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Texto do episódio
02

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas
(Lc 17,5-10)

Naquele tempo, os apóstolos disseram ao Senhor: “Aumenta a nossa fé!” O Senhor respondeu: “Se vós tivésseis fé, mesmo pequena como um grão de mostarda, poderíeis dizer a esta amoreira: ‘Arranca-te daqui e planta-te no mar’, e ela vos obedeceria.

Se algum de vós tem um empregado que trabalha a terra ou cuida dos animais, por acaso vai dizer-lhe, quando ele volta do campo: ‘Vem depressa para a mesa?’ Pelo contrário, não vai dizer ao empregado: ‘Prepara-me o jantar, cinge-te e serve-me, enquanto eu como e bebo; depois disso tu poderás comer e beber?’ Será que vai agradecer ao empregado, porque fez o que lhe havia mandado? Assim também vós: quando tiverdes feito tudo o que vos mandaram, dizei: ‘Somos servos inúteis; fizemos o que devíamos fazer’”.

Neste 27.º Domingo do Tempo Comum, continuamos a leitura do evangelho de São Lucas, em que Jesus dirige uma palavra aos discípulos. Poderíamos dizer que as duas colunas que resumem o Evangelho de hoje são a fé e a humildade, duas virtudes que estão na base do edifício espiritual. Primeiro, Jesus fala da fé, porque os próprios Apóstolos lhe pedem: “Aumenta a nossa fé”.

Pois bem, Jesus fala da fé, dizendo que, se tivéssemos uma fé pequena como um grão de mostarda, nós diríamos a uma amoreira (a comparação com a amoreira é própria de São Lucas): “Arranca-te da terra e planta-te no mar”. São, portanto, dois milagres: um é arrancar uma amoreira de raízes profundas; outro, não menos importante, é plantar a árvore no mar. É evidente que Jesus está se usando aqui de uma hipérbole, ou seja, de um exagero cuja finalidade é nos ensinar o que a fé realiza dentro de nós.

Num segundo momento, Jesus fala do servo inútil. Nossa tradução litúrgica usa a palavra “empregado”, mas o termo é fraco, fazendo o Evangelho perder um pouco o sentido. Na verdade, Jesus não está falando nem de servo nem de empregado; está falando de “escravo”, ou seja, de uma coisa, de uma pessoa que é propriedade de outra, no sentido radical da palavra: escravo é pessoa sem direitos, que vive para servir ao seu senhor e dele depende radicalmente para sobreviver. (Eis a profundidade da palavra “senhor” quando nós chamamos Jesus de Senhor. Significa que nós pertencemos a Ele; não somos nossos.)

Esse é, em resumo, o Evangelho deste domingo. Comecemos pela primeira parte, que nos fala da fé. Em primeiro lugar, precisamos recordar o que é a fé. Quando você verdadeiramente crê no que Jesus ensina e revela pela pregação da santa Igreja; quando você tem fé na autoridade do Deus que se revela em Cristo, você está se submetendo a Deus por meio da inteligência.

Ora, o que o homem tem de mais elevado? A inteligência. Os animais não têm inteligência. Não adianta pregar para animais. Só por um grande milagre Santo Antônio pôde pregar aos peixes; mas isso se deu para que os peixes pregassem aos homens que, soberbos que eram, tinham de aprender, ainda que fosse pelo exemplo de criaturas irracionais, a submeter seu intelecto a Deus.

Quem não tem fé é impiedoso e soberbo, pois prefere crer nas próprias opiniões a crer naquilo que Deus revela. É como se dissesse: “Deus, tu não estás me convencendo. É melhor argumentares melhor, porque os teus argumentos até agora são muito fraquinhos”. A pessoa está julgando a Deus, mas nós não fomos feitos para isso. Nós fomos feitos para crer. Santo Tomás de Aquino nos diz com clareza que nós fomos feitos para ter fé. Ninguém foi feito para a incredulidade. Por isso, quem não tem fé está numa situação contrária à natureza humana.

