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Texto do episódio
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Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João (Jo 14,23-29)

Naquele tempo, disse Jesus a seus discípulos: “Se alguém me ama, guardará a minha palavra, e o meu Pai o amará, e nós viremos e faremos nele a nossa morada. Quem não me ama, não guarda a minha palavra. E a palavra que escutais não é minha, mas do Pai que me enviou.

Isso é o que vos disse enquanto estava convosco. Mas o Defensor, o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, ele vos ensinará tudo e vos recordará tudo o que eu vos tenho dito.

Deixo-vos a paz, a minha paz vos dou; mas não a dou como o mundo. Não se perturbe nem se intimide o vosso coração.

Ouvistes o que eu vos disse: ‘Vou, mas voltarei a vós’. Se me amásseis, ficaríeis alegres porque vou para o Pai, pois o Pai é maior do que eu.

Disse-vos isso, agora, antes que aconteça, para que, quando acontecer, vós acrediteis.

O Tempo Pascal divide-se em mais ou menos duas partes: a primeira é mais voltada para a figura de Jesus ressuscitado e suas aparições, cuja finalidade é confirmar a fé dos discípulos. No entanto, da metade do tempo pascal em diante, a Igreja começa a voltar o olhar para Pentecostes e a vinda do Espírito Santo, por isso os Evangelhos costumam nos levar à Última Ceia, quando Jesus promete o Paráclito que há de vir.

Lembremos que Jesus ressuscitou no domingo de Páscoa, apareceu aos discípulos durante quarenta dias e então subiu aos céus no quadragésimo dia, celebrado liturgicamente na quinta-feira que vem. Noutras palavras, na próxima quinta-feira deveríamos celebrar a Ascensão do Senhor; mas essa festa, tanto no Brasil como em Portugal, infelizmente é transferida para o domingo seguinte. Seja como for, não custa lembrar que é na próxima quinta-feira que começa a Novena de Pentecostes, em preparação mais imediata para a vinda do Espírito Santo.

É nesse clima de despedida, por assim dizer — despedida da Última Ceia, no Evangelho, mas também despedida de Jesus, que irá subir aos céus para enviar o Espírito Santo —, que devemos ler o Evangelho deste domingo. O texto é tirado de São João (14, 23-29). Jesus despede-se dos Apóstolos, mas garante: de fato, Ele irá embora, mas não vai deixá-lo sozinhos. É, portanto, um Evangelho todo voltado para a presença de Deus em nossas vidas depois da subida de Jesus aos céus.

Ora, de que natureza é a presença divina que o Espírito Santo irá nos trazer? Deus estará conosco, mas de um modo especial: habitando em nossos corações. O Evangelho de hoje nos recorda, pois, a chamada presença de inabitação, pela qual Deus está de modo misterioso mas real na alma dos justos. Jesus mesmo o diz: “Se alguém me ama, guardará a minha palavra”, ou seja, se a alma está em graça, radicada no amor, que se prova pela observância dos mandamentos, “o meu Pai o amará, e nós viremos e faremos nele a nossa morada”.

Deus vem morar em nós como amigo. Eis aí, em resumo, o objeto deste Evangelho. Trocando em miúdos, podemos dizer que Jesus ressuscitou e subiu aos céus, mas não estamos sozinhos: Deus permanece conosco. Como? Pela inabitação da Santíssima Trindade. Para entendê-lo bem, precisamos abordar antes um problema filosófico, básico e fundamental, enunciado por Santo Tomás de Aquino: Quem está presente em todos os lugares, não pode começar a estar em nenhum deles; ora, Deus está em todos lugares; logo, não se pode dizer que ele venha a este ou àquele lugar, como se ali não estivesse antes.

Por que, então, diz Jesus que o Espírito Santo virá? Ou que Ele e o Pai virão fazer morada? Já não estavam presentes, afinal? Santo Tomás esclarece que o “ir e vir” de que se fala nesta passagem é uma metáfora tirada do deslocamento espacial para expressar outra verdade: entre as formas de Deus estar presente às coisas, há uma especial, diferente, própria das almas em graça. Por imensidade, potência e essência, Deus está em tudo quanto existe; mas por presença de amizade Ele está somente nos justos.

