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Texto do episódio
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Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João (Jo 2, 1-11)

Naquele tempo, houve um casamento em Caná da Galileia. A mãe de Jesus estava presente. Também Jesus e seus discípulos tinham sido convidados para o casamento. Como o vinho veio a faltar, a mãe de Jesus lhe disse: “Eles não têm mais vinho”. Jesus respondeu-lhe: “Mulher, por que dizes isto a mim? Minha hora ainda não chegou”.

Sua mãe disse aos que estavam servindo: “Fazei o que ele vos disser”.

Estavam seis talhas de pedra colocadas aí para a purificação que os judeus costumam fazer. Em cada uma delas cabiam mais ou menos cem litros.

Jesus disse aos que estavam servindo: “Enchei as talhas de água”. Encheram-nas até a boca. Jesus disse: “Agora tirai e levai ao mestre-sala”. E eles levaram.

O mestre-sala experimentou a água, que se tinha transformado em vinho. Ele não sabia de onde vinha, mas os que estavam servindo sabiam, pois eram eles que tinham tirado a água.

O mestre-sala chamou então o noivo e lhe disse: “Todo mundo serve primeiro o vinho melhor e, quando os convidados já estão embriagados, serve o vinho menos bom. Mas tu guardaste o vinho bom até agora!”

Este foi o início dos sinais de Jesus. Ele o realizou em Caná da Galileia e manifestou a sua glória, e seus discípulos creram nele.


O Evangelho que a Igreja proclama neste II Domingo do Tempo Comum trata-se do famoso relato das bodas de Caná: Jesus manifesta todo o seu amor por nós realizando esse primeiro sinal, o primeiro milagre que Jesus realiza, que é a transformação da água em vinho. Ele faz isso pela intercessão da Toda Santa Mãe de Deus, Nossa Senhora. É interessante nós lermos essa passagem do Evangelho e enxergarmos o papel que Nossa Senhora tem na realidade da nossa salvação. Veja, o Evangelho é muito simples e, inclusive, você já o conhece. Ele começa narrando que “houve um casamento em Caná da Galiléia”, e, de forma bastante interessante, o protagonista do Evangelho não parece ser Jesus, mas sim Nossa Senhora. São João começa dizendo que “a Mãe de Jesus estava presente” e, como se ele tivesse se lembrado de um detalhe, “Jesus também estava lá”. Ou seja, ele começa dessa maneira.

Veja as palavras. Ele diz assim: “Naquele tempo, houve um casamento em Caná da Galiléia. A Mãe de Jesus estava presente. Jesus e seus discípulos também tinham sido convidados para o casamento”, ou seja, Maria está no centro da realidade desse casamento, e Jesus e os discípulos parecem ser atores coadjuvantes dentro de toda a realidade. O que acontece é que, dentro da dinâmica de uma festa de casamento no Oriente Médio, na época de Jesus, o casamento durava vários dias. Não era simplesmente como a gente faz hoje: marca na igreja, vai lá e faz o casamento. Não. As pessoas vinham de longe, então era responsabilidade dos noivos dar de comer e beber a elas durante os dias em que estavam lá reunidas para celebrar o casamento. É evidente que isso significava uma despesa muito grande.

Acontece que, nesse itinerário de casamento, aconteceu um desastre, ou seja, calcularam mal a quantidade de vinho que os convidados iriam consumir, e o vinho acabou. Bom, qualquer um sabe: acabou o vinho, acabou a festa. Ou seja, como vai fazer a festa agora “no seco”? Acabou o vinho, acabou a alegria. (É interessante a gente enxergar que a atitude da Igreja Católica com relação à bebida nunca foi uma atitude puritana, ou seja, o vinho “lætificat cor hominis”, alegra o coração do homem. O pecado não é tomar vinho, o pecado é tomar o vinho a tal ponto que você perca a sua lucidez, perca o controle do que está fazendo. As pessoas têm de entender que a Igreja Católica não é contrária ao prazer. É contrária ao prazer buscado por ele mesmo, como se aquilo fosse a fonte da felicidade.)