Isso se vê na própria estrutura do ser humano. Se nós estamos vivos hoje, é porque tivemos fé algum dia. Por exemplo, uma mãe que diz: “Filho, faça tal coisa” e ele fez, ou seja, ele creu nela, submeteu-se a alguém que sabia mais. Agora, imaginemos uma mãe que diz: “Coma isso, porque você precisa”. A criança retruca: “Ah, não, eu não vou confiar em você. E se houver veneno na comida?” A mãe explica: “Não tem veneno, filho. É para o seu bem. Coma”. Mas ele insiste: “Não, não creio” e se rebela, não faz o que a mãe está pedindo e não come nem hoje, nem amanhã, nem depois… 

Resumo da história: não estaríamos vivos se, ainda crianças, tivéssemos negado fé à palavra de nossos pais. É natural do homem crer numa inteligência superior à dele. A criança vê na mãe uma inteligência bondosa e superior, por isso crê e obedece. Isso é natural.

Acontece, porém, que estamos numa sociedade que incentiva a descrença, a falta de fé, a desconfiança. Não queremos nos submeter a Deus, e no entanto é a coisa mais natural que nós, mais inteligentes do que os animais e menos do que os anjos, nos submetamos à inteligência infinita de Deus.

 Essa submissão de fé está profundamente unida à humildade. “Povo de dura cerviz”, diz Deus aos soberbos de Israel. Quem tem dura cerviz é incapaz de dobrar o pescoço, isto é, de inclinar a cabeça. O soberbo tem dura cerviz porque não inclina a inteligência, ou seja, não admite que sua própria inteligência e sabedoria seja menor, infinitamente menor, que a de Deus.

Ora, é próprio do homem equilibrado, saudável e normal se submeter ao Deus que se revela. Onde está a rebeldia humana? Desde Adão e Eva, a rebeldia humana consiste no seguinte. Deus disse: “Podeis usar dos bens da criação. Comei de todas as árvores, mas da árvore do bem e do mal não podeis comer”. O que era a árvore do bem e do mal? A árvore que dizia o que é bom e o que é mau, ciência reservada a Deus.

Nós, seres humanos, não podemos tomar o lugar de Deus — “Sereis como deuses” — e dizer: “Isso, para mim, não é pecado. A primeiríssima coisa que devemos a Deus é a obediência, obediência da fé. Se Ele diz: “Isso é pecado, vai-te fazer mal; não comas que é veneno: ‘Se comerdes do fruto desta árvore, morrereis’”, é porque isso é realmente pecado e destrutivo.

A destruição do homem consiste na revolta de não se submeter ao Deus que se revela para nos dizer o que é bom e o que é mau. Deus diz: “Não matar”, por exemplo. Então não matemos os outros em nosso coração. Não matemos o nascituro com anticoncepcional, pílula do dia seguinte, aborto etc. Deus diz: “Não cometa adultério”, o que inclui não fazer sexo antes do casamento, não se masturbar, não ver pornografia etc.

Deus nos revelou o que é certo e o que é errado; mas nós — que nos achamos grandes, sábios e maravilhosos — sabemos mais do que Deus: “Deus, senta-te no banco dos alunos, e eu, na cátedra luciferiana do meu orgulho, irei julgar-te. Deus, tu estás errado”. Você não vê o absurdo disso? 

Antes de qualquer coisa, você precisa ter fé. Deus é muito bom. Ele é sábio, é Ele quem diz o que está certo e o que está errado. Quanto a nós, tratemos de obedecer aos mandamentos. Ele diz: “Não furtar”, então não se deve pegar o que pertence ao outro; Ele diz que não se pode levantar falso testemunho, então é proibido contar “mentirinhas” para escapar dos problemas. Controlemos a língua, paremos de desejar o corpo dos outros. O sexo foi feito para ser realizado dentro do casamento. Se você não é casado, não tem por que passar o dia olhando para o corpo dos outros. Paremos de cobiçar coisas materiais, fazendo do dinheiro o nosso “deus”.

