a fazer o mesmo em sua vida. Pergunte-se: será que não estou sendo como Herodes? Estaria Deus convocando-me para uma mudança? Será que Deus não está pedindo, na minha vida real e concreta, que eu realmente vire o meu cotidiano “pelo avesso”? Será que não estou abraçado com o pecado, enquanto trato o Evangelho como uma fantasia irreal?
Os que permanecem somente na fantasia terminarão no mesmo lugar que Herodes; mas os que fazem como Inácio de Loyola, e aplicam o Evangelho dizendo: “Se eles fizeram isso, por que não eu?”, terão a mais sublime recompensa. Podemos, enfim, usar toda essa experiência adquirida da vida dos santos e aplicá-las em nossa própria realidade — é a fantasia como serva da realidade, da conversão, da mudança de vida, da reformulação dos ideais, costumes e prioridades. Eis a preciosa lição que Herodes nos dá neste dia bendito de São João Batista.
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