A memória litúrgica do grande biblista São Jerônimo é celebrada no dia 30 de setembro, motivo pelo qual a Igreja dedica este mesmo mês às Sagradas Escrituras, uma das fontes da Revelação de Deus para a salvação do homem e instrumento do Pai que está nos Céus para vir “amorosamente ao encontro dos seus filhos, a conversar com eles” (Catecismo da Igreja Católica, § 104). Dada a ocasião, esta aula pretende meditar sobre a íntima relação que existe entre a Igreja e a Bíblia, com o fim também de esclarecer uma polêmica bastante desnecessária, criada recentemente pelo pastor Silas Malafaia, em torno de algumas declarações de Dom Henrique Soares da Costa sobre o lugar das Escrituras na vida da Igreja [1].
O Magistério católico sempre ensinou que há uma precedência da Igreja sobre o cânon dos livros sagrados. É estranho, portanto, que as afirmações de Dom Henrique tenham gerado escândalo, já que não são novidades teológicas, mas fazem parte da fé católica de dois mil anos.
O problema do raciocínio do pastor Silas Malafaia é que ele comete um erro de lógica chamado “sofisma do termo médio”. A ideia dele é a seguinte: Se a Palavra de Deus é Jesus, então a Palavra é anterior à Igreja e, logicamente, mais importante do que esta. A Igreja também crê assim. Acontece que Malafaia confunde a Palavra de Deus com um livro. E é aqui que começam as discordâncias, pois, para os católicos, a Palavra de Deus não se resume a um livro; a Palavra de Deus é, antes, uma Pessoa!
De fato, a Igreja nasce da Palavra de Deus, pois nasce da Pessoa de Cristo, que é seu Noivo e Salvador. Mas uma coisa é a pessoa de Nosso Senhor Jesus Cristo, Verbo encarnado do qual procede toda salvação; outra é o cânon dos livros sagrados como temos na Bíblia. Este é posterior à Igreja e dela depende sua autenticidade, como professava Santo Agostinho: Ego vero Evangelio non crederem, nisi me catholicae Ecclesiae commoveret auctoritas, “Quanto a mim, não acreditaria no Evangelho se não me movesse a isso a autoridade da Igreja católica” (Contra Epistulam Manichaei quam vocant fundamenti, V, 6).
Em primeiro lugar, é preciso lembrar que Jesus não deixou nenhum documento por escrito. Todos os livros do Novo Testamento — que compõem tanto a Bíblia católica como a protestante — são de autoria de algum apóstolo ou discípulo do Senhor, convenientemente chamados de hagiógrafos [2]. Cabe, então, a pergunta: de que modo se pode provar que esses 27 livros são mesmo inspirados por Deus e que os demais evangelhos existentes são apócrifos?
O grande trunfo de Dan Brown no livro O código da Vinci é a acusação de que a Igreja teria escondido o Evangelho de Maria Madalena para impor uma visão machista da doutrina cristã. Desconsiderando o conteúdo ideológico dessa acusação leviana, não deixa de ser verdadeiro o fato de que o Magistério rejeitou não somente o evangelho de Maria Madalena, como também o de tantos outros autores, embora o tenha feito não por motivações ideológicas, mas pela simples razão de esses livros não serem autênticos, nem estarem de acordo com a Tradição Apostólica.