É isso o que Deus ensina a todos. Mas nós não queremos nos submeter! Nós somos os “grandes”, os “maravilhosos”!… — “Mas, padre, é tão difícil seguir os mandamentos”. Sim, é difícil se você não crescer na fé. O que Jesus está ensinando no Evangelho? Que nós precisamos fazer a fé crescer.

Sobre isso há algo muito prático que eu preciso ensinar. Se você quer mudar de vida e obedecer aos mandamentos de Deus mas está tendo dificuldades, sabe o que deve fazer? A primeira coisa é rezar e, por meio da oração, aumentar a sua fé. Numa palavra, você precisa meditar as coisas de Deus.

Por quê? Porque, antes de tudo — é o primeiro passo, o bê-á-bá da história — ninguém ama o que não conhece. Você quer obedecer a Deus, seguir os mandamentos, amar os outros, ter virtudes? Tudo isso depende de sua força de vontade, mas a sua vontade é fraca. Como a vontade se fortalece? Pela inteligência da fé. É preciso meditar as coisas de Deus amorosamente, ver o que Ele ensina, seja no Catecismo, seja na vida dos santos, seja no Evangelho. Trata-se de buscar a verdade para amá-la e ser iluminado por ela. A verdade, ao iluminar a inteligência, torna a vontade mais forte.

Ora, você faz o quê? Passa o dia inteiro pensando em sabe-se lá o quê, em coisas até honestas, — como fará para pagar as contas, para manter o plano de saúde, para ter saúde e praticar esporte, para manter família, para comprar uma casa, para trocar de carro… —, coisas honestas mas todas carnais!

Meu irmão, se a sua cabeça está muito ocupada como a de Marta, incapaz de se concentrar no único necessário, de meditar as coisas de Deus, sua vontade se tornará cada vez mais fraca. Quer ter vontade firme para obedecer aos mandamentos de Deus? Pense nas coisas de Deus, medite, reze, ocupe sua cabeça vazia com coisas espirituais, porque a inteligência ilumina a vontade. Começa-se por aí, na reflexão sobre Deus.

Mas eis o que a Serpente fez a Adão e Eva: os fez refletir na direção contrária. “Tu achas que, obedecendo a Deus, serás feliz? Não! Será como Deus se desobedeceres, então serás verdadeiramente feliz”. Adão e Eva, enganados pelo pai da mentira, foram levados para longe da verdade. Em outras palavras, foi com a inteligência, antes de tudo, que Adão e Eva foram enganados. Foi nela que se instalou primeiro a suspeita de Deus.

Na civilização ocidental moderna, nós nos achamos muito “bonzinhos” e muito “maravilhosos” porque duvidamos e suspeitamos de tudo… Não! Baixemos a dura cerviz e com inteligência obedeçamos a Deus, amemos a verdade de Deus, busquemos amorosamente a verdade de Deus em atos de fé, e então veremos o nosso coração tornar-se mais forte contra o pecado.

A fé purifica. É ela que corrige maus hábitos arraigados, extirpa manias enraizadas, qual amoreiras arrancadas da terra. É próprio da fé dar-nos liberdade. — “Ah, padre!… Mas eu já rezo, e rezo muito! Rezo o dia inteiro”. Reza, sim; mas e os maus hábitos? Você está se tornando, lenta e gradualmente, mais virtuoso? Se não, há alguma coisa errada com a sua oração. Você não reza direito, se a sua vida não muda; a sua oração não é verdadeira, se você vive obstinado no pecado.

Por quê? Porque o primeiro passo da oração é o ato da fé, ou seja, a submissão da inteligência. É um dobrar o intelecto diante de Deus, ao contrário do que fez Lúcifer. O diabo achava-se muito esperto e muito sábio, por isso não se dobrou diante de Deus, dizendo: “Não servirei”. Nós não. Nós temos de servir com humildade, como quem diz: “Sou um servo inútil. Não faço mais do que o meu dever. Não me pertenço, pois sou de Deus, meu Senhor, por isso farei tudo o que Ele me disser”.

