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Texto do episódio
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Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas
(Lc 2,16-21)

Naquele tempo, os pastores foram às pressas a Belém e encontraram Maria e José, e o recém-nascido deitado na manjedoura. Tendo-o visto, contaram o que lhes fora dito sobre o menino. E todos os que ouviram os pastores ficaram maravilhados com aquilo que contavam. Quanto a Maria, guardava todos esses fatos e meditava sobre eles em seu coração. Os pastores voltaram, glorificando e louvando a Deus por tudo que tinham visto e ouvido, conforme lhes tinha sido dito. Quando se completaram os oito dias para a circuncisão do menino, deram-lhe o nome de Jesus, como fora chamado pelo anjo antes de ser concebido.

§1. Epístola (Gl 4,4-7):

V. 4. Mas, quando chegou a plenitude do tempo… ‘Chegar a plenitude do tempo’ é o mesmo que ‘cumprir-se o tempo’ (cf. Gn 29,21; Mc 1,45), quer dizer, completou-se o tempo estabelecido pelo Pai antes da vinda de Cristo, assim como um pai define o tempo em que o filho permanecerá sob a tutela de um pedagogo. Há neste v. diversos dogmas: 

1) Jesus Cristo é Filho de Deus, mas também feito de mulher (γενόμενον ἐκ γυναικός), pois o Verbo se fez carne (cf. Jo 1,14); logo é também verdadeiro homem. Quanto a isso, dizem acertadamente os intérpretes que no AT, sempre que se fala da origem humana do Messias, nunca se faz menção a um pai ou à geração por sêmen, mas apenas a uma mãe e à concepção feminina (cf. Gn 3,15; Is 7,14; Mq 5,3; Jr 31,22; Sl 22,10s); e quando se fala do Pai, trata-se do próprio Deus (cf. Sl 2,7; At 13,33; 2Sm 7,14; Hb 1,5). Ora, esse modo constante e universal de referir-se ao Messias equivale, no fundo, a uma afirmação exclusiva, a saber: Cristo será filho unicamente de mulher quanto à origem humana, i.e. sua Mãe o há de conceber virginalmente. É assim, pois, que se devem tomar as palavras do Apóstolo feito de mulher, i.e. feito somente de mulher, ou de uma virgem. — Daí se pode inferir a missão da segunda Hipóstase (a qual supõe, naturalmente, sua processão eterna da primeira), sendo o termo dela algo de ordem temporal: feito de mulher

NB — Notam Jerônimo e Basílio que esta fórmula, γενόμενον ἐκ γυναικός, exclui a ideia de corpo de imaginário, ao que Beda acrescenta que o verbo utilizado (gr. γίγνομαι, lt. fieri = vir a ser, tornar-se, ser feito etc.) insinua claramente a concepção virginal, pois ser nascido de mulher é condição comum a todos os homens, mas ser feito de mulher como de sua única causa compete exclusivamente à humanidade do Verbo.

2) Feito sob a Lei, i.e. nascido para estar debaixo da Lei, não por necessidade, mas οἰκονομικῶς, ou seja, por livre disposição do Pai, de um lado, e por livre consentimento de Cristo, de outro. Por conseguinte, Jesus Cristo, o fim da Lei, no qual se haviam de cumprir os vaticínios e figuras do AT, quis estar sujeito à Lei e observá-la; mas encarnação do Filho, bem como sua existência sob a Lei, foram ordenadas por Deus à seguinte finalidade:

V. 5. A fim de que remisse aqueles que estavam sob a lei, para que recebêssemos a adoção de filhos. Afirmam-se aqui duas coisas. — 1) Primeiro, a redenção dos que estavam sob a Lei, quer dizer, dos que viviam sujeitos à escravidão dos elementos deste mundo (cf. v. 3), i.e. da Lei, dos que viviam como que encarcerados debaixo da Lei, dos que se encontravam sob a pedagogia da Lei mosaica etc. (cf. 3,23.25; Hb 2,15). Logo, a redenção dos escravos é redenção da escravidão; ora, quando se diz que um escravo é ‘redimido’, é desnecessário assinalar o termo a quo da redenção, qual seja: a própria condição de escravo. Pois bem, a redenção da escravidão da Lei consiste em fazer cessar a força vinculante dela tanto direta (para os próprios judeus) como indiretamente (por todos os que quiserem participar da aliança divina e pertencer ao povo de Deus).