É o que o Evangelho de hoje esclarece. Aliás, é um pouco estranho que a Liturgia corte o início do Evangelho, que começaria com uma pergunta feita por São Judas Tadeu. Jesus dissera aos Apóstolos: “Se vocês observarem os meus mandamentos, eu vou me manifestar a vocês”, e São Judas, santo humilde, ficou admirado com tal privilégio e perguntou: “Jesus, como é que você vai manifestar-se para nós e não para o mundo?”, como quem dissesse: “Quem sou eu na fila do pão?”. Ou seja: “Eu não sou ninguém! Por que esse privilégio?”. Então Jesus esclarece, quase que repetindo o que Ele já dissera: “Vocês foram preparados no Antigo Testamento para guardar os mandamentos…”.

De fato, ao longo dos séculos, Deus preparou um povo para a vinda de Cristo, pois Deus quer conviver conosco como amigo, em união de amor, num relacionamento de amizade. Essa é a forma nova de Ele estar presente em nós. Deus quer estar conosco não só enquanto Criador, isto é, por imensidade e potência. Assim Ele está presente em tudo: nas pedras, nas cachoeiras, nas flores, no Sol, nos passarinhos etc. Deus quer estar presente em nós também em união de amor, de modo que a nossa vontade e a dele sejam como que uma só, mais unidas do que o esposo à esposa numa só carne. Porque estaremos a Deus num só espírito de amor, o Espírito Santo. Ele é quem une nossa nossa vontade à de Deus.

Eis o projeto divino. O Senhor quer se unir a nós de uma forma fantástica e maravilhosa, por um modo de presença: “Eu virei como o esposo vem buscar a esposa. Eu virei como o esposo vem se unir à esposa”. Pois bem, para Deus estar presente de um modo diferente, somos nós que temos de mudar. É evidente que Deus, sendo perfeitíssimo em si mesmo, não sofre qualquer tipo alteração. Deus é Deus, Deus é amor infinito, eterno e imutável. Logo, o que tem de mudar para Deus estar presente? Nós. Para usar a metáfora do deslocamento, poderíamos inverter os papéis e dizer que Deus não vem até nós, mas nos faz ir até a Ele ou, antes, nos traz Ele mesmo até si.

Como se dá isso? Íamos dizendo que Deus iniciou o processo no Antigo Testamento, ao nos revelar seus mandamentos, preparando-nos assim para essa forma maravilhosa de união revelada no Novo Testamento. Ou seja: não pode haver união de amor sem antes passar pelo Antigo Testamento.

Façamos mais uma comparação. Hoje em dia, os pais querem ser amados pelos filhos, mas não se dão conta do problema que têm em mãos: nunca serão amados de verdade, se não forem primeiro respeitados. Ora, o que costuma acontecer? Os pais não se preocupam em fazer-se respeitar. Quando chega a adolescência, o filho, que até ontem era tão fofinho, passa a amarrar a cara sempre que a mãe ou o pai se negam a fazer suas vontades e caprichos. E como o moleque aprende a reagir às contrariedades? Desrespeitando os pais, xingando-os, criando um caos em casa, quando não parte para agressões físicas. Crendo-se vítimas, os pais então começam a choramingar: “Ah! eu amei tanto o meu filho, mas agora ele só me maltrata…”. É claro, oras. Não o amaram, só o mimaram. Quiseram dar o Novo Testamento sem antes dar o Antigo.

O que é o Antigo Testamento? O Antigo Testamento é, em poucas palavras, o seguinte: “Tenha respeito!”, isto é, obedeça aos Dez Mandamentos. Por quê? Porque antes de haver amor tem de haver respeito. É impossível amar a quem não se respeita. Nenhum filho pode ser sincero ao dizer: “Mamãe, eu te amo” e, ao mesmo tempo, cuspir na cara dela, bater em seu rosto, xingá-la… É evidente o que Jesus disse alguns versículos antes do Evangelho deste domingo: “Aquele que guarda os meus mandamentos, esse é que me ama, e aquele que me ama será amado por meu Pai e eu o amarei e me manifestarei a ele”. Mandamentos em primeiro lugar! Antigo Testamento antes do Novo!