No entanto, nós ensinamos desde cedo aos nossos filhos uma vaidosa desconfiança. O que as escolas têm ensinado aos nossos filhos? “Você não pode ser ingênuo, você tem de ser crítico”. Ou seja: apela-se para a vaidade dos jovens, e a primeira coisa que eles fazem é achar que há valor em ser desobediente. Não. O ser humano encontra seu real valor na obediência, mas obediência a Deus em tudo, isto é, em ser escravo de amor.

Se você notar dentro de si alguma opinião em desacordo com o ensinamento de Deus, mude de opinião na hora! Fuja do erro com verdadeiro pavor como se fosse (porque o é) armadilha do demônio! Busque a verdade de Deus, ensinada na fé da santa Igreja de dois mil anos, no Magistério de dois mil anos, no Catecismo, na vida dos santos, no ensinamento dos Santos Padres. Submeta-se, e você verá que a busca amorosa da verdade é fonte de força.

“O Evangelho é uma força de Deus para aquele que crê” (Rm 1,16), força para vencer o pecado, força para abandonar os maus hábitos. Mas seja humilde, como um servo e escravo inútil de Deus a quem só cabe dizer: “Senhor, eis-me aqui”, e então a fé irá purificá-lo.

Santo Tomás de Aquino nos ensina como funciona a dinâmica purificadora da fé. O que é uma coisa pura? Se dissermos: “Eis aqui uma moeda de prata”, essa prata será pura ou impura. Será impura, se estiver misturada com chumbo, por exemplo; mas se a misturarmos com ouro, ela não só permanecerá pura como terá ainda mais valor.

Uma coisa torna-se impura, portanto, quando é misturada com algo que lhe é inferior. Ora, quando exercitamos a fé, vamos nos unindo a Deus, que é superior a nós, nosso Senhor e guia, nosso pastor e mestre, e isso faz o nosso coração ir-se purificando cada vez mais, porque estamos nos unindo ao que é do alto, àquilo que é superior.

Nós nos tornamos impuros quando nos unimos ao que é inferior, àquilo que é da terra, a hábitos arraigados no pecado, em criaturas passageiras. — “Ah, o meu problema agora é dinheiro, agora é prazer, agora é sexo, é comida, é bebida, é não sei o quê…”. Não, você tem de se purificar! Una-se ao que é do alto, e é a fé que realiza essa purificação.

Deixe, pois, seus maus hábitos, tão arraigados e ruins. Eis o evangelho que Jesus nos ensina neste domingo. Temos de arrancar pela raiz o que nos faz ser da terra para nos unirmos às coisas do alto. Como diz São Paulo, “buscai as coisas do alto” (cf. Col 3,1ss), onde nossos corações estarão unidos a Cristo. Lá é o nosso lugar. Quando chegarmos ao Céu, participaremos do banquete que o Senhor tem preparado para nós!

* * *

SE A PURIFICAÇÃO DO CORAÇÃO É EFEITO DA FÉ

O vocábulo ‘purificação’ vem de ‘purificar’, e ‘purificar’, assim como ‘purgar’, é o mesmo que ‘fazer’ ou ‘tornar puro’. ‘Puro’, por sua vez, é o mesmo que ‘não misturado’, ‘íntegro’, ‘nítido’, ‘límpido’, ‘imaculado’, assim como ‘impuro’ é ‘misturado’, ‘deturpado’, ‘sórdido’, ‘maculado’. Mas de onde provém a palavra não é tão fácil dizê-lo.

Talvez [provenha] do grego ‘πῦρ, -ός’ = fogo, pois é próprio do fogo dissolver o que está misturado e causar brilho ou limpidez, i.e., purificar (cf. lt. ‘prūna’).