Assim como no v. precedente são afirmadas duas coisas, o Filho de Deus feito homem e feito sob a Lei, assim também, neste v., são indicados dois fins, respectivos a elas e coordenados entre si: a) primeiro, a redenção da escravidão da lei; b) por último, a consecução da adoção filial. Ora, assim como o segundo bem, comum a todos os homens, corresponde ao primeiro fato, i.e. à encarnação do Filho, assim também o primeiro, próprio dos judeus, corresponde ao segundo, i.e. à sujeição voluntária dele à Lei de Moisés. Com efeito, do mesmo modo que o Filho de Deus, a fim de libertar os homens do pecado, quis sujeitar-se aos males que são consequência do pecado mas compatíveis com sua santidade, assim também, para libertar, ou merecer a liberdade para os homens que viviam sujeitos à Lei, quis estar submetido com eles ao jugo da mesma Lei. Por isso, do fato de Cristo ter observado a Lei decorre, não que a Lei mosaica permaneça obrigatória para os cristãos, mas, pelo contrário, que Cristo mesmo, tendo-a observado perfeitamente, a aboliu para todos de uma vez para sempre.

NB — É, portanto, infundada a pretensão dos que sustentam a vigência universal da Lei apelando para o fato de Cristo tê-la observado. Disto se seguiria que quem aboliu a Lei de Deus foi um homem, Paulo, o qual teve ainda a audácia de inventar toda a doutrina contida em suas cartas para justificar as próprias práticas (!).

2) O outro fim da missão do Filho de Deus foi o de dar-nos a adoção filial. O uso reiterado da partícula ut (gr. ἵνα; em pt.: a fim de que . . . para que) permite distinguir os sujeitos de ambos os incisos, na medida em que se trata de duas proposições realmente distintas. A primeira, com efeito, diz respeito à libertação dos judeus da escravidão, enquanto a segunda se refere também àqueles de que se fala em seguida: porque vós sois filhos (v. 6), i.e. aos gálatas, cristãos de origem pagã. A razão disso é que a adoção filial é um bem comum a todos os homens, judeus e gregos.

Ora, à imagem precedente do filho sob a autoridade do pedagogo, mas livre após o tempo estabelecido pelo pai, responde propriamente o que é dito aqui em primeiro lugar: A fim de que remisse aqueles que estavam sob a Lei, quer dizer, à imagem do filho entregue à autoridade do tutor correspondem propriamente os judeus, que viviam sob a pedagogia da Lei, e não os gentios, que a ela não estavam obrigados. E a adoção filial é, de fato, o fim por excelência da encarnação, paixão e morte do Salvador por nós, fim cumprido de certo modo, já desde o início do mundo, pela paixão e morte de Cristo (cf. Ap 13,8), uma vez que todos os justos, antes e durante a Lei, eram também filhos adotivos de Deus em virtude dos méritos (futuros) de Cristo, pois tinham, como nós, direito pela graça à herança paterna. Este é o fim indicado aqui pelo Apóstolo. Ao mesmo tempo, exprime-se o seu estado perfeito, i.e. em conjunção com a imunidade à escravidão da Lei, que, uma vez abolida para os judeus, foi abolida também para todos. Trata-se, numa palavra, da adoção filial não já sob a pedagogia da Lei, o que exclui o espírito de escravidão (cf. Rm 8,15.17).

V. 6. O Espírito enviado por Deus Pai, o Espírito de seu Filho, é a terceira pessoa da Santíssima Trindade, que procede do Pai e do Filho como de um único princípio ativo de expiração. O Espírito Santo é um dom que nos foi dado, mas que se distingue dos dons criados (cf. Rm 5,5), assim como a inabitação da Santíssima Trindade na alma que ama a Deus (cf. Jo 14,23).

A lição aos nossos corações, baseada nos códices mais relevantes e preservada por Jerônimo, a qual dificilmente poderia ter sido substituída por outra, parece ser a mais antiga. Não obstante, a sintaxe resulta certamente mais natural, se se lê, conforme a Vg, em vossos corações, embora o sentido permaneça inalterado. É evidente, pois, que o Apóstolo se vale aqui de uma enálage de pessoa. 