Feita essa observação, retomemos o relato. Vemos que Nossa Senhora nota a necessidade daquele casal. Ela mostra o quanto de fato é mulher, ou seja, ela é a mulher que percebe, que vê as coisas ao seu redor. Nisso está um pouco como a missão da mulher na família: a mãe tem essa missão de ser mais sensível, de captar os problemas da família. Nesse sentido, a mulher lidera o homem, ou seja, ela lidera no sentido de que ela capta os problemas, ela vai e coloca aqueles problemas que captou para o homem. Aí chega a hora de o homem liderar: o homem vai resolver os problemas. Ele diz: “Vamos resolver aqui primeiro, depois tal coisa”.

É interessante nós notarmos que, dentro de uma família cristã, essa realidade é uma complementariedade bastante rica. Muita gente às vezes diz assim: “Vocês, católicos tradicionais, vocês querem colocar a mulher num papel subalterno, porque o homem é a ‘cabeça’ da família, e a mulher só tem de obedecer e calar a boca!” Não é verdade. O homem é, de fato, a cabeça da família. É ele quem lidera, mas não quer dizer que a mulher não tenha o seu papel, importantíssimo: é ela quem passa o dia, nota as dificuldades das crianças, os problemas da casa, e é ela quem vai vendo isso tudo e traz essa realidade para a solução dos problemas, que o homem irá oferecer.

Maria, então, percebe os problemas e leva para Jesus os problemas a serem resolvidos. É muito interessante essa dinâmica. É como se ela estivesse numa posição de maior empatia, ou seja, a Virgem Santíssima, por ser mulher, por ser Mãe, por ser esse Coração atento às necessidades dos seus filhos, é ela quem leva para Jesus as nossas necessidades. Você vai dizer assim: “Padre, pelo amor de Deus… Jesus é Deus, e se Jesus é Deus, Jesus sabe muito mais do que Nossa Senhora. Jesus vê muito mais do que Nossa Senhora”. Sim, é verdade; mas a beleza do caminho de salvação que Deus criou para nós está exatamente no fato de que Deus podia fazer tudo sozinho, e ele não quer fazer tudo sozinho. Quer fazer conosco. Quer colocar pessoas nesse caminho de salvação.

Por exemplo, Jesus podia dar um jeito de que as pessoas nascessem já com o conhecimento do Evangelho infuso. Ele não podia fazer isso? Podia, mas não faz isso. Ele diz: “Ide por todo o mundo e pregai o Evangelho”, por isso precisa haver um Padre Paulo, precisa haver um programa na rádio, precisa haver pregações, retiros, missionários, reflexões, escolas de teologia… Por quê? Porque Deus quer que nós participemos desse processo de salvação. Assim também Deus sabe perfeitamente do que nós precisamos. Antes que a oração brote nos nossos lábios, Deus já a conhece, Deus já sabe perfeitamente; mas ele quer que suas criaturas participem desse caminho de salvação e, enquanto a nossa participação é limitada, ou seja, a participação do Padre Paulo no caminho de salvação de uma pessoa (muito bem, eu posso ter contribuído para alguma coisa, mas é uma coisa limitada; a participação de Santa Teresinha na salvação de uma pessoa, a participação de um outro santo, Santo Antônio, São Francisco, São João Bosco, assim por diante), enquanto a participação dos vários membros da Igreja na salvação é uma coisa limitada, a participação da Santa Virgem é universal.

É uma coisa importante a gente se dar conta disso. Você que é católico tem de entender que a nossa devoção a Nossa Senhora não é um negócio assim: “Ah, é gosto”. Um gosta de sorvete, outro gosta de torta, outros gostam de doces em compota, outros gostam de outra coisa: cada gosto é um gosto… Acontece o seguinte: a devoção a Nossa Senhora não é uma questão de gosto; a devoção a Nossa Senhora é uma realidade universal porque a salvação, que é Jesus Cristo, nos veio através dela. Você pode falar muito de todos os outros santos, mas a Virgem Maria é a única que pode dizer: “Deus é meu Filho. Eu o gerei na história. A salvação veio ao mundo por mim, veio pelo meu sim”. Ela realizou isso.

