Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João (Jo 18,33b-37)
Naquele tempo, Pilatos chamou Jesus e perguntou-lhe: “Tu és o rei dos judeus?” Jesus respondeu: “Estás dizendo isto por ti mesmo ou outros te disseram isto de mim?” Pilatos falou: “Por acaso sou judeu? O teu povo e os sumos sacerdotes te entregaram a mim. Que fizeste?” Jesus respondeu: “O meu reino não é deste mundo. Se o meu reino fosse deste mundo, os meus guardas lutariam para que eu não fosse entregue aos judeus. Mas o meu reino não é daqui”. Pilatos disse a Jesus: “Então tu és rei?” Jesus respondeu: “Tu o dizes: eu sou rei. Eu nasci e vim ao mundo para isto: para dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade escuta a minha voz”.
Comentário exegético
2.ª acusação: Jesus rei (cf. Mt 27,11-14; Mc 15,2-5; Lc 23,2s). — A narração de Jo e a dos sinóticos completam-se mutuamente; se se suprime qualquer delas, torna-se bastante obscuro o sentido de várias passagens.
Lc 23,2: Começaram a acusá-lo, dizendo: Encontramos este homem sublevando a nossa nação, proibindo dar tributo a César, e dizendo que é o Cristo rei. Logo, Jesus é acusado de ser concitador político, rebelde a César e usurpador da dignidade régia. — Jo 18,33: Tornou, pois, Pilatos a entrar no pretório, chamou Jesus e disse-lhe: Tu és o rei dos judeus? Esta era a principal acusação.
V. 34. A pergunta de Pilatos podia entender-se num duplo sentido: em sentido, como dizem, político, e então Jesus teria respondido simplesmente negando; ou em sentido religioso, e então era necessário explicar-se. Cristo lança mão de uma argutíssima distinção: Tu dizes isso de ti mesmo, enquanto procurador romano, ou foram outros que to disseram de mim, i.e. ou é porventura no mesmo sentido em que a entendem meus inimigos (a saber: em referência a um reino teocrático), que tu empregas esta palavra? — V. 35. O juiz não entende aonde quer chegar o réu, por isso responde não sem certo desprezo: Porventura sou judeu para que me importem estas vossas sutilezas? A tua nação e os pontífices… A mim compete unicamente investigar a causa; que portanto fizeste tu?
V. 36. Jesus responde de modo a dissipar ao procurador a menor sombra de suspeita e, a um tempo, se for reto de intenção, conduzi-lo à luz da verdade: O meu reino (ἡ βασιλεία ἡ ἐμή) não é deste mundo, i.e. não é um reino temporal e terreno; se, com efeito, o meu reino fosse deste mundo, certamente os meus ministros, i.e. meus soldados, se haviam de esforçar para que eu não fosse entregue aos judeus, i.e. teriam pegado em armas para defender-me deles; agora porém, i.e. se nada fizeram, é porque o meu reino não é daqui, não é terrestre.
‘Ouvi, pois, judeus e gentios; ouve, circuncisão; ouve, prepúcio; ouvi todos os reinos terrenos! Não impeço vossa dominação neste mundo: O meu reino não é deste mundo. Não temais com o medo vão que fez empalidecer a Herodes, o Grande, quando foi anunciado o nascimento de Cristo’ (Santo Agostinho, In Ioann. tract. 115, 2: ML 35,1939).
V. 37. Não escapa a Pilatos a afirmação implícita, por isso pergunta: Logo, tu és rei? Jesus então responde abertamente: Tu o dizes, sou rei. Mas esclarece em seguida qual é a índole ou a natureza de seu reino: Eu nisto (gr. εἰς τοῦτο, para isto) nasci, e (καί epexegético = a saber) para isto vim ao mundo, para dar testemunho da verdade, i.e. para trazer aos homens o verdadeiro conhecimento de Deus e das coisas divinas (cf. Jo 1,14; 8,46s). É evidente, por conseguinte, que o nascimento (γεγέννημαι) de que se fala aqui não é a geração eterna do Filho, mas sua natividade temporal segundo a carne; há porém quem o interprete ‘vir ao mundo’ como ‘manifestar-se publicamente’, i.e. como alusão ao ministério evangélico. — Todo o que é da verdade, ou seja, que ama a verdade, que está pronto para acolhê-la (cf. Jo 3,21; 8,44s.47; 1Jo 1,19ss), ouve a minha voz e sujeita-se ao meu império, à minha autoridade; este, pois, é o meu reinado: de fato, eu reino sobre os homens, mas com armas espirituais, internas etc.
V. 38. Pilatos não é capaz de entender esta doutrina espiritual de Cristo e, julgando tratar-se de um homem indefeso a dissertar sobre algum sistema filosófico, propõe-lhe frivolamente, em tom de ceticismo (1), a seguinte questão: O que é a verdade? E, sem esperar resposta, tornou a sair para ir ter com os judeus, e disse-lhes: Não encontro nele nenhuma causa (i.e. culpa, motivo de condenação). — Da atitude de Pilatos inferem alguns que ele seria iniciado na filosofia dos céticos, muito em voga naquele tempo; a doutrina deles, com efeito, funda-se na negação da verdade, ou ao menos em nossa capacidade de alcançá-la: ‘Só há de certo que nada há de certo, e que nada é mais miserável nem soberbo que o homem’ (Plínio, Hist. Nat., pr.; cf. II 5).
Dubium: Se o reino de Cristo é espiritual, parece que não lhe compete nenhum poder ou autoridade sobre as coisas humanas, i.e. sobre o propriamente temporal. No entanto, deve-se sustentar-se que, embora não tenha administrado temporalmente no mundo um reino terreno, Cristo homem tem sujeitas a seu poder judiciário todas as coisas, e isto por tríplice título: a) em razão da união hipostática, em virtude da qual a alma do Senhor, plena da verdade do Verbo, pode julgar todas as coisas; b) em razão do mérito de sua paixão e morte redentoras, em virtude do qual tem direito a reinar sobre os homens; c) e em razão da subordinação essencial dos meios ao fim, em virtude da qual ao mesmo Cristo, a quem cabe admitir ou proibir os homens de entrar na beatitude eterna, compete julgar também de tudo o que é meio conducente ao fim da bem-aventurança, i.e. de todas as realidades criadas a serviço do homem. Logo, Cristo é por direito, também na ordem temporal, verdadeiro rei, assim constituído pelo próprio Deus e, portanto, por direito de natureza ou a título de união hipostática; contudo, não quis um reino terreno quanto ao exercício nem à administração temporal; por isso, não administrou porque não quis valer-se de seu poder ou direito (cf. Santo Tomás de Aquino, STh III 59, 4c. e ad 1; E. Hugon, Doctrina theologica de Christo rege… Angelicum, IV-1, mar. 1927, p. 5).
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