A sentença porque sois filhos, Deus mandou o Espírito etc. costuma ser exposta de duas maneiras. — 1) São João Crisóstomo toma estas palavras como se Apóstolo quisesse mostrar que os gálatas são filhos de Deus (= ‘que sejais filhos é evidente, pois Deus mandou’ etc.). Assim também Teodoreto, que por entende Espírito como autor de milagres; por isso diz: ‘É uma demonstração [de que são filhos de Deus], à qual não cabe objeção. Viam, com efeito, os milagres que eram realizados pelo divino Espírito’; logo, etc. 

Para outros, se fosse essa a intenção do Apóstolo, de modo que o segundo inciso seria prova do primeiro, ele não teria omitido entre os dois o termo δῆλον, como faz em 3,11. Dizem, portanto, ser esse o sentido óbvio da passagem: ‘Deus mandou o Espírito aos nossos corações porque somos filhos’, de modo que este envio supõe já a graça de adoção.

Se entendermos com Teodoreto a missão do Espírito Santo como dom taumatúrgico, i.e. do Espírito enquanto princípio operativo de milagres, não haveria nesta segunda interpretação qualquer dificuldade; mas a própria explicação de Teodoreto é problemática. Com efeito, o Espírito enviado aos corações, i.e. o Espírito com que clamamos: Abba, Pai, não é o Espírito τῶν θαυμάτων, mas o santificante, o Espírito de adoação.

Do ponto de vista gramatical, a segunda interpretação é a mais prrovável, dado que a omissão de δῆλον soa um pouco violenta. Apesar disso, Crisóstomo e Teodoreto consideraram-no gramaticalmente aceitável, enquanto Estius nem se preocupou em justificar esta construção.

Por outro lado, o contexto parece exigir a primeira interpretação. De fato, se a missão do Espírito Santo supusesse a filiação adotiva, teria por finalidade operar algo distinto da mesma filiação (afinal, se o Espírito é enviado, é eviado para operar algo); ora, de acordo com o que é dito aqui, a missão do Espírito tem por fim tornar-nos filhos adotivos. As próprias palavras que encerram este v. exprimem o efeito do Espírito enviado aos nossos corações: que clama: Abba, Pai, o que parece equivaler a: nos faz filhos de Deus. Assim sendo, a interpretação de Crisóstomo parece a mais adequada.

Contudo, é possível que o Apóstolo queria dizer aqui outra coisa, intermediária entre estas duas leituras. Segundo a doutrina dos Apóstolos, os justos no NT são não apenas filhos de Deus, mas filhos saídos da sujeição a um tutor para a liberdade plena de filhos. Ora, um filho nessas condições, livre da férula do pedagogo e integrado finalmente ao grêmio familiar, costuma falar ao pai com mais brandura e confiança: Abba, i.e. ‘papai’. O uso deste designação indica que o filho se encontra já em estado de liberdade. Eis por que somente aos filhos do NT Deus ensinou a invocá-lo como Pai na oração dominical, própria da nova Aliança. Os filhos adotivos do AT, vivendo ainda sob o pedagogo, tinham o espírito de temor, mas não o da liberdade dos filhos adotivos de Deus (cf. Rm 8,15ss).

Quando, pois, o Apóstolo diz que Deus mandou aos vossos corações o Espírito de seu Filho, que clama: Abba, Pai, essa é a operação do Espírito, a saber: clamar em nós, ou fazer-nos clamar a Deus: Pai, a fim de nos constituir em estado de perfeita liberdade filial. Assim se entende facilmente — o que Estius sustentara — que o Apóstolo se ocupa aqui do que poderiam objetar-lhe os gálatas: se aos judeus só foi concedida a adoção filial sob a condição de estarem primeiro sob a Lei como sob um tutor, e se Cristo quis sujeitar-se à Lei para redimir os que a ela estavam submetidos, devemos também nós estar primeiro sob a Lei, a fim de sermos redimidos por Cristo e recebermos a graça de adoção? Ao que o Apóstolo responde que isso é não só desnecessário como impossível, pois os gálatas receberam não só a dignidade da filiação adotiva (que, em si mesma, tinham os justos do AT), mas também o estado perfeito desta adoção: a liberdade própria dos filhos, à qual repugna a servidão da Lei.