Na prática, é o seguinte: Pare com a sem-vergonhice de ter outros deuses! “Terás um só Deus”. “Ah! mas se eu rezar a Deus e não der certo, aí eu vou apelar para a macumba, vou ali ao centro espírito ou então vou procurar um xamã das almas ou vou usar sei lá que forças cósmicas — cristais, pirâmides, búzios, duendes, anjos cabalísticos”. Pare com isso! “Não terás outros deuses”. Há mais: Trate de ir à Missa aos domingos! Mais ainda: Honre seus pais, não mate e isso inclui não abortar nem usar anticoncepcionais. Não acabou, não: Deixe de ser adúltero, largue de pornografia, de masturbação, de sexo antes do casamento, de “sexo” homossexual! Pare de roubar, de trapacear, de passar a perna e tirar proveito dos outros! Pare de mentir e prejudicar os outros, de inventar enredos, calúnias, falsidades só para se livrar dos problemas! Pare de olhar para a mulher dos outros, pare de buscar nas coisas materiais a sua salvação!

São esses os mandamentos. Tratemos de obedecer a todos. Obedecendo a eles, começamos a respeitar a Deus de verdade. Respeitando a Deus, arrependidos e bem confessados, estamos prontos para ouvir a Cristo e receber sua manifestação. São Judas pergunta: “Jesus, como você vai se manifestar a nós e não ao mundo?”, mas a resposta é óbvia: o mundo não ouve a Deus porque não quer, o mundo vive de barulho e de pecado. Queremos obedecer aos mandamentos? Cortemos a agitação mundana e abramos os ouvidos para Deus. Ele fala, mas baixinho.

É interessante o que diz o Evangelho no versículo 21: “Quem guardar os meus mandamentos…”, e Judas atalha: “Mas o Senhor vai se manifestar a nós?” e Jesus responde só no versículo 23, que é o trecho deste Evangelho: “Se alguém guardar a minha palavra…”. Ele não está mais falando dos mandamentos, está falando de sua palavra. Parece uma repetição, mas não é. No Antigo Testamento, guardavam-se os mandamentos; no Novo Testamento, além dos mandamentos, há que guardar também a palavra, e isso supõe um relacionamento com Deus, quer dizer, vida de oração, de modo que Deus vá se manifestando e a alma, por sua vez, enxergue com a inteligência o que Deus quer e fortaleça a vontade para amar.

E Deus não irá só se manifestar como permanecer em nós como em sua morada. A palavra “morada”, com efeito, conota permanência, estabilidade. É como se Jesus nos dissesse: “Quem medita a palavra de Deus não está somente em estado de graça, mas tem a Deus em si mesmo de forma estável, enraizada, permanente”. Deus vai fazendo morada em nós porque a nossa vontade vai transformando-se, até repousar no lugar em que há a verdadeira paz.

É por isso que no Evangelho deste domingo Jesus nos diz: “Deixo-vos a minha paz, a minha paz vos dou”. Em toda Missa o sacerdote diz: “Senhor Jesus Cristo, que dissestes aos vossos Apóstolos: ‘Eu vos deixo a paz, eu vos dou a minha paz’”. Que paz é essa? É a paz de uma vontade não mais agitada, sempre à procura do verdadeiro bem. Ela já encontrou o seu lugar: é a vontade de Deus. Quando a esposa se une em amor ao esposo, num abraço amoroso, ali há permanência e paz.

É isso o que o Paráclito faz. O Espírito Santo quer pegar o nosso coração e a nossa vontade e “fundi-las” com o coração e a vontade de Deus, de tal forma que tudo queiramos e amemos só o que Ele mesmo quer e ama. Nossa vontade, é claro, não desaparece nem se anula; mas se conforma tanto com a de Deus, que é como se tivéssemos uma só alma. É isso que a vinda do Espírito Santo implica — o Pai e o Filho vem fazer morada, ou seja, Deus, que já está presente, passa a estar conosco ainda de outra forma, modificando-nos a vontade para torná-la semelhante à sua.