A formação da lista dos livros do Novo Testamento não aconteceu de maneira tranquila, rápida e consensual, como erroneamente imaginam os protestantes. Durante mais de três séculos a Igreja teve de lidar com grupos diversos que, por um lado, defendiam a inclusão de vários livros apócrifos no cânon bíblico — como era o caso dos gnósticos — e, por outro, queriam a exclusão de vários livros sagrados, reconhecendo como verdadeiros apenas o Evangelho de Lucas e algumas cartas paulinas — como no caso dos marcionitas, discípulos do herege Marcião. Coube à Igreja Católica, representada pela autoridade apostólica dos bispos e apoiada na Tradição, a missão de discernir a respeito do assunto e listar, depois de um consenso por parte de todo o orbe católico, os livros que deveriam estar presentes no cânon das Sagradas Escrituras. A lista mais antiga de que temos notícia é a lista do Papa Dâmaso, no século IV (cf. Decretum Damasi: DS 179-180):
Para o Antigo Testamento: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números, Deuteronômio, Josué, Juízes, Rute, os dois livros de Samuel, os dois livros dos Reis, os dois livros das Crônicas, Esdras e Neemias, Tobias, Judite, Ester, os dois livros dos Macabeus, Jó, os Salmos, os Provérbios, o Eclesiastes (ou Coelet), o Cântico dos Cânticos, a Sabedoria, o livro de Ben-Sirá (ou Eclesiástico), Isaías, Jeremias, as Lamentações, Baruc, Ezequiel, Daniel, Oséias, Joel, Amós, Abdias, Jonas, Miqueias, Nahum, Habacuc, Sofonias, Ageu, Zacarias e Malaquias;
Para o Novo Testamento: Os evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João; os Atos dos Apóstolos; as epístolas de São Paulo: aos Romanos, primeira e segunda aos Coríntios, aos Gálatas, aos Efésios, aos Filipenses, aos Colossenses, primeira e segunda aos Tessalonicenses, primeira e segunda a Timóteo, a Tito, a Filémon: a Epístola aos Hebreus; a Epístola de Tiago, a primeira e segunda de Pedro, as três epístolas de João, a Epístola de Judas e o Apocalipse.
Antes da formação do cânon bíblico, os primeiros cristãos passaram séculos a fio vivendo apenas da Tradição. Para que fique claro, o livro mais antigo do Novo Testamento, a I Carta de São Paulo aos Tessalonicenses, foi redigido quase 20 anos após a ascensão de Jesus, ao passo que o mais recente, o livro do Apocalipse, foi escrito por volta do ano 90. Além disso, esses livros não estavam reunidos em um único pergaminho, mas espalhados por várias regiões, de modo que a Igreja primitiva não possuía um Novo Testamento como nós o conhecemos. Os primeiros cristãos, luminares de santidade, viveram absolutamente da Tradição, da Palavra de Deus encarnada, não de um livro.
Com efeito, o princípio da Sola Scriptura revela-se totalmente alheio à Tradição e à história da Igreja, que sequer cogitou alguma vez colocar a Bíblia como única fonte da Revelação cristã. Foi apenas com Lutero que esse postulado surgiu. Com a invenção da imprensa, tornou-se fácil colocar a Bíblia na mão das pessoas. Mas os protestantes só puderam imprimir as Sagradas Escrituras e distribuí-las aos fiéis porque, durante 1500 anos, monges católicos as preservaram em suas bibliotecas, redigindo novos e novos manuscritos, à medida que as cópias antigas iam se deteriorando. Não haveria Bíblia sem Tradição.
A Bíblia inegavelmente é um instrumento preciosíssimo pois, por meio dela, a “Igreja encontra continuamente o seu alimento e a sua força” (Catecismo da Igreja Católica, § 104). O que seria de nós sem a Bíblia? Todavia, não se pode perder de vista que a “fé cristã não é uma ‘religião do Livro’”, “mas é a religião da ‘Palavra’ de Deus, ‘não duma palavra escrita e muda, mas do Verbo encarnado e vivo’” (Catecismo da Igreja Católica, § 108), o qual nos legou a Igreja como coluna e sustentáculo da verdade (1Tm 3, 15). Daí que o Magistério venere igualmente a Tradição e as Sagradas Escrituras, porque não tira só desta última “a sua certeza a respeito de todas as coisas reveladas”, uma vez que ambas derivam “da mesma fonte divina, fazem como que uma coisa só e tendem ao mesmo fim” (Catecismo da Igreja Católica, § 80).
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