Haveria mesmo algum problema com o Missal de Paulo VI?
Essa pergunta só se tornou pertinente, ao menos para nós, depois que o Cardeal Ratzinger levantou a suspeita, manifestando a necessidade de uma “reforma da reforma” litúrgica, expressão que ficou famosa em alguns de seus textos. Também como Papa, Bento XVI fez vários gestos nessa direção, com o apoio de seu então mestre de cerimônias, monsenhor Guido Marini.
Para quem foi educado numa experiência mais majestosa da liturgia pós-conciliar, a crítica permanente dos tradicionalistas à chamada “Missa Nova” devia parecer, no mínimo, um exagero saudosista. Os membros do cabido da Basílica de São Pedro, por exemplo, sempre foram exortados a tratar a liturgia com máxima reverência, sobretudo no tempo em que o Cardeal Virgílio Noè esteve à frente do grupo, na função de arcipreste. Por ter sido mestre de cerimônias de Paulo VI, o Cardeal Noè era um verdadeiro entusiasta do Missal reformado, de modo que ele insistia muito no respeito às rubricas e à dignidade da Eucaristia. Nesse sentido, ninguém que fosse fiel a esse mesmo espírito podia achar razoável o que se dizia nos meios mais tradicionais a respeito da reforma litúrgica pós-conciliar.
Até que Bento XVI resolveu publicar o Motu Proprio Summorum Pontificum e recuperar algumas tradições mais antigas, seja no uso de paramentos mais solenes, seja na celebração ad orientem. De fato, a iniciativa do Papa Bento suscitou, como acenamos anteriormente, uma questão inadiável acerca da estrutura do atual Rito Ordinário, que, embora seja realmente válido e obrigatório, não deixa de apresentar certas lacunas e deficiências. Trata-se, portanto, de considerar como o novo Missal respeita e custodia os três pilares da liturgia eucarística, isto é:
- A distinção própria e certa entre o ofício do sacerdote ordenado e o do laicato no oferecimento do sacrifício eucarístico;
- A presença real, verdadeira e substancial de Cristo nas espécies eucarísticas; e
- A natureza sacrifical da Missa.
Dentro da vasta bibliografia sobre o assunto, quem nos pode oferecer uma introdução muito oportuna nesse debate é o autor Michael Davies. No primeiro volume de sua trilogia sobre a reforma litúrgica, Davies apresenta um relato minucioso e, ao mesmo tempo, chocante de como o arcebispo Thomas Cranmer, líder da Igreja Anglicana no tempo de Henrique VIII, manipulou o Livro de Orações e a liturgia, a fim de converter a fé católica do rei e dos demais ingleses num calvinismo disfarçado. Sim, Henrique VIII tinha uma fé ortodoxa nos sacramentos, especialmente na Eucaristia, apesar do rompimento com o Papa. Por isso, Cranmer viu-se obrigado a uma estratégia ardilosa para perverter o hábito da fé nos fiéis, escrevendo, para isso, textos ambíguos que podiam ser interpretados segundo a teologia calvinista. Assim, num prazo de poucas gerações, ele conseguiu acabar com a fé católica na Inglaterra, negando o caráter particular do sacerdócio ordenado frente ao dos simples batizados, o dogma da transubstanciação de Cristo na Eucaristia e, por fim, a natureza sacrifical da Missa.
Conforme a expressão consagrada do liturgista J. A. Jungman, “a Missa nos conduz ao Calvário”. Para Cranmer, no entanto, o sacrifício oferecido pelo sacerdote católico na liturgia não tinha nada a ver com o Corpo de Cristo nem com a sua Paixão. Tratar-se-ia apenas de um “sacrifício de louvor”, realizado durante a ceia comunitária, esta também sem qualquer graça sacramental. Com essa mentalidade, diz Davies, “a fé do povo católico pôde ser alterada simplesmente ao se alterar a liturgia” [1]. Em outras palavras, modificando a lex orandi, o arcebispo Cranmer modificou a lex credendi. Cranmer levou a cabo seu intento por meio de textos propositalmente ambíguos e da pregação insistente de heresias.
A partir desse panorama inicial já podemos vislumbrar quais sejam os problemas da reforma paulina. Na verdade, o terceiro volume do trabalho de Michael Davies analisa como o Missal de Paulo VI é textualmente ambíguo — a Oração Eucarística II, por exemplo —, podendo ser interpretado em alguns lugares tanto em sentido católico quanto em sentido protestante.