Deus podia ter feito de outra maneira? Podia, mas não fez. Ele quis fazer com ela. Veja, Deus, com seu projeto de amor, Deus onipotente, envia um anjo a uma menina na Galiléia para pedir a ela a permissão para que a salvação entre no mundo. Gente, isso não é uma coisa fantástica? Não é algo que supera nossa compreensão? Não é um mistério belíssimo do amor de Deus? Pois é. Dentro da casa de Deus, que é a Igreja, Maria tem essa função materna, essa função materna que está expressa aqui nas bodas de Caná. A Virgem Santíssima está mostrando que Deus deu a ela uma missão de perceber nossos problemas. Ela, de fato, tem uma compaixão, uma empatia conosco e ela apresenta a Deus nossas necessidades.

Nós temos de ver aqui que a Virgem Maria não é somente uma intercessora. Se você lê o evangelho das bodas de Caná e diz que ele fala da intercessão da Virgem Maria, é verdade, mas é pouco. É mais do que isso. Ela não tem somente uma intercessão, ela tem um papel salvífico porque ela notou uma dificuldade nesse casamento que nem os noivos tinham notado. Ela vê a necessidade e a apresenta a Jesus. Então, quando você espiritualmente tem devoção a Nossa Senhora, sabe qual é a melhor atitude que você pode ter? É chegar e dizer: “Minha Mãe, eu nem sei do que estou precisando, mas a Senhora está vendo. A Senhora tem um olhar, e eu confio, eu recorro, eu me coloco debaixo desse seu olhar”.

É importante a gente notar isso: que essa fé que a Igreja tem na intervenção salvadora de Nossa Senhora é algo que está presente na Igreja desde o princípio. Deixe-me falar para vocês de uma antiga oração da Igreja que está na nossa liturgia hoje, mas ela é muito mais antiga do que as pessoas suspeitam. Não sei se você já ouviu aquela oração: “Sub tuum prææsidium”. É uma oração em latim: “Sub tuum praesidium confugimus, sancta Dei Genetrix”, “Debaixo de vossa proteção nos refugiamos, Santa Mãe de Deus”. Essa oração é uma oração antiquíssima da Virgem Maria, e sabemos que está presente na Igreja pelo menos desde o terceiro século. Terceiro século! Gente, quer dizer o seguinte: ano duzentos e alguma coisinha; talvez até segundo século.

Como sabemos disso? Porque existe um papiro egípcio, e os estudantes e os estudiosos de paleografia dizem que esse papiro, esse manuscrito com a oração “Debaixo de vossa proteção nos refugiamos, Santa Mãe de Deus” não é mais recente do que o terceiro século, ou seja, é uma coisa assim, é certamente do terceiro século para trás. Se ele for novo, é do terceiro século; talvez seja do segundo. O que essa oração diz? O texto é um texto que está em grego, do Egito antigo, na época em que o Egito não falava árabe, mas grego. Ele diz assim: “Debaixo de tua compaixão nos refugiamos, Santa Mãe de Deus”.

A palavra grega que está no original é εὐσπλαγχνίαν, que quer dizer o seguinte: um coração bom, as vísceras boas. Ou seja, uma misericórdia: “Debaixo dessa misericórdia”. Nossa Senhora tem um coração bom! Vejam como a devoção ao Imaculado Coração de Maria é tão antiga quanto a Igreja. Ou seja: “Debaixo do cuidado do teu coração nós nos refugiamos, Santa Mãe de Deus”. Quer dizer o seguinte: a atitude do filho que confia na mãe. Eu não sei o que eu tenho, mas a minha mãe sabe. Eu não sei qual é a solução, mas a minha mãe sabe, e o filho confia. Se mamãe está tranquila, está tudo bem. Essa atitude é a atitude verdadeiramente católica com relação a Nossa Senhora.