Para prová-lo, afirma que o Espírito Santo clama em seus corações: Pai. Logo, o que ensina aqui o Apóstolo não é que o dom do Espírito Santo que nos é dado (cf. Rm 5,5) suponha filhos adotivos já constituídos em tal dignidade, mas que esta operação do Espírito Santo, que declara a perfeita liberdade dos filhos adotivos, própria do NT, não tinha lugar no AT, pois imperava o espírito de temor, visto que também os justos estavam sob a pedagogia da Lei.

Que clama: Abba, Pai! Em Rm 8,15, lê-se: No qual clamamos: Abba, Pai. Como este clamor de nosso coração provém do Espírito Santo como do princípio sem o qual ninguém pode nem mesmo dizer: Senhor Jesus (cf. 1Cor 12,3), tal clamor é atribuído ao mesmo Espírito Santo, assim como nossas petições e gemidos (cf. Rm 8,26), como à sua causa própria.

NB — 1) Segundo Grócio, ὁ πατήρ tem força de vocativo, apesar de o artigo estar em caso nominativo. — 2) Por que repete São Paulo a mesma palavra em duas línguas? Para ensinar que ambos os povos, judeu e grego, foram igualmente chamados à filiação (Agostinho). Mas talvez não haja nisso nenhum mistério, sendo a expressão em gr. mera interpretação do hebr., como é frequente no NT.

V. 7. Portanto, já não é servo, mas filho. Em gr.: não és (οὐκέτι εἶ). A frase, ao que parece, tem destinatário indefinido, ou seja, dirige-se a quem quer que leia epístola (= ‘Não és mais servo, não estás mais em estado de servidão, nem deves mais viver submetido; agora és filho’). Este nome, oposto aqui a servo (δοῦλος, menino sob as ordens do pedagogo), tem valor enfático (= filho que, na posse da liberdade que lhe própria, pode finalmente agir como filho).

E, se filho, também herdeiro por Deus. Ao filho compete por direito ser herdeiro do pai. A herança de que se fala aqui é a mesma do v. 29 do capítulo anterior. O Apóstolo, portanto, volta ao que já tinha estabelecido, confirmando agora sua primeira argumentação. Os filhos de Deus são herdeiros das promessas feitas outrora a Abraão, e não os filhos de Abraão (exclusivamente) segundo a carne. Por isso, são herdeiros não pela Lei (διὰ νόμον), mas por Deus (διὰ Θεοῦ), que livremente os adotou. Uma outra lição: herdeiro de Deus por Cristo, mantém o mesmo sentido o, que se tome de Deus como genitivo de objeto ou de dependência; no entanto, é preferível a lição comumente aceita, pois nesta discussão os herdeiros são apresentados por Paulo como herdeiros de Abraão que recebem em herança os bens que lhe foram prometidos.

§2. Evangelho (Lc 2,16-21):

Adoração dos pastores (vv. 8-20). — V. 8. E havia pastores na mesma região (segundo a tradição do lugar, na vila de Beth-Sachur, cerca de 1,5 km a oeste de Belém), vigiando (ἀγραυλοῦντες, pernoitando ao ar livre) e custodiando as vigílias da noite, i.e. durante a noite, sobre a sua grei, quer dizer, estavam tomando conta do rebanho à noite. — O ofício pastoril era muito desprezado pelos judeus de maior idade; os pastores eram, não raro, equiparados a ladrões, porque podiam facilmente levar os rebanhos de uma fazenda a outra; foram eles, não obstante, pela simplicidade de coração, os primeiros a receber o anúncio da redenção.

V. 9-12. E eis que um anjo do Senhor pôs-se diante deles (ἐπέστη, i.e. apareceu-lhes de repente, cf. Lc 24,4; At 12,7), e a claridade de Deus (δόξα Κυρίου = a glória ou o fulgor que manifestava a presença de Deus no Tabernáculo e nas teofanias do AT, cf. Ex 16,10; 24,16; 40,34s; Ez 1,28 etc.) circundou-os (aos pastores, não ao anjo), e, desconcertados com a inusitada voz, temeram com grande temor (ἐφοβήθησαν φόβον μέγαν). O núncio celeste tranquiliza os pastores e lhes comunica a natividade de um Salvador, a saber: do Messias (que é o Cristo Senhor) tão ardentemente esperado pelo povo judeu. E isto será para vós um sinal, a fim de que saibais que vos digo a verdade, ou: a fim de que possais distinguir das outras a criança que vos anuncio; com efeito, encontrareis um menino (βρέφος = recém-nascido) envolto em panos e posto num presépio.

