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O que é a família natural?

Na raiz da atual crise da família está não só o pecado original. As ideologias modernas, como falsas filosofias, têm provocado uma tremenda confusão na cabeça das pessoas, eliminando quase que por completo o contato delas com a realidade...

Texto do episódio
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Por ocasião da memória litúrgica de S. Luís e S. Zélia Martin, pais de S. Teresinha do Menino Jesus, abordaremos na aula de hoje o tema da chamada família natural. O nosso objetivo será compreender por que as nossas famílias e, portanto, a sociedade que delas se compõe se encontram tão fragilizadas.

Antes de nos debruçarmos sobre a natureza da família, cumpre falar sobre a natureza humana e entender, de um ponto de vista filosófico, em que se distingue o ser humano dos outros animais. Esse “preâmbulo” é fundamental se quisermos ter da realidade uma compreensão clara, ainda mais nestes tempos em que, de regra, as inteligências se tornaram quase opacas às diferenças mais elementares.

Ora, o pensamento humano sempre foi sensível, ainda que nem sempre o tenha formulado com os mesmos termos, ao fato de a realidade estar povoada de coisas essencialmente distintas e, a um tempo, capazes das mais diversas alterações, sem perder sua unidade subjacente. A esse aspecto fixo, a essa identidade profunda de cada ente, os filósofos gregos deram o nome de “substância” (do grego οὐσία, vertida em latim como substantia). O que a noção de substância busca pôr em evidência é o que há de específico e permanente em cada coisa, apesar da variabilidade de seus aspectos ou determinações acidentais.

Ponhamos lado a lado, na linha biográfica de um mesmo ser vivo, um ovo fecundado, um pintinho e um galo adulto. Qualquer um se dá conta de que entre o ovo, na sua imóvel rigidez, e o galo adulto, com todo o aprumo de suas penas, há um abismo de diferença. Mas quem quer que tenha uma granja e tenha visto um ovo para além das prateleiras de supermercado sabe que, entre uma coisa e outra, não há mais de que uma diferença de estado, de tamanho ou, se se quer, de “grau”. O que se esconde dentro do ovo é, essencialmente, desde os seus estágios mais primitivos, o mesmo galo que o fazendeiro vê passar orgulhoso por entre galinhas embasbacadas.

Trata-se da mesma substância vivente, da mesma unidade vital que, sob as incontáveis variações de figura, cor, tamanho etc. que marcam a pauta de desenvolvimento de um galináceo, permanece o mesmo indivíduo com a mesma natureza. Se o granjeiro não fosse capaz de aperceber-se, ainda que de modo rudimentar, da identidade entre o conteúdo do ovo e o galo crescido e da unidade de natureza entre ambos, seria totalmente incapaz de criar aves. Jamais poderia saber se de um ovo sairá um galo ou um tatu, nem que cuidados deve tomar para que dele surja um galo vivo e saudável, e não um aborto de pintinho.

Não são, porém, os olhos nem os ouvidos nem as mãos que percebem e atingem a substância, potências limitadas por sua própria constituição a detectar meros acidentes sensíveis: a cor das penas, a altura do galo, o cheiro e o sabor da carne assada… Cabe à inteligência, faculdade em si mesma espiritual, embora dependente dos dados subministrados pelos sentidos, a alta e ao mesmo tempo simples tarefa de reconhecer a índole substancial do galo. 

Ora, numa cultura como a nossa, historicamente avessa a todo “dogmatismo metafísico” e a “vãs abstrações”, não é de estranhar que os livre-pensadores tenham rejeitado uma noção tão enraizada na experiência comum dos homens e acessível à inteligência de qualquer criador de galinha, para substituí-la por concepções de mundo esdrúxulas em que não há naturezas, mas simples aparências, resultantes de processos físicos e evolutivos tão casuais como um jogo de dados.

À noção de substância se vincula, por sua vez, outra não menos importante, que se refere à índole finalística ou teleológica de todo ente natural. Trata-se da noção de virtude (ἀρετή, em grego; virtus, em latim). Com efeito, se toda substância se define como uma natureza constituída por traços próprios e peculiares, que se expandem numa linha determinada de aperfeiçoamento, mantendo-se porém a mesma unidade vital subjacente (lembremos a “unidade biográfica” do nosso galo), é evidente que toda substância é também um sistema, por assim dizer, “auto-contido” de fins: tem, em si mesma, por ser o que é, uma orientação a crescer numa certa direção, a alcançar determinados objetivos que lhe vêm ditados pelas exigências mesmas de sua constituição específica.

