Hoje queremos refletir sobre o momento político do Brasil. É da pena de Santo Agostinho a constatação de que, sem a justiça, os governos não passam de quadrilhas de ladrões. O Bispo de Hipona notou isso a partir da crise do Império Romano, e, em resposta, escreveu a grande obra A Cidade de Deus. Séculos mais tarde, esse mesmo pensamento iluminaria a reflexão do Papa Bento XVI, na encíclica Deus Caritas est, cujos parágrafos 28 e 29 tratam da relação entre Igreja e Estado. Nesse documento, o Santo Padre apresenta um breve resumo da Moral Social, indicando princípios sólidos que, para nossa felicidade, podem iluminar a crise pela qual passam as instituições políticas do Brasil.
O propósito deste programa, portanto, não é aconselhar o presidente da República, nem a oposição, mas, segundo o ensinamento de Santo Agostinho e Bento XVI, esclarecer a inteligência e fortalecer a vontade de nossos alunos, a fim de que eles mesmos possam discernir sobre as orientações políticas do país.
Em primeiro lugar, vimos que o elemento distintivo entre um governo e uma quadrilha é, segundo Santo Agostinho, a virtude da justiça. Em A Cidade de Deus, o Bispo de Hipona cita um episódio bem inusitado da história de Alexandre Magno. Conta a história que, certo dia, as tropas do imperador capturaram um pirata que fazia arruaça contra as demais embarcações. Quando Alexandre o interrogou para saber “que lhe parecia isso de infestar os mares”, cita Santo Agostinho, “ele respondeu com franca audácia: ‘o mesmo que a ti parece isso de infestar todo o mundo; mas a mim, porque o faço com um pequeno navio, chamam-me ladrão; e a ti, porque o fazes com uma grande armada, chamam-te imperador’” (A Cidade de Deus, IV, 4). O pirata, observa Santo Agostinho, era só menos pretensioso que Alexandre; mas, no fim das contas, as motivações deles eram as mesmas.
Para constituir um governo, Santo Agostinho apela à luz natural da razão, que reconhece a natureza das coisas e lhe atribui a justa medida. Sem essa atitude, o Estado não pode caminhar retamente, pois a instituição não se mantém inclinada ao bem. Se uma instituição está em si mesma corrompida, não importa quem esteja no poder, o próprio sistema dará conta de corrompê-lo também. É como se se quisesse corrigir a depravação de um prostíbulo contratando-se prostitutas virgens. Na primeira noite elas já estariam depravadas como as outras. De modo análogo, as instituições políticas precisam ser conhecidas desde as bases, a fim de que as causas da injustiça sejam completamente erradicadas; deve-se descobrir qual é a causa última da corrupção.
Na origem de um Estado, o papel da família tem um lugar privilegiado. Conforme explica Aristóteles, a sociedade humana surge de associações familiares, que, por várias razões, se organizam sob a autoridade daqueles cujas capacidades físicas e intelectuais são mais desenvolvidas. Nessas associações, o mais sábio acaba tendo um papel de destaque, como conselheiro do grupo. Trata-se de um processo natural pelo qual se formam as chamadas monarquias. Numa tribo indígena, por exemplo, o líder do clã é uma espécie de monarca. Embora isso pareça chocante à nossa geração democrata, a verdade é que as sociedades se organizaram inicialmente como monarquias, onde a pessoa mais capacitada adquire, como não podia deixar de ser, o respeito e a obediência dos demais, como um pai de família.
Essas monarquias podem, como a história já revelou, converter-se em tiranias. O pecado original está presente na humanidade, e o homem tem uma tendência bem acentuada para a corrupção. Historicamente, a sociedade testemunhou o surgimento de impérios terríveis, que disseminaram a violência e o terror. O último desses impérios foi justamente o romano, sobre o qual Santo Agostinho escreveu em A Cidade de Deus.