É a primeira ocorrência do vocábulo Salvador (Σωτήρ) nos evangelhos. A expressão em gr. é tradução do nome hebr. יֵשַׁע ,יְשׁוּעָה (às vezes נּאֵׁל), que, tomado tanto abstrata (= salvação, σωτηρία) quanto concretamente (= Salvador), é predicado sempre de Deus no AT (sobretudo nos salmos e profetas). Javé liberta seu povo dos inimigos, especialmente do cativeiro egípcio, do rei da Assíria; nos salmos, dos homens ímpios, dolosos, opressores; da tribulação e das quedas etc. Na época helenística, os deuses dos gentios (e.g. Asclépio, Poseidon, Serápis, os Dióscuros etc.), até mesmo os heróis e os homens beneméritos na cidade, são também chamados salvadores, mas em sentido muito diverso daquele em que o são Cristo ou Deus no NT. De fato, os deuses étnicos eram salvadores porque — criam os pagãos — livravam o homem das desgraças da vida e dos acidentes da fortuna; Cristo, porém, é o Salvador porque nos livra efetivamente da morte, do pecado e da ira divina; enriquece-nos com a graça celeste e dá-nos por seus méritos direito à vida eterna (cf. Mt 1,21; Lc 19,10; Jo 4,42; At 5,13; 1Tm 1,15 etc.).

V. 13. O anúncio do anjo é então confirmado por um coro enorme de anjos (uma multidão da milícia celeste) a cantar: Δόξα ἐν ὑψίστοις Θεῷ, καὶ ἐπὶ γῆς εἰρήνη ἐν ἀνθρώποις εὐδοκίας, i.e. Glória nas alturas a Deus, e na terra paz aos homens de boa vontade. — Nos mais altos céus, glória é dada (mais do que seja dada) a Deus, i.e. presta-se-lhe reconhecimento externo (clarificatio) com o deivido louvor, e a reparação da honra divina, ultrajada pelos pecados dos homens; na terrapaz, i.e. salvação, felicidade e esperança de (recuperar a) amizade com Deus. Eis, numa palavra, toda a obra da redenção. — O termo hebr. subjacente (שָׁלוֹם) tem um sentido mais amplo e mais forte do que o gr. εἰρήνη. Segundo T. Vargha, ‘sālôm, entre os hebreus, é o mesmo que salvação, saúde, beatitude, bênção, felicidade e descanso imperturbável’ (VD 8 [1928] 371; cf. sub voce Genesius, Thesaurus linguæ hebraicæ).

Muitos referem a palavra εὐδοκίας a Deus (= beneplácito divino) e a interpretam em sentido objetivo-universal: paz a todos os homens da boa vontade de Deus, i.e. que já não são filhos da ira, mas filhos da graça, amados por Deus e tratados por ele com benevolência (cf. Ef 1,5.9). Outros a referem aos homens em sentido subjetivo-restritivo, como deixa subentender a Vg: paz àqueles homens que são de (ou têm) boa vontade (cf. Rm 10,1; Fp 1,15; 2,13) para com Deus.

Seja como for, a expressão nada tem que ver com o uso, de corte irenista e ecumênico, que dela fazem algumas seitas modernas (e.g. a sincrética e filo-kardecista LBV). A boa vontade de que se trata aqui não é uma vaga e mal definida abertura interior a uma pretensa fraternidade pan-religiosa, desejosa de abraçar a todos por considerar irrelevantes quaisquer diferenças doutrinais, como se bastasse estar ‘bem disposto’ para superar qualquer divisão (cf. Pio XI, Encíclica Mortalium animos, de 6 jan. 1928: AAS 20 [1928] 8s).