Aqui se reconhece não somente um poder de intercessão da Virgem Maria, mas se reconhece um poder salvífico nela. Por quê? Porque o cristão católico, desde o início da era apostólica, se refugia na Santa Mãe de Deus. Quantas e quantas vezes a gente reza e diz assim: “Ó minha Mãe, coloca-me debaixo do teu manto sagrado”. Aquele refúgio, aquelas pinturas medievais em que Nossa Senhora, com o seu manto amplo, acolhe uma multidão de filhos. Debaixo do seu manto materno! É isso o que está aqui desde o início da Igreja. Ou seja, “debaixo” (Ὑπὸ τὴν σὴν εὐσπλαγχνίαν). É debaixo desse manto, debaixo desse coração, desse coração bom, dessas vísceras de misericórdia de Nossa Senhora que nós nos refugiamos (καταφεύγομεν), “refugiamos debaixo” (κατα). A gente foge e fica embaixo, como a criança que se refugia debaixo do manto sagrado da Virgem Maria.

A Igreja desde o início reconhece esse poder de Nossa Senhora, um poder que ela tem de nos proteger, e a gente vê aqui que essa proteção é, evidentemente, uma expressão do amor de Deus. Quem nos protege? É Deus, claro. Quem sabe de nossas necessidades? É Deus, claro. Quem tem compaixão de nós? É Deus, claro. Mas Deus, sabendo que nós, que fomos picados pela serpente do pecado original, podemos colocar em dúvida o seu amor, Deus nos dá um rosto materno, Deus nos dá um Coração de Mãe para ser expressão do seu amor. Então, nessa página do Evangelho, há aquele olhar observador da Virgem Maria.

Gente, isso é de uma consolação espiritual, isso dá uma tal certeza, isso nos capacita para um tal abandono, que essa página do Evangelho é verdadeiramente salvífica! Você sabe que você tem necessidades que nem sequer enxerga, mas a Virgem Maria enxerga, e você confia nela e você se refugia debaixo do olhar materno, debaixo desse Coração bom, dessas vísceras de misericórdia. É lá o meu refúgio, é lá o meu esconderijo. O que você está passando na sua vida? Quais são as dificuldades que está tendo de enfrentar? O que está tirando o seu sono durante a noite? O que está fazendo você ficar ansioso? Quem sabe você está precisando tomar ansiolítico? Ou, então, não apelou ainda para isso, mas está a toda hora tomando maracujá ou calmante natural, porque está agitado. Por que você está chorando à toa? Você, de repente, está conversando com a pessoa e segurando aquele choro? Por que está preocupado, ansioso? Talvez nem você saiba.

Mas existe um olhar que sabe. Deixe Nossa Senhora passear dentro da casa do seu coração. Ela vai notar e vai dizer para Jesus: “Eles não têm mais vinho”. “Debaixo de vossa proteção nos refugiamos, Santa Mãe de Deus”, essa realidade da Nossa Mãe bendita que é instrumento de salvação para nós! Como um bom católico, tenha muita devoção a esse Coração Imaculado de Maria, a essas vísceras de misericórdia desse Coração bom da Virgem Maria, e se refugie lá. É claro que ela, como uma boa Mãe, vai também dizer para você: “Olhai e fazei tudo o que ele vos disser”. Ela vai dizer para você: “Meu filho, seja obediente a Jesus”.

É claro que existe uma contrapartida do nosso lado, existe algo que precisamos fazer, mas até aqui podemos e devemos confiar nela e dizer: “Mãe, se eu não estiver ouvindo Jesus direito, a Senhora me ajude a entender o que ele está querendo de mim, me ajude a entender o que ele está pedindo! Eu quero obedecer a Jesus”. Ela nos ajuda, ela vai amansando o nosso coração rebelde para obedecer mais a Jesus, para fazer mais a vontade de Jesus, para não seguir tanto os nossos caprichos, para seguir verdadeiramente a vontade de Deus.

Então virá um vinho novo, um vinho novo que é a nossa capacidade nova de amar, uma devoção maior, uma entrega maior, uma generosidade em nós nos voltarmos para Deus. Esse é o segredo daquilo que os santos nos ensinam da verdadeira devoção a Nossa Senhora. O que é essa coisa de a gente se “consagrar” a Nossa Senhora, se entregar a Nossa Senhora, confiar em Nossa Senhora? É um caminho de Deus, um dom de Deus, onde ela sabe de nossas necessidades, e então nós nos abrimos para que ela nos ajude e nos diga o que Jesus espera de nós, para nos abandonarmos, nos entregarmos completamente à divina Providência e nos conformarmos com a vontade de Deus.