Marco Terêncio Varrão o faz derivar de ‘pŭto, -āre’ [pt. ‘podar’], pois um pŭtātor [pt. podador], cortando e arrancando ramos, espinhos e arbustos, purga e torna puras as árvores ou os campos, de modo que ‘pūrum’ equivale exatamente a ‘putum’ [pt. ‘podado’]. “‘Disputatio’ e ‘computatio’ [formam-se] a partir de ‘pŭto, -āre’, que equivale a ‘tornar puro’. Daí que os antigos chamassem putum ao que é puro; daí pŭtātor, que torna as árvores puras; daí chamar-se putari ao raciocínio em que a soma é pura [= ‘nítida’, ‘clara’, ‘perspícua’]. Assim, o discurso em que as palavras estão dispostas puramente, de molde a não ser confuso mas claro, chama-se disputāre” [1].

Esta [noção] predica-se primariamente das coisas corporais, como [e.g.] de um vestimento, quando está em sua primeira brancura, e do ouro e da prata, quando não estão misturados com outro metal de qualidade inferior, como o cobre ou o estanho.

Da ordem corporal traslada-se para a ordem espiritual tanto natural quanto sobrenatural, especialmente para a ordem moral. Assim, diz-se que a mente é pura quando não está maculada por erro ou ilusão, mas brilha pela luz da verdade inteligível, e que o coração é puro quando o afeto do homem não está maculado por paixões ou pecados, mas refulge de bondade espiritual e pelo candor das virtudes.

Na ordem sobrenatural da graça, na qual nos encontramos, a purificação da alma pode entender-se num duplo sentido: primeiro, adequadamente, como libertação de toda a alma de qualquer pecado e mácula de pecado, e assim é o mesmo que a justificação do ímpio, sentido que tem nos Atos dos Apóstolos, quando Pedro diz: “Purificando com a fé os seus corações”, i.e., dos gentios, a quem Deus justificou pela fé, e não pelas obras da Lei, “conferindo-lhes o Espírito Santo, como também a nós, e não fez diferença alguma entre nós e eles” (15,8s); segundo, inadequadamente, i.e., como purificação do coração ou do afeto por contraposição à purificação da mente ou do intelecto, e assim a purificação do coração ou da vontade é libertação do pecado, ao passo que a purificação da mente é libertação do erro.

Pergunta-se, pois, se e como a purificação da alma é efeito da fé teologal.

§1. Resolução da questão

Conclusão: I. A fé teologal em si mesma, abstração feita de [seu estado] formado ou informe, é o início da purificação adequada ou total, i.e., da justificação; II. a fé, também enquanto informe, purifica formalmente a mente dos erros; III. a fé enquanto formada purifica formalmente o coração dos pecados.

Prova da parte I. — A purificação total, ou adequada, é a justificação do ímpio; ora, a fé teologal enquanto tal, abstração feita de seu estado formado ou informe, é causa da justificação do ímpio por modo de raiz ou incoação, segundo aquilo do Concílio de Trento: “Dizemos ser justificados pela fé porque a fé é o princípio da salvação humana, o fundamento e a raiz de toda justificação, sem a qual é impossível agradar a Deus e chegar à comunhão dos seus filhos” (DH 1532).

Com efeito, a justificação se dá pela união do homem com Deus; ora, o princípio ou incoação desta união com Deus é pela fé, segundo aquilo: “[É] necessário que o que se aproxima de Deus creia que Ele existe” (Hb 11,6); logo, a fé é verdadeiramente o início de toda justificação, ou purificação perfeita, pois ser purgado é como certo caminhar ou navegar rumo à Pátria, como Agostinho diz [2]. Por isso escreve ele também noutro lugar: “O início da boa vida, à qual se deve também a vida eterna, é a reta fé” [3]; “temos pois a fé como primícias, por onde começamos […], e ninguém começa a viver bem senão a partir da fé: nossa fé, portanto, está em nossos primogênitos” [4].

Contudo, não é causa adequada da justificação: não o é por modo de causa formal, porque tal causa é a graça habitual; nem por modo de causa eficiente, pois a fé, só, não justifica eficientemente, dado encontrar-se também nos pecadores; mas por modo de causa dispositiva primeira, [i.e.], enquanto primeira disposição sobrenatural positiva à justificação. É nesse sentido que se lhe atribui a justificação, porquanto é o primeiro movimento ou passo para a justificação, e é por referência ao primeiro que os demais [movimentos ou passos] costumam ser designados.