Mas, após esse período, o cristianismo fecundou a sociedade com princípios morais tão sólidos, que funcionavam como um verdadeiro remédio às tentações imperialistas. E quando surgia alguma nova facção com pretensões tirânicas, os próprios cristãos se encarregavam de introduzir o Evangelho nesses ambientes. Desse modo, o mundo viveu um período de relativa paz, porque os governos eram organizados a partir de uma racionalidade moralmente equilibrada. E se houve guerras nessas épocas, elas nem de longe se comparam à sanguinolência do tempo pós medieval. De fato, as próprias cruzadas não podem ser vistas como um “movimento imperialista”, mas como um movimento genuíno de defesa da fé, como mostra a pesquisa do sociólogo Rodney Stark.
Tal dinâmica assim se manteve até o surgimento do protestantismo. Com Martinho Lutero, a Igreja foi jogada para fora do ambiente laical, tornando-se a religião uma coisa subjetiva. Os reis então assumiram o poder temporal e espiritual, numa espécie de cesaropapismo. Não era mais a Igreja que mantinha a relação entre os povos, mas a ideologia por trás de cada Estado nacional. Isso logo desembocaria em lutas de supremacia e interesses imperialistas, como em épocas passadas. Em pouco tempo rebentou a Guerra dos Trinta anos, que culminaria no malfadado tratado de Westphalia, cujo legado foi a privatização da fé. Estava assim consolidada a cisão entre fé e razão.
Todo esse panorama histórico da contribuição cristã para a ordem política, bem como a sua derrocada logo após o advento do protestantismo, serve de pano de fundo para uma compreensão mais clara da Moral Social da Igreja, segundo as indicações do Papa Bento XVI, na encíclica Deus Caritas Est. Partindo da conclusão de Santo Agostinho acerca dos governos injustos, Bento XVI então declara que não é tarefa da Igreja, por si só, “a batalha política para realizar a sociedade mais justa possível” (n. 28). Com isso, o Santo Padre delimita bem a vocação de cada uma das instituições, Estado e Igreja, e ensina como uma pode beneficiar-se da outra.
Da parte da Igreja, afirma o Papa, a luta pela justiça segue a “via da argumentação racional e deve despertar as forças espirituais, sem as quais a justiça, que sempre requer renúncias também, não poderá afirmar-se nem prosperar”. Notem, portanto, que a Igreja não pode comportar-se como um organismo partidário, que serve de palanque a determinadas orientações. O seu principal dever nessa matéria é o de “empenhar-se pela justiça trabalhando para a abertura da inteligência e da vontade às exigências do bem”, pois “a sociedade justa não pode ser obra da Igreja”, mas, insiste o Papa, “deve ser realizada pela política”.
Da parte do Estado, o Papa Bento XVI esclarece que o dever primário dessa instituição é a consecução de uma “justa ordem da sociedade”. E a razão para isso é muito simples: a sociedade depende de uma relação sadia entre as pessoas, de modo que elas se ajudem mutuamente, exercendo suas liberdades individuais com respeito e responsabilidade. Mas quando lhes falta uma autoridade que favoreça uma vivência ordenada, então se abre a porta à anarquia. Mesmo dentro de um metrô, onde as pessoas estão, embora fisicamente próximas, tão distantes espiritualmente uma das outras, a responsabilidade do maquinista afeta a segurança de toda a tripulação. A independência total é uma total ilusão. A sociedade precisa, por isso, do Estado.
Para assegurar essa justa ordem, no entanto, o Estado não pode aplicar uma simples técnica, mas deve pautar-se pela natureza da justiça e da ética. Os políticos precisam conhecer o que é a justiça verdadeira antes de querer pô-la em prática. Sendo assim, a razão prática com a qual os políticos podem descobrir o sentido mais radical das coisas deve “ser continuamente purificada porque a sua cegueira ética, derivada da prevalência do interesse e do poder que a deslumbram, é”, adverte Bento XVI, “um perigo nunca totalmente eliminado”.