Quando Paulo VI encerrou o Concílio, havia o texto formidável da Constituição Sacrosanctum Concilium, que jamais pediu a confecção arbitrária de um novo Missal. A partir da natureza e do crescimento orgânico da própria liturgia, o que se pedia era uma reforma que ajudasse os fiéis a exprimir na vida e a manifestar aos outros “o mistério de Cristo e a autêntica natureza da verdadeira Igreja” (n. 2). Mas o que o Consilium ad exsequendam Constitutionem de Sacra Liturgia, comissão chefiada pelo controverso Annibale Bugnini, acabou fazendo foi algo bastante diverso. Tal foi a revolução empregada na reforma pós-conciliar que um de seus defensores constatou, ao término dos trabalhos: “O rito romano tal qual o conhecemos não existe mais”. Daí a notória diferença entre a chamada Missa Tridentina e a Missa do Vaticano II, duas formas do mesmo rito romano que parecem se contrapor.
A esse respeito, o já falecido Cardeal Ferdinando Antonelli, ex-membro do Consilium, deixou alguns escritos bastante intrigantes que revelam o caráter radical dos seus companheiros reformadores. Desde logo, é curiosa a afirmação de que o grupo contava com alguns observadores protestantes, cujas ideias serviram para pautar a mentalidade antirromana e o desprezo pela liturgia como era celebrada até então. Além disso, segundo o mesmo relato do Cardeal Antonelli, havia também a tendência dos arqueologistas, que desejavam expurgar da Missa tudo aquilo que fosse “acréscimo medieval”. No fim das contas, o Missal preparado pela comissão resultou numa indigência litúrgica tão grande que, para preencher certos espaços, muitos liturgistas se dão o direito de inventar pantomimas e jograis para “incrementar” a celebração eucarística.
Os relatos do Cardeal Ferdinando Antonelli foram compilados em livro pelo monsenhor Nicola Giampietro. A sua publicação causou tanto furor, que os defensores da reforma litúrgica resolveram enviar todo o acervo do Consilium para o Arquivo Secreto do Vaticano, com um embargo de 80 anos. Além do que já mencionamos, outra situação embaraçosa que provavelmente quiseram esconder é a do protagonismo do então padre Annibale Bugnini na condução da reforma. Para ele, era fundamental criar uma Missa ecumênica, eliminando “cada pedra que pudesse se tornar ainda que só uma sombra de possibilidade de obstáculo ou de desagrado aos irmãos separados” [2]. Por isso, embora os observadores protestantes não tenham ajudado diretamente na redação do Missal, a forma mentis de quem o escreveu deixou aberta a possibilidade de um duplo padrão hermenêutico, semelhante ao da reforma de Cranmer.
Ao se dar conta dessa realidade, o Papa Paulo VI tomou algumas iniciativas para remediá-la. Em primeiro lugar, o Santo Padre exigiu que o Cânon Romano fosse preservado na liturgia eucarística. Também escreveu a encíclica Mysterium Fidei, condenando as teorias que colocavam em xeque o dogma da transubstanciação. Por fim, mandou reeditar a Instrução Geral do Missal Romano, a fim de que a nova versão expressasse com maior clareza a doutrina católica sobre o sacrifício eucarístico. Com isso, o Papa quis afastar a mentalidade de que a “renovação do Missal Romano tenha sido feita de modo improvisado” (Missale Romanum, 3 de abril de 1969). Mas nenhum desses esforços, devemos admitir, foram suficientes para estancar a sangria no Corpus Domini, isto é, na sagrada Liturgia revisada após o Concílio.
De qualquer modo, a principal deficiência do Missal de Paulo VI continua a ser a sua ambiguidade com relação àqueles três pilares da liturgia católica. Chama a atenção, nesse sentido, a Oração Eucarística II, que não distingue o sacrifício oferecido exclusivamente pelo sacerdote do sacrifício de louvor dos fiéis, de modo que a presença real, verdadeira e substancial de Cristo no Santíssimo Sacramento fica apenas subentendida. E quando se fala da oferta do pão e do vinho [3], o fiel bem pode entendê-la como uma obra da humanidade, segundo a “teologia cósmica” de Teilhard de Chardin. Que haja uma ligação direta entre essa forma de celebração e a crescente incredulidade sobre a Eucaristia no meio clerical, parece coisa mais que provável. Foi exatamente isso que ocorreu com os católicos da Inglaterra após anos a fio celebrando a liturgia de Cranmer.
A “reforma da reforma” sugerida por Bento XVI, portanto, não pretende escrever outro Missal, mas reaproximar a atual liturgia da sua fonte mais genuína, a fim de fazê-la “manifestar, de maneira mais intensa do que frequentemente tem acontecido até agora, aquela sacralidade que atrai muitos para o uso antigo” (Carta aos Bispos…, 7 de julho de 2007). Por fim, insiste Bento XVI, “a garantia mais segura que há de o Missal de Paulo VI poder unir as comunidades paroquiais e ser amado por elas é celebrar com grande reverência em conformidade com as rubricas” (id.).
Veremos mais detalhes a esse respeito na próxima aula.
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