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Christo Nihil Præponere"A nada dar mais valor do que a Cristo"
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Texto do episódio
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As Sagradas Escrituras servem-se muitas vezes de conceitos e expressões que, para a mentalidade de hoje, tornaram-se inconvenientes e quase incompreensíveis. É o que se passa, por exemplo, com certos trechos da Bíblia que se referem à condição de escravo em que muitas personagens tanto do Antigo quanto do Novo Testamento se põem em relação a Deus. Ora, por causa do mal-estar que a palavra "escravo" costuma gerar no ânimo de não poucos leitores, algumas traduções modernas têm sistematicamente preferido substituí-la por termos mais ou menos equivalentes, como "servo" ou "empregado", sem se preocuparem, porém, com o autêntico sentido do texto original.

Mas será essa a solução adequada? Pensemos por um instante no momento, vivamente narrado pelo Evangelista São Lucas, em que o Arcanjo Gabriel anuncia a encarnação do Filho de Deus a Maria. A resposta da Santíssima Virgem decerto nos pareceria estranha, e até mesmo absurda, se em vez de escrava, ela se chamasse "a empregada do Senhor". O seu sim generoso, com efeito, supõe uma entrega total e sem reservas à vontade divina, e os termos com que a Mãe de Nosso Senhor manifesta sua submissão aos desígnios de Deus dificilmente podem dar margem a dúvidas [1]. Qual então a dificuldade por trás das novas traduções?

Vejamos, antes de mais, o que os dicionários nos têm a dizer. Há em grego duas palavras correspondentes à noção geral de servo: (1) δούλος (doulos), derivado de um verbo que indica a ação de "amarrar" (δέω), significa propriamente escravo, ou seja, aquele que está atado a outro e lhe pertence a título de propriedade; e (2) διάκονος (diákonos), atribuído àquele a quem compete alguma função ou ministério. Ora, a quase totalidade das passagens do Novo Testamento em que se fala de escravidão ou da condição de escravo emprega o termo δούλος, e não διάκονος. Se consultarmos a Septuaginta, veremos que, de fato, a resposta da Virgem foi: "ἰδοὺ ἡ δούλη [doulé] κυρίου" (Lc 1, 38). A tradução mais fiel ao sentido de δούλη seria, pois, escrava. O mesmo problema ocorre nas parábolas em que Cristo fala da recompensa devida a bons e maus servos (cf. Mt 24, 45-51; 25, 14-30), que em algumas traduções são apresentados como "empregados" ou "assalariados" (μίσθιοι, místhioi), adjetivos que, nos originais gregos, ocorrem apenas três vezes ao longo do Novo Testamento [2].

A dificuldade aqui, de um ponto de vista geral, se deve em parte ao politicamente correto; a nossa sociedade, se bem tenha construído formas novas de escravidão, não compreende e não quer compreender o que é ser escravo de Deus. Para os cristãos, o problema desta cegueira generalizada consiste em que, se nos recusamos a compreender o que é ser um escravo, não podemos vir a entender o que é um senhor (κύριος, kýrios). Essas duas palavras como que se determinam mutuamente, e uma não pode ser apreendida em toda a profundidade de seu sentido e na abrangência de suas implicações para a vida espiritual do fiel sem, por fim, remeter-se à outra.

Ora, a noção de escravidão que nós brasileiros temos está muito marcada pelo modo com que o escravismo negro foi aqui praticado durante o período colonial de nossa história até a época da abolição. Por isso, é comum que, de modo simplicista e globalizante, tentemos reduzir à realidade brasileira qualquer forma de dependência senhoril caracterizada como escravidão. Evidentemente, não é possível, sem distorcer os fatos, ler o escravismo, tal como foi concebido e vivido pelo povo hebreu, única e exclusivamente sob a modalidade de trabalho escravo que o Brasil conheceu. Isso não quer dizer, é óbvio, que o regime escravocrata, por si só, seja legítimo e, em dado momento, justificável à luz do direito específico a cada povo; é preciso ter em mente, no entanto, que a escravidão se revestiu de diferentes contornos ao longo da história conforme praticado por este ou aquele grupamento social e, por essa razão, assumiu também significações diversas.