Prova da parte II. — A fé, também enquanto informe, retém sua razão formal, pela qual adere à Verdade Primeira sobrenatural por si mesma e às demais [verdades] reveladas por causa dela, e assim torna reto e verdadeiro o conhecimento de Deus, do fim último e dos meios para se obter este fim. Ora, a verdade repele formalmente o erro que lhe é contrário. Assim, a fé repele do intelecto de quem crê todo erro oposto a Deus e às coisas divinas e humanas que são do máximo interesse para o homem. Daí ensinar o Concílio Vaticano I que a fé “livra e guarda a razão dos erros, enriquecendo-a de múltiplos conhecimentos” (DH 3019).

Prova da parte III. — Contudo, a fé informe por si só não tolhe toda impureza de quem crê, pois com ela pode ainda permanecer a impureza do afeto pelo pecado mortal; mas, tão-logo é informada pela caridade, por força da caridade produz perfeita purificação do coração, segundo aquilo: “[A] caridade cobre todas as faltas” (Pv 10,12). “Pois a fé, se a ela não se acrescentam a esperança e a caridade, não une perfeitamente a Cristo nem produz um membro vivo do seu corpo. Por este motivo, é absolutamente verdadeiro afirmar que a fé sem obras é morta e inútil e que em Cristo Jesus não valem nem a circuncisão nem a incircuncisão, mas a fé que opera por meio da caridade” (DH 1531). Daí [dizer] o Apóstolo aos efésios: “Não andeis mais como os gentios, que andam na frivolidade dos seus pensamentos, que têm o entendimento obscurecido e estão afastados da vida de Deus pela ignorância que há neles, por causa da cegueira do seu coração, os quais, de consciência embotada, se entregaram à libertinagem, para cometerem apaixonadamente toda espécie de impureza. Mas vós não aprendestes assim a conhecer Cristo” (4,17-20).

§2. Solução das dificuldades

Objeção 1.ª: O que está essencialmente no intelecto não causa o que está essencialmente no afeto; ora, a fé está essencialmente no intelecto, ao passo que a purificação do coração se dá essencialmente no afeto; logo, a fé não causa a purificação do coração.

Resposta. Distingo a maior: O que está essencialmente no intelecto não causa o que está essencialmente no afeto por modo de causa formal, concedo; por modo de causa eficiente dispositiva, subdistingo: o que está somente no intelecto especulativo, concedo; o que está também no intelecto prático, nego.

Contradistingo a menor: A fé está essencialmente no intelecto, i.e., somente no intelecto especulativo, nego; no intelecto especulativo e prático ao mesmo tempo, embora [esteja] per prius no especulativo antes que no prático, concedo.

E nego o consequente e a consequência.

Logo, a fé, enquanto prática, causa por modo de disposição e do que apresenta o objeto [à vontade] um movimento de esperança, temor e dor, e por isso dá início ao movimento para a justificação. Tanto mais é assim porque a fé, sendo como certo intelecto dos [primeiros] princípios e da sindérese sobrenatural, indica ao apetite o fim sobrenatural e lhe propõe os meios necessários junto com o fim, pois compete-lhe regular a intenção mostrando o fim (cf. In II Sent. d. 41, q. 1, a. 1).

Objeção 2.ª: O que causa a purificação do coração não existe simultaneamente com a impureza do coração; ora, a fé existe simultaneamente com a impureza do coração, dado existir simultaneamente com o pecado mortal; logo, a fé não causa a purificação do coração.

Resposta. Concedo a maior; distingo a menor: A fé existe simultaneamente com a impureza de coração, se é fé informe, concedo; se é formada, nego.

E nego o consequente e a consequência.

A solução é evidente pelo que ficou dito. Com efeito, não dizemos que a fé, entendida de qualquer modo, purifique o coração, mas somente a fé formada, a qual não existe simultaneamente com o pecado mortal.