V. 15s. Os pastores, contentes pela mensagem recebida e desejosos de ver a palavra (lt. verbum, gr. ῥῆμα; para outros, rem, como é habitual) que lhes fora dita, partiram pressurosos para Belém e encontraram Maria, José e o menino posto no presépio. ‘Porque tinham vindo às pressas e não devagar nem a passo arrastado, por isso o encontraram’ (Orígenes). — V. 17s. Vendo[-o] (ἰδόντες = como [o] vissem, depois que [o] viram), conheceram acerca da palavra (γνώρισαν περὶ τοῦ ῥήματος), i.e. tornaram-na conhecida = contaram, divulgaram o que tinham ouvido dos anjos e visto com os próprios olhos. E todos os que ouviram (o testemunho dos pastores) se admiraram (o texto gr. omite com razão a conjunção καί) das coisas que lhes foram ditas pelos pastores. ‘O povo é congregado pelos pastores a [prestar] reverência a Deus’ (Santo Ambrósio).

V. 19. Maria, por sua vez, confrontava (gr. συμβάλλουσα, lt. conferens, i.e. conferia, punha lado a lado) as palavras dos pastores e o que estes viram e ouviram com o que ela mesma vira e ouvira; e tudo isso, ela o conservava no coração e meditava com toda a piedade, para que depois, no momento oportuno, o revelasse aos Apóstolos. Maria ponderava essas coisas não com os outros, mas a sós consigo mesma, discreta e ‘recatada não menos nos lábios que no corpo’ (Santo Ambrósio). — V. 20. E retornaram os pastores glorificando e louvando a Deus em (por) tudo o que ouviram (do anjo, de Maria e de José) e viram, como tinha sido dito a eles, i.e. porque constaram ser verdade tudo o que lhes fora anunciado.

A circuncisão de Cristo (cf. Lc 2,21). — Uma vez que Cristo, como nosso Redentor e Mestre, quis em tudo assemelhar-se a seus irmãos (cf. Hb 2,17), exceto no pecado, convinha que se submetesse também ao rito da circuncisão.

NBa) Considerava-se que o menino, ao tornar-se membro do povo de Deus (cf. Gn 17,11), professava solenemente na circuncisão estar sujeito à Lei (cf. Gl 4,3). A circuncisão externa do corpo, com efeito, era símbolo e sinal da mortificação interna da concupiscência, além de um sacramento da antiga Lei pelo qual, mas em virtude da fé no Messias futuro (como sustenta a opinião mais comum), os membros do povo eleito eram purificados da culpa original. — b) Ora, neste mistério de sua vida, Jesus Cristo apresentou-se publicamente α) aos homens como pecador, que necessita da purificação da culpa, da justificação da fé (cf. Rm 4,11) e da mortificação da carne, dando-nos com isso exemplo extraordinário de humildade; β) mas, diante de Deus, apresentou-se como Redentor, obrigando-se ao cumprimento de toda a Lei, a fim de nos redimir da maldição da Lei, e derramando as primícias de seu sangue como penhor de tudo o que por nós verteria na cruz.

Como o hagiógrafo não diz onde nem como foi circuncidado o Menino, nada a esse respeito podemos saber com certeza. Quanto ao ritual que comumente se observava, do que temos notícia é do seguinte. No oitavo dia após o nascimento, os meninos eram circuncidados, quer na casa paterna, como provavelmente foi o caso de João Batista (cf. Lc 1,58s), quer na sinagoga, estando presentes ao menos dez testemunhas. Preparavam-se dois assentos, um dos quais era ocupado pela testemunha principal (i.e. pelo padrinho), ao passo que o segundo permanecia vazio, pois se considerava ocupado pelo profeta Elias, presente à cerimônia segundo a interpretação rabínica de 1Rs 19,10. O ministro da circuncisão (hebr. môhēl), que poderia ser o pai, e às vezes a própria mãe, realizava o rito com uma lâmina de pedra (cf. Ex 4,25; Jos 6,2), dizendo: ‘Bendito és tu, Senhor Deus nosso, que com os teus preceitos nos santificaste e nos deste a aliança da circuncisão’. O pai do menino (quando não fazia as vezes de ministro) devia responder: ‘Bendito és tu, Senhor Deus nosso, rei do mundo, que com os teus preceitos nos santificaste e ordenaste que firmáramos a aliança de Abraão, nosso pai’ etc. A cerimônia era rematada com um banquete. Na época de Cristo, no mesmo dia da circuncisão se dava nome ao menino, pois foi na instituição deste rito que Deus mudou os nomes a Abraão e a Sara.