Dito tudo isso, vamos partir para a prática. O que precisamos fazer? Tentemos ordenar tudo isso em brevíssimas ideias. Número um: guardar os mandamentos. Na sem-vergonhice do pecado, não vai dar certo. Então obedeça e respeite a Deus, porque, do contrário, de nada adianta falar de mística, querer se unir a Deus e repetir que “Jesus é o esposo de amor”, “eu sou a esposa amorosa”... Ora, se você nem respeita Deus, que é o seu esposo, você é uma mulher adúltera!… Nada de romantismo. Sejamos práticos: é preciso respeitar a Deus.

Não se constrói o segundo andar sem se construir o primeiro, e o primeiro andar, antes do amor, é o respeito: “Não terás outros deuses”. Foi o que Deus fez no Antigo Testamento. No Antigo Testamento, no dia de Pentecostes, Moisés subiu o Monte Sinai e recebeu de Deus as dez tábuas da Lei. (É um dado histórico que vale a pena lembrar. Na Páscoa, os judeus saíram do Egito, atravessaram o Mar Vermelho, no qual morreu afogado o faraó. Durante quarenta dias eles foram andando deserto até chegar ao pé do Sinai. Moisés subiu e, no dia quinquagésimo dia, Deus entregou a Lei a Moisés).

Não há, pois, Novo Testamento sem Antigo: não se pode acolher o Deus de amor e misericórdia sem obedecer aos mandamentos. Em outras palavras, o primeiro Pentecostes precisa ser observado antes de se viver o segundo. Trata-se de observar a lei. Na prática, é arrepender-se, pedir perdão na Confissão, estar em graça e mudar de vida. Feito isso, aí se pode caminhar no Novo Testamento, no qual Jesus quer manifestar-se a nós, o que só acontecerá, por sua vez, se estivermos com Ele em oração, meditando suas palavras.

É o que Jesus diz no Evangelho: “Se alguém me ama, guardará a minha palavra”. Ora, ninguém ama o que não conhece; logo, é necessário tornar-se mais firme na fé, ter vida de oração íntima e de comunhão frequente, porque é assim que se vai conhecendo a Cristo cada vez mais. À medida que realizarmos esses atos de fé, o que irá acontecer? Deus irá modificar nossa vontade, configurando-a à sua vontade, de forma que o Espírito Santo, num novo Pentecostes, venha com o Pai e o Filho morar em nosso coração.

Eis a união com a Trindade. O Paráclito, defensor maravilhoso, vem! Mas esse Pentecostes só acontece para quem tem vida de oração e medita a palavra de Deus. Temos no site um curso recente chamado Direção Espiritual: Aprenda a rezar. Vale a pena fazê-lo e aprender como acontece essa maravilhosa união de vontades com Deus que vem até nós. Na verdade, o que significa a vinda do Espírito Santo? Que nós, modificados pela graça de Deus, estamos agora unidos a Deus de um jeito diferente — como amigos, ou como a esposa unida ao esposo. Esse é o maravilhoso projeto de Deus. Coragem! É isso o que Jesus quer fazer conosco. Vivamos, então, o Evangelho deste domingo e testemunhemos nossa fé!

* * *

V. 21. A condição estabelecida no v. 15 para o envio Espírito Santo, Jesus a relaciona agora com sua própria vinda mística, e acrescenta: Quem me ama será amado por meu Pai, e eu o amarei e (como fruto deste amor) me manifestarei (ἐμφανίσω, representarei clara e perspicuamente) a ele, comunicando-lhe um conhecimento mais profundo a meu respeito; pois o que faz (pratica) a verdade vem para luz (cf. Jo 3,21), isto é, para o conhecimento de Deus e nele progride [1].