Meus queridos, eu quero ser bem concreto na conclusão dessa nossa breve reflexão e dizer para você o seguinte: vá para Nossa Senhora com grande devoção. Não ache que a devoção a Nossa Senhora é uma coisa supérflua, é uma coisa para gente menos evoluída. “Eu sou um místico, um grande místico, então eu vou direto a Deus. Não preciso de Nossa Senhora”. Não, não é isso. Nós temos em Nossa Senhora o caminho para a nossa grande união com Deus. O evangelista São João, grande místico que reclinou sua cabeça no peito de Jesus na Última Ceia, começa o Evangelho de Jesus com Nossa Senhora nas bodas de Caná e termina o Evangelho com Nossa Senhora sendo entregue a ele aos pés da cruz.

Você quer um caminho de grande santidade e intimidade com Deus? Vá a Nossa Senhora, e o caminho é certo, porque é ela quem nos conduz a Jesus. É uma verdade de fé que atravessa os séculos da Igreja. Não tenha dúvida, não queira inventar um caminho seu. Siga o caminho dos santos. Todos os grandes santos eram marianos, grandes filhos da Virgem Maria, essa que é a mulher prometida desde o Gênesis e que aparece vestida de sol no Apocalipse. É essa a mulher que dialoga com Jesus no evangelho das bodas de Caná e que, na sua vida, você concretamente encontrará como refúgio e proteção. — Deus abençoe você. Em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Amém. 

 

Apêndice [1]

A Beatíssima Virgem é não só nossa Corredentora, mas também Dispensadora de todas as graças. A ela, portanto, devemos recorrer com a máxima confiança. Vejamos, pois, por que e como ela deve ser invocada.

1. Por que a Bem-aventurada Virgem Maria deve ser invocada. — Leão XIII, na Encíclica Paterna caritas, diz: “Esforçai-vos para a que a Auxiliadora esteja junto do trono da graça, a gloriosa, santa e sempre Virgem Maria, Mãe de Cristo, e ofereça nossas preces a seu Filho e nosso Deus”. E na Encíclica Octobri mense: “Seguindo o exemplo de nossos religiosíssimos pais e antepassados, refugiemo-nos em santa Maria, Nossa Senhora; invoquemos Maria, Mãe de Cristo e nossa, e com um mesmo coração lhe imploremos: “Mostra que és Mãe! Ouça por ti nossas preces aquele que, por nós nascido, se dignou ser teu”. “Não deixem, com um só coração, de invocar e rogar, pública e privadamente, com louvores, preces e votos, à Mãe de Deus e nossa: mostra que és Mãe” (Encíclica Adiutricem populi).

O mesmo Pontífice expõe claramente como a invocação da Mãe de Deus em nada se opõe à dignidade de Deus. Diz, com efeito: “Está isso [a invocação da Virgem] tão longe de opor-se de algum modo à dignidade de Deus, como se levasse a pensar que devemos depositar mais confiança no patrocínio de Maria que no poder divino, que, pelo contrário, é o que mais facilmente move a Deus e no-lo torna propício. De fato, a fé católica nos ensina que se há de invocar com preces não somente a Deus, mas também aos santos bem-aventurados [2], embora por diversa razão, já que a Deus se reza como à fonte de todos os bens; a estes, porém, como a intercessores. “A oração”, diz Santo Tomás, “é dirigida a alguém duplamente: de um modo, para ser por ele cumprida; de outro modo, para ser por ele impetrada. Ora, do primeiro modo só a Deus dirigimos a oração, porque todas as nossas orações devem ordenar-se à consecução da graça e da glória, que somente Deus dá, segundo aquilo do Salmo: ‘A Graça e a glória dará o Senhor’ (Sl 83, 12). Mas, do segundo modo, dirigimos a oração aos santos anjos e homens, não para que, por eles, Deus conheça nossos pedidos, mas para que, pelas preces e méritos deles, nossas orações surtam efeito” [3] Ora, quem, entre todos os que ocupam os tronos dos bem-aventurados, ousará disputar com a augusta Mãe de Deus o poder de merecer a graça?” (Encíclica Augustissimae Virginis).