Estas diferenças se tornam ainda mais evidentes se levarmos em conta o valor que a escravidão teve para os hebreus, cuja experiência no Egito e no exílio babilônico serviu para situar a condição de escravo no quadro da submissão a Yahweh: os judeus, com efeito, viveram sob o signo perpétuo da misericórdia de Deus pelo Seu povo e da esperança, sobretudo a partir do movimento profético, da redenção final de Israel [3]. Não é de estranhar, pois, que essa consciência de ser a nação eleita e cativa de seu Senhor tenha repercutido na estrutura social hebraica e se plasmado, por assim dizer, na Lei judaica, que, diferentemente das demais legislações do Oriente Próximo, simbolizava um pacto de aliança selado entre Yahweh e Israel. A população judaica, nesse sentido, além de ter contado com um número consideravelmente pequeno de escravos, mesmo durante a Monarquia, não admitia sem reservas a escravidão de nacionais e, dentre os escravos provenientes de povos estrangeiros, os ye līdē bayt (isto é, os "nascidos em casa") parecem ter sido bastante ligados ao seu senhor e vivido em condições no mínimo toleráveis [4].

Assim, a consciência de pertencer a um povo redimido por Deus, quer dizer, comprado de volta (redemptus) por Aquele que tem direito a essa posse, é uma realidade que Deus quis fosse preservada nas Sagradas Escrituras para que, na plenitude da Nova Aliança, os cristãos sempre se recordassem de que não pertencem a si próprios, mas, pelo contrário, foram comprados por alto preço a fim de que, feitos escravos de Cristo, não se tornassem escravos do pecado (cf. 1 Cor 7, 6, 19-20; 7, 23 e Rm 6, 20-22). Tendo por ícone a perfeitíssima obediência de Maria, a escravidão cristã se expressa na submissão dócil de nossa vontade à vontade de Nosso Senhor, pois quando a alma renuncia a si mesma fazendo apenas o que é agradável a Deus, tudo se lhe torna doce, ela não se orgulha de seus sucessos passageiros nem tampouco se entristece com os fracassos recorrentes, porque "sabe que tudo vem da mesma mão de Deus." [5] O paradoxo dessa escravidão que liberta, dessa sujeição que nos faz senhores, lança raízes na "autoridade serviçal" com que Cristo, humilde e glorioso, empresta àqueles a quem domina a própria grandeza [6]; por isso se pode dizer que servire Deo regnare est, servir a Deus é reinar, pois fomos feitos co-herdeiros dos tesouros preparados para aqueles que O amam (cf. Rm 8, 16-17; 1 Cor 2, 9).

A escravidão a Deus nos deve conduzir a um relacionamento cada vez mais estreito e confiante com Nosso Senhor Jesus Cristo, que, tendo-nos dado a conhecer tudo quanto ouviu do Pai, convida todos os súditos do Reino a participar de Sua régia amizade (cf. Jo 15, 15).

Referências

  1. Cf. comentários a Lc 1, 38 da SAGRADA BÍBLIA, Santos Evangelios. Traduzida e comentada pela Faculdade Teologia da Universidade de Navarra. Pamplona: EUNSA, 1983, p. 730; v. ESCRIVÁ, Josemaria, É Cristo que Passa, n. 173.
  2. Cf. ELIADE, Mircea. História das Crenças e das Ideias Religiosas. Trad. port. de Roberto Corte de Lacerda. Rio de Janeiro: Zahar, 2011, vol. 2, pp. 220-1.
  3. Cf. GARELLI, P.; NIKIPROWETZKY, V. O Oriente Próximo: Impérios Mesopotâmicos e Israel. Trad. port. de Emanuel O. Araújo. São Paulo: Pinoneira (EDUSP), 1982, pp. 252 e 255.
  4. AFONSO DE LIGÓRIO, A Prática do Amor a Jesus Cristo, c. XIII. Trad. port. de Gervásio F. dos Anjos, C.SS.R. 7.ª ed., São Paulo: Santuário, 1996, p. 169.
  5. Cf. SCHMAUS, Michael. A Essência do Cristianismo. Trad. port. de Maria G. Hamrol. 2.ª ed., Lisboa: Aster, 1966, p. 143; v. ESCRIVÁ, Josemaria, Amigos de Deus, nn. 29-31.

Recomendações

LEHODEY, Vital. El Santo Abandono. 7.ª ed., Madrid: Rialp, 1996. Há disponível um resumo, também em espanhol, que se pode ler aqui.

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