V.22s. Judas, ou Tadeu (cf. Mt 13,55; Mc 3,18) ou de Jacó (cf. Lc 6,16), como tivesse ouvido falar muitas vezes da manifestação de Jesus aos discípulos mas não ao mundo (cf. v. 17), não entendeu como essas palavras se coadunavam com a manifestação gloriosa do Messias (cf. At 1,1-6); por isso interroga: Que é feito (gr. τί γέγονεν, lt. quid factum est = qual é a causa por) que te manifestarás a nós e não ao mundo? O mesmo haviam perguntado os irmãos do Senhor (cf. Jo 7,4). — Não sabemos se Jesus respondeu diretamente à pergunta do discípulo; as palavras que seguem, omitida a questão de Judas, não fazem mais do que aprofundar a doutrina já exposta: “Perguntara sobre a manifestação de Cristo, e ouviu sobre o amor e uma morada” (Santo Agostinho). A manifestação dar-se-á somente aos que amam Cristo. E primeiro repete o que disse antes (guardará minha palavra é mais abrangente que guardará meus mandamentos); em seguida, diz que o prêmio deste amor é a inabitação do Pai e do Filho e do Espírito Santo na alma: Nós viremos e faremos junto dele (παρ’ αὐτῷ = ἐν αὐτῷ) a nossa morada (pela graça e por presença íntima e amigável na alma), por certa habitação inefável e invisível, mas real e substancial, cuja figura tinha sido a inabitação de Deus no Templo de Jerusalém (cf. Lv 26,11s) [2].

V. 24. Esclarece em forma negativa a doutrina dos vv. 15 e 21. — E a palavra que escutastes não é minha (dita não só por mim, enquanto homem), mas do Pai, que me enviou.

V. 25. Jesus considera acabado o seu ministério, inclusive em relação aos Apóstolos: Isso é o que vos disse enquanto estava convosco, o que abarca tudo quanto tinha dito aos discípulos em três anos de vida apostólica. Outros, porém, restringem ταῦτα às palavras ditas na Ceia; mas isso é pouco provável. — V. 26. Não obstante, a formação dos Apóstolos (e não da Igreja vindoura) ainda não está completa; sua ação doutrina pessoal requer um complemento; é o que fará o Espírito Santo: o Espírito Paráclito, que o Pai enviará em meu nome, ele, por ser o Espírito da verdade (cf. v. 17), vos ensinará tudo por iluminação interior e inspiração e, além disso, vos recordará (lt. suggeret, gr. ὑπομνήσε = trará à memória) tudo o que vos tiver dito (ἃ εἶπον = o que vos disse) “eu” (acréscimo do texto gr.).

N.B. — 1) Muitos autores opinam que essa promessa tem por destinatários unicamente os Apóstolos, por isso a interpretam assim: “O Espírito Santo vos ensinará o que falta à minha doutrina” (cf. Jo 16,12s), donde concluem que o depósito da revelação encerrou-se no tempo dos Apóstolos. — 2) Para outros, a promessa, como aliás boa parte do conteúdo deste capítulo, é dirigida a toda a Igreja; por isso interpretam vos ensinará tudo como: “Ele vos abrirá o sentido de todas as minhas palavras”. O que se promete, portanto, é a assistência do Espírito Santo não só negativa (para que não erre a Igreja docente na interpretação do depósito da revelação), mas também positiva (para compreender mais a fundo e expor com maior precisão o sentido da doutrina de Cristo). Tal ação do Espírito Santo se vê de modo manifesto na Igreja primitiva, como se pode comprovar pelos Atos dos Apóstolos, também chamado justamente “Evangelho do Espírito Santo”.

Adeus e sede fortes! (v. 27-31). — Jesus põe fim ao colóquio com os mesmos conceitos com que lhe dera início: Não se vos perturbe o ânimo; minha partida é já iminente, mas tende esperança em meu retorno; dai fé ao vosso Mestre. Antes, porém, lhes diz uma palavra de despedida.