A virtude é justamente a disposição pela qual cada substância realiza de modo excelente as funções que lhe são características, justamente enquanto substância desta, e não de outra espécie, no cumprimento de sua própria “vocação”. A ideia de virtude, no entanto, pode aplicar-se também, em sentido mais ou menos proporcional, a substâncias artificiais como uma faca, por exemplo. Dizemos ser virtuosa a faca que cumpre com excelência a função que a caracteriza como faca: a função de cortar. É virtuosa a faca que corta bem, e não a que, tendo os dentes já desgastados, não pode ser usada senão como peso de papel. 

Aplicada ao seu âmbito mais adequado, isto é, ao das substâncias viventes, que têm uma unidade de forma interna e constitutiva, e não por justaposição de partes orientadas extrinsecamente, por obra de um artífice, a um fim determinado, a virtude corresponde à disposição com que cada substância leva a cabo sua função própria: a do cavalo, por exemplo, é correr bem; a do cão é ser um bom vigia; a do gato é ser um bom preguiçoso… e a do homem é viver e atuar bem segundo o traço distintivo de sua natureza, que é a racionalidade.

A virtude, nesse sentido, é o índice, é o sinal manifestativo da finalidade (do τέλος, diriam os gregos) que corresponde a cada substância e, portanto, também ao ser humano. O homem está, por natureza, vocacionado à excelência no uso das suas faculdades racionais, tanto em sua vertente especulativa (aprimoramento da inteligência pelo estudo) quanto em sua aplicação prática (educação da vontade e dos afetos em ordem à realização, aqui e agora, do bem moral).

Por isso, nada está mais longe da verdade sobre o ser humano do que o formalismo ético do imperativo categórico. Para Kant, são morais aquelas ações que emanam de uma vontade “pura”, que se determinada a si mesma, em obediência a uma máxima subjetiva de valor universal, e não por seguir as inclinações naturais que, reguladas pela razão, mostram ao homem o caminho para a realização de sua própria natureza. Não porque o homem seja lei para si mesmo — é Kant quem erige a razão em norma suprema e auto legisladora —, mas porque o homem encontra em si mesmo, na natureza que lhe foi dada, luz para orientar suas inclinações ao que é bom para uma substância racional.

Ora, se entre as inclinações da natureza humana se conta o dom da sexualiade, é evidente que será um bom homem, um homem virtuoso e, em última análise, um homem realizado e feliz o que souber orientar, segundo a razão, esta inclinação tão forte que, se bem vivida, é meio de expressão da nossa grandeza sobre os animais, do nosso domínio sobre os apetites, da marca eminentemente espiritual dos nossos atos e afetos; mas, se mal empregada, nos põe abaixo dos piores brutos. 

E o que a razão revela, ao menos aos que não se deixam vencer por preconceitos de época nem pela falsa ciência que não vê no homem mais do que um acaso cósmico ou um primata cabeçudo, é que a sexualidade existe para a reprodução. Eis o seu fim, o seu τέλος natural, o que a define como uma inclinação distinta, por exemplo, do desejo de comida. É verdade que a natureza associou ao ato sexual uma sensação de gozo que, em si mesma, não é pecado; antes, pelo contrário, serve para promover a união entre homem e mulher, impulsionando-os a cumprir a altíssima prerrogativa de participar da criação. Trata-se, no entanto, de um aspecto secundário, subordinado ao fim primário e principal da união carnal, que é a geração de filhos. Daí que qualquer uso da sexualidade que contrarie esse fim, sujeitando-o ao prazer e dando a este o status de fim único e exclusivo do ato sexual, constitui uma agressão à natureza humana e à ordenação racional que se deve imprimir à inclinação sexual, para vivê-la de acordo com sua finalidade própria.

