Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas
(Lc 6,36-38)
Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos: “Sede misericordiosos, como também o vosso Pai é misericordioso. Não julgueis e não sereis julgados; não condeneis e não sereis condenados; perdoai, e sereis perdoados. Dai e vos será dado. Uma boa medida, calcada, sacudida, transbordante será colocada no vosso colo; porque com a mesma medida com que medirdes os outros, vós também sereis medidos”.
O Evangelho de hoje é uma continuação do que proclamamos sábado, embora tenhamos lido São Mateus e hoje leiamos São Lucas. Na realidade, o próprio evangelho de São Lucas, quando fala do amor aos inimigos, põe logo em seguida as quatro sentenças que nós lemos no Evangelho de hoje.
Para interpretar esse Evangelho, é interessante notar a pequena comparação ou “parábola” que Jesus usa ao final. Ele diz que nós seremos medidos com a mesma medida com que medirmos e precisamos ter uma medida abundante, ou seja, “calcada e sacudida”.
Que comparação é essa? Trata-se da medida de cereais. Os cereais eram medidos em vasos que continham certa medida, o “litron”; mas se você os sacudir, o espaço vazio entre os grãos desaparece e cabem ainda mais. Então, uma medida “sacudida” é a de um saco de cereais que se sacode e, além disso, se calca para que caibam mais grãos, a ponto de transbordarem. Assim se ganha muito mais.
O que Jesus está tentando transmitir? Que devemos ser generosos, sair da medida mesquinha: ter um relacionamento com os outros não só a partir do que é justo, mas tratando as pessoas como Deus nos trata. Deus nos trata com medida calcada, sacudida e transbordante. Deus nos dá muito mais do que merecemos. Em nossa relação com Deus, não estamos num relacionamento de justiça. É por isso que Jesus diz: “Sede misericordiosos como o Pai é misericordioso”.
Não julgar não quer dizer que não se possa ter um juízo a respeito do que está sendo feito. Quer dizer simplesmente que não se deve restringir o próprio relacionamento com as outras pessoas à mera justiça. Não condenar para não ser condenado quer dizer que se deve ter paciência e realmente suportar certas ofensas. Por quê? Porque Deus tem paciência e suporta as nossas ofensas.
Se você vai rezar pelas pessoas, clame misericórdia, clame perdão, peça a Deus paciência com aquelas pessoas e que Ele realmente não as condene. Por quê? Porque se você pedir condenação, se você pedir justiça, se você pedir que Deus venha com vingança e com ira, saiba — você é o primeiro da fila!
Sim, essa é a realidade. Quando condenamos os outros, somos impacientes, não temos misericórdia, estamos esquecidos de que vivemos de misericórdia, de que vivemos da paciência divina.
É Quaresma, é tempo de conversão, é tempo de mudança do coração. É o tempo em que esperamos que Deus não nos trate conforme o nosso comportamento, que não tenha conosco um relacionamento de estrita justiça, senão estamos perdidos. É o tempo em que clamamos e pedimos misericórdia; mas, para receber misericórdia, precisamos dar misericórdia.
Por isso Jesus nos ensina a não nos contentar com medidas mesquinhas, somente com o que é justo. Sejamos generosos! Dê mais, como o vendedor generoso que dá mais do que aquilo que foi pago, para o cliente voltar à casa com a sacola cheia, muito mais cheia do que o merecido. Sim, porque Deus nos trata generosamente, muito melhor do que merecemos.
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COMENTÁRIO EXEGÉTICO
O juízo temerário (cf. Mt 7,1-5; 10,24s; 15,14; Mc 4,24b). — Tendo lançado os fundamentos da caridade fraterna, o escritor sagrado refere agora um alerta de Cristo aos que, sem fazer caso dos próprios defeitos, acusam duramente os alheios. — (Lc 6,37): Não julgueis, i.e., não condeneis a conduta e a intenção dos outros, e não sereis julgados (μὴ καταδικάζετε, subentende-se: ‘por Deus’) [1]. Mateus acrescenta (7,2): Pois segundo o juízo com que julgardes, sereis julgados, i.e., assim como tratardes os outros, assim também vos tratará Deus (cf. Sl 17 [18],25s). Logo, fala-se antes da qualidade do juízo que do objeto julgado. — Escreve Agostinho: “Julguemos o que é manifesto, mas sobre o que está oculto deixemos o juízo para Deus. Não censuremos o que não soubermos com que intenção foi feito, nem repreendamos de tal forma o que é manifesto, que julguemos [o próximo] sem esperança de salvação” (De serm. Domini in monte II 18, 60).
Lucas é mais rico. Além do λόγιον sobre o não julgar, exposto de três formas diferentes (v. 37: não julgueis, não condeneis, perdoai), traz ainda outro (v. 38), sobre o dar aos demais: Dai (aos outros), e dar-se-vos-á (por Deus). Exprime com três adjetivos a grandeza do prêmio: com efeito, se derdes ao próximo, uma medida boa (καλόν = considerável, não parca), cheia (πεπιεσμένον = comprimida) [2], recalcada (σεσαλευμένον = agitada, batida, para que se encha melhor) e acogulada (ὑπερεκχυννόμενον = lit. sobre-exsudante, i.e., transbordante), ou seja, uma medida além da medida [3] vos será lançada nas dobras do vosso vestido [4]; conforme a vossa benignidade para com os outros, Deus vos há de retribuir, não de mão fechada e avara, mas larga e generosa. — Porque com a mesma medida etc. não se deve entender, como entenderam alguns intérpretes antigos, como igualdade absoluta (= ‘de tanto por tanto’), mas a modo de provérbio, como certa proporção entre o trato dispensado aos outros e o que Deus dispensará a nós: ‘Quanto mais benigno fores com os outros, quer no dar, quer no perdoar, tanto mais benigno acharás a Deus; quanto mais severo fores, mais severo ele será contigo’.
V. 39. Dizia-lhes também esta comparação (gr. παραβολήν, lt. similitudinem): Pode porventura um cego guiar outro cego? Não cairão ambos no barranco? A imagem é tirada da vida cotidiana da Palestina, onde às margens das ruas e estradas não era difícil deparar com buracos e cisternas escavadas, que só um homem atento e de boa visão podia evitar; os cegos, porém, corriam sempre o risco de cair. — Sentido: ‘Não te é lícito julgar os outros, enquanto tu mesmo precisas de correção’, sobretudo porque (v. 40) o discípulo não é mais que o mestre; mas todo (gr. πᾶς = lt. quivis, i.e., qualquer discípulo) será perfeito (gr. κατηρτισμένος = bem instruído), se for [no máximo] como seu mestre [5], i.e., sobretudo porque ‘se tu, sendo mestre, também és cego, não poderás dar luz a teu discípulo’.
V. 41s (cf. Mt 7,3ss). Em seguida, por meio da imagem (tirada talvez de algum provérbio popular [6]) de alguém que corrige o irmão por ter um cisco no olho, embora ele mesmo tenha no seu não um cisco mas uma trave, condena o Senhor a hipocrisia [7] dos que veem os defeitos mais leves do próximo, mas não os próprios [8]. — Esse dardo tem por alvo especialmente os fariseus; mas a doutrina aqui contida, como se vê, é universal, englobando todos os que padecem este vício, sobretudo os ministros da Igreja que, quando cumprem o dever de corrigir, mostram às vezes ter as mesmas manchas — e até mais feias! — do que as repreendidas.
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