Objeção 3.ª: Ora, tampouco incoativamente [a fé] purifica o coração do homem. Pois daria início à purificação do coração purificando o intelecto de quem crê; mas a fé não purifica o intelecto de quem crê, pois não o torna límpido, i.e., não o faz ver, dado ser um conhecimento essencialmente obscuro ou enigmático; logo, a fé de modo algum purifica o coração do homem.

Resposta. Concedo a maior; distingo a menor: A fé não purifica o intelecto de quem crê da impureza da culpa, que é o erro, e da impureza da pena, que é a ignorância, nego; não o purifica da condição natural conforme ao estado da vida presente, em razão do qual não pode ver intuitivamente a Verdade Primeira, concedo.

E nego o consequente e a consequência.

A impureza do intelecto criado não consiste em não ser ele o Intelecto Puro, ou por essência, porque isto é próprio de Deus, e por isso tampouco consiste sua impureza em não ver abertamente a essência divina. Logo, à fé não compete tolher tal impureza.

A impureza do nosso intelecto é o erro ou a ignorância, que são culpa ou pena, e supõem certa impureza da vontade, ou do coração, e por isso esta impureza é tolhida pela fé enquanto tal, que dá início à purificação do afeto, consumando-a ao ser informada pela caridade.

Certa impureza da fé devida ao modo humano que ainda retêm as espécies inteligíveis de seus termos, manifesto pelo conjunto de seus enunciados, é tolhida paulatinamente por Deus, mediante o dom de inteligência e de sabedoria, por meio de purificações passivas do intelecto possível e da razão humana, sobre o que fala muito profundamente São João da Cruz em todo o Livro II da obra Subida do Monte Carmelo [5].

Por último […], seja-nos permitido transcrever o elogio da fé feito por Santo Tomás com as seguintes palavras: 

É a fé o fundamento de todos os bens espirituais, segundo aquilo do Apóstolo: “A fé é a substância”, i.e., o fundamento “das coisas que se esperam” (Hb 11,1). É pela fé que a alma é vivificada pela graça, segundo aquilo do Apóstolos: “A vida com que vivo agora na carne, vivo-a da fé no Filho de Deus” (Gl 2,20); e de Habacuque: “[O] justo viverá pela sua fé” (2,4). É por ela que a alma é purificada dos pecados, segundo aquilo: “Purificando com a fé os seus corações” (At 15,9). É por ela que a alma é adornada de justiça, segundo aquilo: “A justiça de Deus é pela fé de Jesus Cristo” (Rm 3,22). É por ela que a alma é desposada por Deus, segundo aquilo de Oséias: “Desposar-me-ei contigo na fé” (2,20). É por ela que os homens se tornam filhos adotivos de Deus, segundo aquilo de João: “Deu poder de se tornarem filhos de Deus àqueles que crêem no seu nome” (1,12). É por ela que nos aproximamos de Deus, segundo aquilo: “É necessário que o que se aproxima de Deus creia que Ele existe” (Hb 11,6). É por ela, enfim, que os homens alcançam o prêmio da vida eterna, segundo aquilo de João: “A vontade de meu Pai, que me enviou, é que todo o que vê o Filho e crê nele tenha a vida eterna” (6,40) [6].

Referências

O texto acima é uma tradução de Pe. Santiago Ramírez, O.P., De fide divina. Salamanca: San Esteban, 1994, pp. 514–548, nn. 693–703.

Notas

  1. De lingua Latina, VI §63.
  2. De doctrina Christiana, I 10 n. 10 (ML 34,23).
  3. Serm. 43 de Scripturis, I 1 (ML 38,254).
  4. In Ps. 134, n. 18 (ML 37,1738).
  5. Cf. ed. Burgos, 1929, vol. 2, pp. 66–288.
  6. Expo. in I Decretalem, I (ed. Vives, vol. 27, p. 424s); cf. também Collat. de Credo in Deum (ed. Mandonnet, vol. 4, p. 349s).
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