Nota o mesmo Pontífice a diferença entre o rito de invocar a Mãe de Deus e o rito de invocar os santos: “[…] o rito de invocar a Virgem tem algo de comum com o culto de Deus, a ponto de a Igreja invocá-la com os mesmos termos com que roga a Deus: Tende piedade dos pecadores” (ibid.). 

Devemos invocar a Bem-aventurada Virgem Maria porque ela é digna de toda a nossa confiança; é, depois de Deus, a mais digna. Com efeito, alguém conquista toda a nossa confiança quando: a) sabe ou perfeitamente conhece e compreende todas as nossas necessidades; b) pode socorrer-nos; e c) quer socorrer-nos. Ora, tal é o caso de Maria, que sabe de seu auxílio, pode e quer no-lo conceder. Sabe, porque vê continuamente em Deus a nós e o que nos diz respeito; pode, por ser onipotente junto ao seu Filho; quer, porque nos ama nele imensamente. Ela, enquanto Bem-aventurada, sabe o que nos é necessário ou útil; enquanto Mãe de Deus, pode o que quer; e, enquanto nossa Mãe, quer o que pode.

a) A Bem-aventurada Virgem Maria, em primeiro lugar, sabe dar-nos auxílio, porque nos vê em Deus. Pois o ato pelo qual a Bem-aventurada Virgem nos vê em Deus, sob a luz da glória, é muito semelhante ao ato com que Deus se vê a si mesmo. Ora, Deus vê com um único e mesmo ato simplicíssimo, como imagens em um espelho puríssimo, sua Essência e tudo o que nela está representado. Portanto, Deus vê em si mesmo todas as coisas possíveis e existentes, com todas as suas circunstâncias. Ora, todas as almas admitidas à visão intuitiva contemplam a Deus Uno e Trino graças à luz da glória, e nele conhecem todas as coisas que pertencem à sua essência, e de algum modo a elas se referem. Um tal conhecimento, em razão da luz da glória, pertence à felicidade delas e à plenitude da glória (Santo Tomás, In IV Sent., dist. 44, q. 3, a. 1; STh II-II 83, 4 ad 2).

Assim, por exemplo, a mãe que deixou seus filhos órfãos na terra os vê continuamente e conhece suas necessidades. Em poucas palavras: tudo o que lhes diz respeito, os bem-aventurados o veem em Deus. Pois bem, se todos os bem-aventurados gozam dessa visão das coisas e pessoas que lhes dizem respeito, muito mais deve gozar dela a Bem-aventurada Virgem Maria, e em grau congruente com sua bem-aventurança e seu ofício de Mãe. Por isso, tudo quanto lhe diz respeito, ela o deve ver em Deus. Daí que com os mesmos olhos com que vê a divina essência enxergue também a nós, filhos seus, em particular, com todas as nossas virtudes, defeitos, necessidades e penas. De fato, é tão clara, direta e distinta essa visão, que, se não se equipara à visão de Deus, excede todavia a visão de todos os anjos e santos.

Se, por conseguinte, a Beatíssima Virgem vê em Deus todas as nossas misérias, necessidades e desejos, sem dúvida ela sabe dar-nos auxílio, aplicando-nos remédios oportunos, além de distribuir-nos as graças idôneas.

b) A Santíssima Virgem, ademais, pode socorrer-nos. — A razão está em que a Bem-aventurada Virgem tudo pode junto a Deus com suas súplicas. Com efeito, os Padres e Doutores da Igreja constituem um coro admirável quando lhe engrandecem o poder, e declaram que tudo o que Deus pode por império, Maria o pode alcançar pelas próprias preces. Jesus e Maria, ambos onipotentes: Jesus por natureza [divina], Maria por graça; Jesus por essência, Maria por participação; Jesus por direito, enquanto Deus, Maria por graça, enquanto Mãe de Deus. Ela nada perdeu daquela doce autoridade que, nos dias de sua vida, lhe foi reconhecida por Deus: “A palavra dela, sempre acatada, alcança pela memória de seus padecimentos uma força misteriosa que faz vibrar no Coração de Cristo todas as cordas do amor filial e o inclina a uma liberalidade sem medida” (Monsabré, Conf. 50). Portanto, a Virgem pode socorrer-nos.