V. 27. A paz vos deixo… “A paz” (hebr. שָלֹום, shalom), entre os hebreus, era fórmula precativa de saudação e despedida; por isso, a paz vos deixo expressa o voto de quem parte pela felicidade e incolumidade de quem fica. Cristo, porém, acrescenta: a minha paz vos dou, i.e., não só vo-la desejo ou a peço para vós, senão que vos confiro de fato a minha paz: segundo alguns, da qual eu mesmo gozo; ou: da qual sou Senhor e princípio, paz nascida de vossa união comigo, fonte abundante de salvação e de todos os bens: amizade com Deus, segurança interior, concórdia etc. — Não como o mundo dá eu vos dou, pois o mundo coloca a paz sobretudo no gozo externo e garantido de bens materiais, enquanto a minha paz é interna, perfeita, divina [3]. — Não se perturbe o vosso coração, nem dê lugar (δειλιάτω) ao desalento; antes, pelo contrário, enfrentei de bom ânimo as adversidades.

V. 28. Ouvistes o que eu vos disse (cf. v. 3 e 18): Vou e venho a vós; se me amásseis, decerto vos alegraríeis porque vou para o Pai, i.e., se me amásseis de verdade, se fôsseis realmente solícitos por mim, não sofreríeis de tal modo por minha partida, porque muito me convém voltar para o Pai. Pois o Pai é maior que eu (subentende-se: e por isso hei de ser glorificado por Ele). Dizendo isso, Jesus se refere a si mesmo como Verbo encarnado e relativamente à humanidade assunta, segundo a qual irá voltar para o Pai, de quem nunca se apartara segundo a divindade [4].

V. 29. E agora vos disse (o que ouvistes sobre minha partida [morte]) antes que aconteça, para que… creiais (tenhais em mim fé ainda mais perfeita). — V. 30a. Já não direi muito convosco (urge o tempo de nos separarmos), pois vem o príncipe (ἄρχων, chefe) deste mundo (o diabo, cf. Jo 12,31), ou por si mesmos, ou na pessoa de seus filhos: Judas, os ministros dos sacerdotes etc.; e sobre mim não tem nada (nem direito nem poder); mas (eu me ofereço livremente a meus inimigos) para que conheça o mundo que amo o Pai, e assim como o Pai me mandou, assim o faço eu. Logo, o amor e a obediência ao Pai são para Cristo o momento de se oferecer livremente à morte (cf. Jo 4,34; 8,55; 10,18; Fp 2,8; Hb 5,8).

Notas

  1. “Há uma iluminação vinculada a cada boa obra que se faz. A observância fiel dos mandamentos dá sobre Cristo e sua doutrina um conhecimento íntimo e pessoal, que introduz cada vez mais profundamente no mistério divino” (J. Huby).
  2. “Eis que nos santos, com o Pai e o Filho, faz o Espírito também sua morada, e isso intimamente, como Deus em seu templo. Deus Trindade, Pai e Filho e Espírito Santo, vêm a nós, quando vamos a eles; vêm a nós socorrendo-nos, enquanto a eles vamos obedecendo-lhes; vêm a nós iluminando-nos, a eles vamos contemplando-os; vêm preenchendo-nos, vamos desejando-os; para que tenhamos deles visão interna, e não externa, e tenham eles em nós morada eterna, e não transitória” (Santo Agostinho). — Daí se segue que “Deus dá ao justo não somente a sua graça, mas a si mesmo, de sorte que Deus Pai, Filho e Espírito Santo habita realmente na alma do justo como em seu templo, a enriquece com sua presença e a cumula de seus dons” (Cornélio a Lapide).
  3. É conhecida a belíssima definição de paz proposta por Agostinho: “Serenidade de mente, tranquilidade de alma, simplicidade de coração, vínculo de amor, união na caridade” (De civ. Dei XIX, 13).
  4. Na época do arianismo, essa passagem era frequentemente invocada pelos hereges, como se Jesus ensinasse ter outra natureza, que não a do Pai. Para alguns Padres (entre eles, Santo Atanásio), Cristo estaria referindo-se a si mesmo como Deus, mas relativamente à sua origem do Pai por geração. Contudo, a grandíssima maioria dos autores defende a interpretação exposta no texto.
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