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Christo Nihil Præponere"A nada dar mais valor do que a Cristo"
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Texto do episódio
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“Não procuro fazer a minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou” (Jo 5, 30c). Meus queridos irmãos, Jesus, com essa sentença, nos ensina o princípio de toda vida espiritual. Mas antes de nos aprofundarmos neste tema, precisamos esclarecer algumas coisas a respeito de Nosso Senhor.

Jesus é Deus, e Deus tem uma só vontade. Jesus é homem e, sendo assim, Ele também tem outra vontade. Nesse sentido, devemos nos lembrar que a vontade divina — Pai, Filho e Espírito Santo, a Trindade — está sempre em sintonia. O Filho não precisa obedecer ao Pai, porque a vontade divina é sempre uma só.

Quando Deus, no ventre de Nossa Senhora, fez para si uma natureza humana — o Filho Eterno fez para si mesmo um corpo e uma alma, uma íntima natureza humana; e, assim, Ele é aquele homem. No momento da Encarnação, portanto, além da vontade divina, o Filho passa a ter, em acréscimo, uma vontade humana.

Jesus conhece tudo como Deus e é a própria Sabedoria encarnada, mas também conhece tudo e vê as coisas com sua inteligência humana, porque a alma humana tem sua própria inteligência. E aqui está algo que pode surpreender muita gente: a vontade humana de Jesus sempre esteve em sintonia com a vontade de Deus e não vacilou e nem titubeou por um único momento.

“Padre, mas e no Horto das Oliveiras, quando Jesus disse: ‘Pai, não seja feita a minha, mas a tua vontade’ e ‘Pai, afasta de mim esse cálice’; havia ali um conflito entre as duas vontades?”, você pode perguntar. Resposta: sim, mas não na vontade da alma, que sempre esteve em sintonia com Deus. Acontece que nós temos outras tendências naturais.

Vejamos, por exemplo, uma tendência muito natural do homem: não querer morrer. No caso de Jesus, a vontade da alma estava aceitando a vontade de Deus, mas como a natureza humana não foi feita para morrer, nem para aceitar o mal e a injustiça, então não foi feita para aceitar a cruz. Portanto, existe algo que, naturalmente, “esperneia” dentro de nós. Por isso, embora Jesus estivesse firme o tempo todo, buscando fazer a vontade de Deus, dentro dele as potências inferiores, próprias da condição humana, estavam esperneando.

É importante pontuar que esse conflito interno existe dentro de nós até mesmo sem o pecado. Estamos num mundo onde a nossa tendência natural, muitas vezes, é negada pela injustiça, pela doença, pela morte etc. Então, nós precisamos entender isto: não há como vivermos neste mundo sem sermos contrariados.

Vamos a um cenário de total ficção científica: imagine que todos os seres humanos parassem de pecar, e passássemos a viver num mundo onde ninguém mais cometesse pecados graves e nem mesmo veniais. Mesmo assim, tanto pelas consequências do pecado original de nossos pais, Adão e Eva, quanto dos pecados que nós já fizemos no passado, nós iríamos viver as consequências que contrariam a nossa natureza o tempo todo, porque estamos num mundo onde as coisas já estão desordenadas. Onde quer que haja morte, doença, envelhecimento, isso contraria a nossa vontade.

Agora, voltemos ao mundo real, adicionando a esse cenário o pecado e todas as injustiças que sofremos — haja contrariedade! Nós vivemos todos os dias com pessoas que cometem injustiças contra Deus, contra nós, contra os outros, o tempo todo. Façamos um breve cálculo: o planeta tem quase oito bilhões de pessoas. Vamos supor que cada um desses habitantes cometa, todos os dias, “somente” um pecado venial. Isso quer dizer que Deus foi ofendido, em somente um dia, quase oito bilhões de vezes! Mas nós sabemos que a humanidade não está cometendo apenas pecados veniais: está, sistematicamente, se afundando nos pecados mortais mais terríveis e atrozes. Quase oito bilhões de loucos ofendendo, diariamente, Aquele que é a fonte de sua própria vida. 

O pecado é uma loucura e, portanto, a humanidade tornou-se um manicômio! Somos bilhões de loucos ofendendo constantemente Aquele que é fonte do nosso bem-estar e da nossa salvação. Façamos mais uma metáfora extrema: imagine que, na borda de um vulcão fervendo de magma e fogo, prestes a entrar em erupção, há uma criancinha. Ela está lá, agarrada na borda da cratera, prestes a cair na lava, mas o seu pai, bondosa e heroicamente, surge para salvá-la, agarrando-a pelo braço para puxá-la para cima. Só que neste momento em que o pai começa a içá-la para o terreno seguro, a criança saca uma faca e começa a ferir o braço do pai, gritando: “Me deixa! Me solta! Não quero saber de você, saia daqui!”. Sei que é um exemplo um pouco maluco, mas é para que compreendamos que é exatamente isso o que a humanidade faz quando se afunda no pecado.