Aqui então Estado e Igreja se tocam. Com a luz da graça trazida pelo dom da fé, a Igreja ajuda o Estado a vencer o deslumbramento egoísta e joga luzes sobre a razão, curando-a de sua cegueira. É tarefa do Magistério católico fecundar a sociedade com o fermento da santidade, despertando as consciências e motivando-as à busca do bem comum. Essa era, ao menos, a sua prática comum durante boa parte da Idade Média.
Nesta nova conjuntura social, porém, a mentalidade secularista ignora a contribuição da Igreja, e o que resta para o exercício da política é precisamente o deslumbramento das ideologias. No Brasil, assistimos a uma luta acirrada entre direita e esquerda, capitalismo e socialismo, conservadores e liberais etc. No fundo, o povo fica dividido entre a ganância do liberalismo econômico e a violência do coletivismo marxista, duas doenças graves que afetam toda a ordem social. E a raiz dessas doenças nada mais é que a cisão entre fé e razão, celebrada de forma tão cínica pela Revolução Francesa, que colocou a deusa “Razão” no altar de Notre Dame. Não demorou muito para que esse ídolo mandasse o próprio povo para a guilhotina.
Ora, a Igreja não pretende substituir as instâncias políticas nem deseja criar um sistema fechado, impondo “àqueles que não compartilham a fé, perspectivas e formas de comportamento que pertencem a esta”, ou seja, à comunidade católica (Deus caritas est, n. 28). Embora ela sempre tenha como base a Revelação, a Bíblia não é um projeto político, e a Doutrina Social da Igreja também se inspira na lei natural; por isso, ela respeita melhor a dignidade da pessoa humana. É com base nessa confiança que os Papas não deixam de insistir no diálogo com o mundo e as autoridades políticas. Não se trata de interferência, mas de mútua cooperação. A sua tarefa principal é justamente prevenir contra uma situação deveras absurda, que acabe resultando na ascensão de tiranias e ditaduras das várias espécies.
Na história das sociedades, aliás, as tiranias surgiram precisamente nos momentos de obscurecimento da razão e abandono dos princípios morais, tais como o cristianismo os entende. Portanto, “a Igreja tem o dever de oferecer, por meio da purificação da razão e através da formação ética, a sua contribuição específica para que as exigências da justiça se tornem compreensíveis e politicamente realizáveis” (Deus caritas est, n. 28).
Em resumo, Bento XVI diz que a Igreja quer apenas “servir a formação da consciência na política e ajudar a crescer a percepção das verdadeiras exigências da justiça e, simultaneamente, a disponibilidade para agir com base nas mesmas, ainda que tal colidisse com situações de interesse pessoal” (Deus caritas est, n. 28). Desse modo, o Magistério não apresenta um partido político ou programa de governo – nem poderia fazer isso –, mas a luz da graça para que a inteligência e a vontade humana se dediquem a defesa da dignidade humana e do bem comum.
No exercício da política, os leigos católicos, iluminados por esses princípios, podem debater sobre os assuntos de livre opinião e até discordar entre si, permanecendo assim mesmo como verdadeiros católicos. A partir do vínculo espiritual cria-se um debate sadio e necessário, algo bem diferente das manifestações ordinárias do cenário que temos hoje, onde desgraçadamente alguns católicos pouco instruídos fazem as vezes de protagonistas. As brigas de internet e o enfrentamento belicoso, que obscurece a dignidade humana, nada tem de cristão. Afinal de contas, a política não é uma questão de voto, um jogo de futebol, mas um dever de caridade, que implica o comprometimento da própria vida. Sem essa disposição ao sacrifício, a política ficará reduzida ao cacarejar das galinhas.
Os políticos precisam, afinal, aprender a encarnar em suas agendas o ensinamento mais precioso do Evangelho: a renúncia de si mesmo pela salvação dos outros!
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