Mas se a inclinação sexual induz por força própria o homem e a mulher a se unirem em ordem à geração de filhos, essa mesma finalidade procriativa reclama, pela condição natural em que todo homem vem ao mundo [1], a constituição de uma sociedade doméstica, sólida e duradoura, dedicada à educação dos filhos. A essa sociedade, à qual estão naturalmente ordenados o homem e a mulher e que surge como resposta a uma necessidade natural dessa mesma ordenação, damos o nome de família.

Portanto, a família constituída por um homem e uma mulher, unidos por um laço inquebrantável de exclusividade e mútua fidelidade, não é nem um produto artificial de certas culturas do passado nem, muito menos, a imposição de um suposto modelo “patriarcalista” e opressor de organização social. É a instituição que materializa, na forma de uma sociedade embrionária, a inclinação sexual humana e oferece as condições para que tal inclinação atinja, à altura da dignidade de um ser racional, o seu fim primário (a procriação), com todas as necessidades que dele se originam (a educação).

A família é, pois, uma instituição natural, que existe para gerar filhos e educá-los. É, pela mesma razão, o lugar por excelência em que o novo ser poderá adquirir virtudes, isto é, excelência humana. Até o alvorecer da fé cristã nos corações e nos lares, as famílias pagãs, feridas em maior ou menor medida pelas desordens do pecado original, viviam à mercê de injustiças, indignidades e atrocidades contrárias ao fim e aos deveres conaturais da instituição familiar, como a poligamia e o infanticídio — o primeiro, uma ignomínia para a mulher; o segundo, um atentado à vida da prole.

Foi o cristianismo que irrigou, com uma chuva de graças regeneradoras, o solo dessa cultura desvirtuada, dando a pais e mães a capacidade de enxergar, à luz da razão e sob a ótica sobrenatural da fé, os seus deveres educativos e de cumprir, com o auxílio de Deus, as obrigações conjugais de esposos em Cristo. 

Lancemos uma vista d’olhos sobre o percurso que aqui trilhamos. Existe uma natureza da família, que, fundada na própria natureza humana, nos permite falar de família natural [2], ou de uma instituição natural. Corresponde-lhe um substrato biológico, referente à inclinação sexual por que homem e mulher estão naturalmente ordenados a formar uma sociedade voltada para a geração da prole. Daí emerge, como consequência direta e espontânea, o direito e dever dos pais de educarem a prole gerada, cuja perfeição em corpo e alma exige, desde o início, um prolongado labor de instrução: instrução, por um lado, intelectual, por meio da cultura em múltiplos domínios e, por outro, ética, por meio de virtudes morais que dêem à vontade a força necessária para cumprir os imperativos de uma vida justa e honesta.

É à falta desta instrução básica, em sua dupla faceta corporal e espiritual, ou da sobrevalorização de uma em detrimento da outra que se devem em boa medida os  problemas que vemos de forma tão frequente nas famílias de hoje. Mas, para além dessa esfera natural da família, existe ainda uma outra, que é a sua dimensão sobrenatural — da qual deram belíssimas provas os pais de S. Teresinha —, a única que pode “pôr em ordem” os desajustes introduzidos em casa pelo pecado, tanto dos primeiros pais quanto dos pais de hoje. É tema para uma futura aula.

Referências

  1. J. Gredt, Elementa, vol. 2, n. 1017: “O homem não possui desde o início toda a sua perfeição, mas se encontra, recém-nascido, tanto corporal quanto espiritual (ou seja, quanto ao intelecto e à vontade), em estado de imperfeição, a partir do qual progressivamente se desenvolve. Não pode, contudo, desenvolver-se por si só, mas precisa de múltiplos auxílios. E neste auxílio ao seu desenvolvimento, tanto corporal quanto espiritualmente, consiste a educação, a qual, portanto, é dupla: corporal, que se realiza dando nutrientes e tudo o que é naturalmente necessário ao corpo, e espiritual (à qual pertence a instrução religiosa e social), que se realiza pela doutrina, não meramente especulativa, mas também prática, isto é, por conselhos, correções, punições, de modo que não só se conduza o intelecto a conhecer a verdade, o que é necessário para alcançar o fim último, mas também se incline a vontade a fazer o bem”. 
  2. Muito mais apropriada do que a expressão “família tradicional”, que pode dar a entender que há formas “alternativas”, mas equivalentes, de ser família.
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