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O “mecanismo” do ato de fé

Deus se oculta, como ouro puríssimo e reluzente, debaixo dos semblantes prateados e mais opacos da fé. É preciso buscá-lo além das aparências e pedir que Ele se digne mostrar-nos um pouco da sua infinita beleza. Entenda como se dá um ato de fé e que relação ele guarda com as fórmulas dogmáticas que a Igreja nos propõe.

Texto do episódio
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A direção espiritual de hoje pretende explicitar como se dá o que em episódios passados denominamos ato de fé, que é precisamente o que devemos buscar em nossas orações. Antes de tudo, é preciso saber que o ato de fé depende, em primeiro lugar, das fórmulas dogmáticas com que a Igreja expõe e transmite o patrimônio doutrinal do depósito da fé confiado por Jesus Cristo ao Magistério da Igreja.

As fórmulas dogmáticas são expressões linguísticas que sintetizam aquelas verdades (chamadas dogmas) que foram reveladas por Deus, seja na S. Escritura, seja através da Tradição oral, e que o Magistério eclesiástico propõe aos fiéis como objeto de fé divina, garantindo pelo carisma da infalibilidade que tudo aquilo em que cremos os católicos é realmente palavra de Deus.

As fórmulas dogmáticas encontram-se espalhadas em diferentes documentos magisteriais de distintas épocas históricas, mas é sobretudo nos catecismos que a Igreja costuma organizá-los de modo sistemático, a fim de apresentar mais facilmente quais são as principais verdades da fé cristã, bem como os nexos de dependência entre elas. Assim, por exemplo, o atual catecismo recorda, compendiando a doutrina do IV Concílio Ecumênico, celebrado em Calcedônia no ano de 451, que “Jesus Cristo tem duas naturezas, a divina e a humana, não confundidas, mas unidas na única Pessoa do Filho de Deus” (n. 481).

Com essa breve formulação, a Igreja ensina e propõe como verdade revelada que o Verbo divino não assumiu uma pessoa humana, mas uma natureza humana, com todas as partes (corpo e alma racional) que a integram. Por isso, não se poderia dizer que tem fé católica quem pensasse, por exemplo, que Jesus Cristo é apenas um modelo de conduta ou um profeta entre outros, um “espírito” evoluído ou uma espécie de “avatar” da divindade. Nesse sentido, as fórmulas dogmáticas constituem como que o “esqueleto” daquilo em que devemos crer e servem, deste modo, como critério seguro para discernir se o que cremos está ou não em consonância com o que ensina a Igreja Católica.

Em segundo lugar, as fórmulas dogmáticas, por expressarem verdades superiores às nossas capacidades naturais de conhecimento, abrem-nos a porta para os mistérios da vida e dos desígnios de Deus. Com efeito, o que pelas fórmulas dogmáticas conhecemos são verdades de cuja existência nós nada saberíamos se Deus não as tivesse revelado, e cuja natureza íntima permanece incompreensível para o nosso entendimento mesmo depois de sua revelação (tal é o caso, por exemplo, da dualidade de naturezas na única pessoa do Verbo encarnado, da unidade de essência entre as três Pessoas da SS. Trindade, da presença real de Cristo sob as espécies eucarísticas etc.). Trata-se de mistérios sobrenaturais em sentido estrito, uma vez que excedem por si mesmos as forças de qualquer inteligência criada: sabemos com certeza que existem, porque Deus, verdade infalível, os revelou; mas não sabemos o que são ou em que consistem, a não ser por certas analogias aproximativas com a ordem natural (podemos, por exemplo, ter alguma ideia do que é a vida sobrenatural da alma em estado de graça se a comparamos com o que sabemos acerca da vida natural de um corpo saudável).

Por isso, o único ato que cabe à nossa inteligência diante das verdades divinas é o que a Igreja chama “obediência da fé” (obsequium fidei), que não é mais do que assentimento do intelecto, sob a moção da vontade e com o auxílio da graça, ao que Deus nos revelou precisamente porque Ele, que não pode enganar-se nem nos enganar, no-lo revelou. “O fundamento lógico desse ato”, portanto, “não é uma razão intrínseca à verdade conhecida nem um argumento elaborado pelo nosso entendimento, mas unicamente a autoridade de Deus revelante, em virtude da qual a nossa mente adere à verdade proposta” [1].

Temos aqui, ao menos do ponto de vista psicológico, os passos fundamentais de todo processo de conversão, isto é, do caminho pelo qual a graça começa a atuar no homem (em sua inteligência e vontade) e o leva a aceitar o que Deus nos quis comunicar, devido não a motivos humanos, mas à autoridade do próprio Deus que revela. Esse primeiro obsequium fidei corresponde ao que poderíamos chamar ato de fé “inicial” — ao primeiro “sim, eu creio” — que nos converte de fato em fiéis católicos, em portadores da virtude sobrenatural da fé.

Uma coisa, porém, é a fé que Deus infunde em nossas almas ao modo de um hábito, e outra é esta mesma fé exercida em ato, assim como uma coisa é o amor que temos a uma pessoa, de um lado, e outra é a realização deste amor em obras concretas, de outro. É ao exercício efetivo da fé por meio da oração e da meditação que chamamos propriamente ato de fé. Mas como, afinal de contas, a nossa fé pode pôr-se em ato durante uma oração? S. João da Cruz responde à pergunta com uma comparação ao mesmo tempo profunda e lírica [2].

Diz o Doutor Místico que os artigos e proposições da fé, articuladas mediante as fórmulas dogmáticas, podem comparar-se com a prata que reveste exteriormente um belíssimo cálice de ouro. As verdades que estão contidas nestas fórmulas são como ouro encoberto, porque o que vemos agora, no claro-escuro da fé, é a aparência prateada que oculta a riqueza interior do cálice, ao passo que na vida eterna, quando caírem todos os véus, poderemos enfim contemplar a olho nu a beleza e o esplendor do ouro, quer dizer, das realidades para a qual apontavam, e que de algum modo escondiam, essas fórmulas humanas.

No entanto, já nesta vida, durante a nossa oração pessoal, Deus nos concede entrever um pouco desse ouro puro que se esconde atrás da “prata da fé”. Quando meditamos sobre as verdades sobrenaturais, procurando aprofundar-nos nas riquezas contidas nos artigos e proposições que as enunciam, o Senhor nos permite, se Ele assim for servido, enxergar algo da profundidade insondável dos seus divinos mistérios. E como essas verdades se referem, em último termo, à própria intimidade divina, segue-se que é o próprio Deus o que a fé nos comunica, ainda que encoberto sob os semblantes prateados da fé. Por isso, quando na oração a fé se atua e deixa resplandecer um pouco das verdades que ela encobre, é o próprio Deus que de alguma forma se deixa ver e contemplar a si mesmo, tal como é possível nesta vida.

E como nada disso seria possível sem uma intervenção direta da graça, já que sem um auxílio sobrenatural não poderíamos nunca ver e saborear o que supera por si mesmo nossas limitações naturais, segue-se que todo ato de fé é essencialmente santificador e, por isso mesmo, nos assemelha cada vez mais Àquele a quem buscamos na oração e, buscando, contemplamos por graça e misericórdia divinas.

Referências

  1. F. Vizmanos e I. Ruidor, Teología fundamental para seglares. Madrid: BAC, 1963, p. 31, n. 33.
  2. S. João da Cruz, Cântico espiritual, c. 12, decl.
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