c) A Santíssima Virgem, por último, quer nos auxiliar, porque nos ama em Deus. Ela nos ama: α) enquanto membros do corpo místico de seu Filho, que constituem o Cristo total; β) porque é nossa Mãe, e por isso nos ama com um amor de todo inefável, superior a qualquer amor. Desta forma, se a Bem-aventurada Virgem assim nos ama, não há dúvida alguma de que nos quer auxiliar, pois que amor não é outra coisa que querer o bem do outro. Não admira, pois, que os fiéis, desde os séculos II-III, tenham começado a invocá-la com a prece: “À vossa proteção nos acolhemos…”, para que os livrasse de todos os perigos [4]. No século IV, São Gregório Nazianzeno (389) refere o recurso de certa virgem cristã à Bem-aventurada Virgem Maria (Or. XXIV in laudem S. Cypriani, PG 35, 181). Por volta do fim do mesmo século V, Santo Ambrósio exortava as virgens cristãs a invocar a Bem-aventurada Virgem (De Instit. Virg., n. 86ss, PL 16, 339s). No século V, cristãos da África setentrional costumavam invocar a Bem-aventurada Virgem com as palavras: “Santa Maria, salva-nos” [5].

2. Como a Bem-aventurada Virgem Maria deve ser invocada. — A Bem-aventurada Virgem Maria deve ser invocada com confiança. Pois, se ela sabe [das nossas necessidades], e pode e quer nos socorrer, necessariamente se há de concluir que nós devemos, com grande confiança, recorrer a ela continuamente e em todas as nossas necessidades, quer naturais, quer espirituais. De fato, “se confiamos em Maria”, diz Pio X, “como é justo […], agora também sentiremos que ela é a Virgem potentíssima, que esmagou com pé virginal a cabeça da serpente” (Ad diem illum).

DÚVIDA: É necessária a invocação explícita da Bem-aventurada Virgem para que ela nos impetre graças, ou é suficiente apenas uma invocação implícita?

RESPOSTA: a) Para que a Bem-aventurada Virgem interceda por nós a Deus, não é necessária uma invocação explícita. Com efeito, a Bem-aventurada Virgem pode — assim como Cristo — interceder por nós e, de fato, o faz muitas vezes, mesmo que não lho peçamos, ao menos expressamente (por exemplo, as graças que nos movem a rezar, as que nos estimulam à penitência etc.). Assim fez ela nas bodas de Caná. Com razão canta Alighieri: “Não só a benignidade tua socorre/ a quem a implora, mas, por tua vontade,/ antes do rogo, muita vez, já corre” [6]. Nenhuma graça é concedida aos homens sem a intercessão da Medianeira de todas as graças.

Além do que, pode-se dizer que a invocação da Virgem é implícita em todos os pedidos de graças, já que cada um pretende pedir graças segundo a ordem querida por Deus, e sabemos que Deus não nos quer conceder nada sem Maria. Nesse sentido é que se devem entender as palavras de Alighieri: “Tal é teu império que, por certo, erra/ quem busca a graça, e a ti não recorre,/ como a voar sem asas quem se aferra” [7].

b) Embora a invocação explícita em todo e cada caso não seja necessária, é no entanto bastante útil. Quanto mais frequente e fervorosa for a invocação da Virgem, tanto mais rápida e copiosa será sua misericórdia.

Notas

  1. Trad. de Pe. Gabriel M.ª Roschini, OSM, Mariologia, 2.ª ed., Roma: Angelus Belardetti (ed.), 1948, vol. 4 (= t. II, Pars Tertia), pp. 26-29.
  2. Concílio de Trento, sessão 25.
  3. STh II-II 83, 4.
  4. Cf. Marianum, 3 (1941) 97-101.
  5. Delattre A. L., Le culte de la Sainte Vierge en Afrique, Paris-Lille, 1907, p. 74s.
  6. Dante Alighieri, Par. XXXIII, 16-18. Trad. port. de Italo Eugenio Mauro. São Paulo: 2.ª Editora 34, 2010, p. 230.
  7. Par. XXXIII, 13-15, p. 230.
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