O Angélico propõe sete razões de conveniência pelas quais Cristo, embora acima da Lei, devia ser circuncidado segundo a Lei (cf. STh III 37, 1c.): 1) para mostrar a verdade de sua carne humana; 2) para aprovar a circuncisão, instituída outrora por Deus; 3) para certificar que pertencia à descendência de Abraão, que recebera o mandamento da circuncisão em sinal da fé no Messias; 4) para não dar aos judeus motivo de o rejeitarem como a um incircunciso; 5) para nos dar exemplo de obediência; 6) porque, tendo assumido uma carne de pecado (i.e. passível), não devia rejeitar o remédio pelo qual era costume purificar a carne do pecado; 7) para que, suportando em si mesmo o peso da Lei, livrasse a outros do jugo dela, como diz São Paulo: Deus enviou seu Filho . . . submetido a uma Lei, a fim de remir os que estavam sob a Lei (Gl 4,4s).

§3. Meditação:

A solenidade de Nossa Senhora, Mãe de Deus, celebrada no dia 1.º de janeiro, dá fim à Oitava do Natal e início a mais um ano civil, posto sob os auspícios maternais daquela que, segundo a doutrina definida pelo Concílio de Éfeso contra a heresia de Nestório, é verdadeiramente Teótoco (Θεοτόκος), i.e. Mãe de Deus, por ter gerado e dado à luz segundo a carne o próprio Filho de Deus. A Igreja dirige hoje o olhar para a Mãe do Salvador, não porque este seja menos importante, mas porque Maria Santíssima, na economia da redenção, estabelecida ab æterno por Deus, era necessária para que o Filho de Deus se tornasse Filho de homem. A Virgem bendita, nesse sentido, não é um ‘apêndice’ nem um detalhe secundário na história da salvação, mas, pelo contrário, uma peça-chave sem a qual Deus não quis entrar na história e da qual ele mesmo assumiu a carne para poder chamar-se Emanuel.

Com efeito, enquanto caminhou no meio de nós, Nosso Senhor Jesus Cristo fez questão de ressaltar várias vezes (cerca de 78, se incluirmos as passagens paralelas) que ele, Filho eterno do Pai, era também o Filho de homem (gr. ὁ υἱὸς τοῦ ἀνθρώπου, hebr. bar ’enash), expressão a que recorria uma e outra vez não apenas por ser conhecida dos hebreus e remeter, espontaneamente, à profecia messiânica de Daniel (cf. Dn 7,13s), mas também por indicar que ele recebeu toda a sua humanidade de uma única fonte, as entranhas puríssimas e nunca profanadas da Virgem Imaculada. Ele, de fato, é o Filho de homem, homem como nós em tudo, exceto no pecado, justamente por ser Filho de Maria, não no sentido de que ela tenha dado origem à divindade com que o seu Filho é anterior a ela e a todos os séculos, mas porque o Espírito Santo nela obrou para que dela assumisse a natureza humana aquele que, sendo Deus eterno, a criou no tempo, e para que ela mesma gerasse e desse à luz, permanecendo intacta a sua virgindade, aquele que é o próprio e sempiterno unigênito do Genitor eterno (cf. São Leão Magno, Ad Flav. ii: DH 291).

A grandeza dessa geração singular, pela qual o Filho eterno do Pai se fez Filho de Maria, supera em tal medida todo entendimento criado, que a moderação de um santo como Tomás de Aquino chegou a afirmar que, por sua divina maternidade, a Virgem Santíssima foi elevada a certa dignidade infinita (cf. STh I 25, 6 ad 4), em razão do bem infinito que é Deus, seu Filho. Que também nós possamos encher-nos da mesma admiração que levou o Aquinate a cantar os louvores da Mãe do Criador. Renovando hoje nossa consagração total a ela, peçamos à Virgem Teótoco que nos guarde sob o seu amparo ao longo de todo este ano que se inicia e se digne interceder por nós ao seu Filho, a quem seja dada toda honra e glória pelos séculos dos séculos. Amém.

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