Deus quer nos salvar da “cratera do vulcão”, do Inferno eterno. Mas nós, em vez de nos revoltarmos contra os demônios que querem nos derrubar nesse precipício, fazemos a vontade deles, enquanto ofendemos o bondoso Deus que quer nos salvar. Há outra definição para isso a não ser loucura?

Voltemos ao início, à frase de Jesus, agora que nós esclarecemos a verdade sobre Cristo: que Ele sempre faz a vontade do Pai. Está escrito aqui no Evangelho que o Filho sempre faz a vontade do Pai. Os conflitos em Cristo não são os conflitos de um pecador, são conflitos internos que a natureza sofre naturalmente por causa da nossa situação atual de morte, de doenças e de injustiças.

Mesmo a pessoa mais santa sofrerá neste mundo, justamente porque há coisas aqui que contrariam as nossas tendências naturais. Nós somos criados naturalmente para a ordem, para a vida, para a saúde e para a justiça. Então, por mais que digamos: “Meu Deus, seja feita a tua vontade”, há um “cavalinho” escoiceando dentro de nós. Precisamos aguentar firme e amansá-lo! Jesus suou sangue no Horto das Oliveiras para amansar esse cavalo e nos conquistar a vitória. E se Ele venceu no Horto das Oliveiras, a vitória já é nossa.

Voltemos ao versículo: “Não procuro fazer a minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou”. Isso quer dizer que a totalidade de nossa vida espiritual é fazer a vontade de Deus nos seus mais mínimos detalhes. Vamos a mais um exemplo: por estes dias, tem chovido aqui em Cuiabá, mas não adianta — o cuiabano não aprende a sair de guarda-chuva! Não temos a cultura de fazer isso, como em outros lugares. Dito isso, imagine que você sai de casa e começa a chover. Adianta ficar se debatendo diante desse fato? É vontade de Deus que chova. O que você precisa fazer diante desse fato irrevogável? Ora, “querer” que chova!

Você pode até desejar que pare logo de chover, mas o que não pode é se revoltar contra o fato de que está chovendo. “Seria tão bom se essa chuva parasse logo para eu poder ir embora”, é um desejo lícito, está tudo bem. O que você não pode é ficar dizendo: “Que desgraça essa chuva! Justo agora? Não era para chover justo agora, eu não queria isso!”.

Pode parecer uma bobagem, mas podemos ver claramente que há uma diferença essencial nas duas atitudes. Nesse sentido, podemos meditar um pouco e perceber que 99% das nossas irritações são revoltas por um estado de coisas inalterável

Quando você sofre um roubo, é porque Deus permitiu. É claro que ninguém deseja ser roubado, mas aconteceu? Então vá à Polícia registrar o B.O., processe na Justiça o responsável, proteste no cartório. Tudo isso é lícito. O que você não pode é escolher “nunca ter sofrido um roubo” e se revoltar por não poder “revogar” esse transtorno na sua história!

Deus permitiu que você tenha esse transtorno, sim ou não? Então, por que se revoltar contra aquilo que já aconteceu? Uma pessoa traiu você. Ninguém quer isso, Jesus não queria a traição de Judas — Nosso Senhor o escolheu para que ele fosse um grande santo, um apóstolo amigo e fiel. Mas, uma vez que Judas resolveu traí-lo, qual é a atitude de Jesus para com esse fato acontecido e irrevogável? Portanto, perceba que não importa quem traia você: uma esposa, um filho, um amigo, um sócio. Na medida do possível, defenda-se e procure resolver o problema. Mas o transtorno, é claro, você precisa aceitar que já aconteceu: “processe” interiormente esse fato e siga em frente.

Não é que queiramos a desordem, mas temos de querer lutar as batalhas que Deus quer que enfrentemos. Eis o princípio da vida espiritual: nos adequar à vontade de Deus. E aqui está o ponto-chave: se Deus permitiu essa luta, é porque alguma coisa de bom está tirando disso. Deus só permite o mal porque consegue tirar daí um bem maior. As pessoas têm dificuldade de entender esse princípio, porque têm dificuldade de distingui-lo em seu dia a dia, fora da teoria. Só que isso é uma coisa mais prática do que se imagina — diante dessas situações adversas, você precisa ser como um médico que, ao analisar um diagnóstico, diz: “Olha, isso aqui tem cura e isso aqui não tem”.

Não adianta desejarmos curar o que não tem cura. O médico precisará dizer quais problemas consegue resolver com determinada terapia, e quais não é possível solucionar. Qualquer médico, em sua prática diária, não vai tentar curar o incurável, porque vai perder tempo, recursos, remédios, paciência, dinheiro. Então, a primeira coisa que um médico faz, diante de uma doença, é analisar: “Isso tem cura e isso não tem. Para aquilo que podemos tratar, vamos escolher uma das terapias disponíveis com base no custo-benefício: tem esta aqui que é muito boa, mas os efeitos colaterais, no seu caso, podem ser muito altos. Vamos tentar primeiro esta outra aqui, que é um pouco mais lenta, mas tem menos efeitos colaterais”. É assim que eles fazem.

Muito bem, volte para a sua vida: você pode estar cheio dessas pequenas “doenças” no seu dia a dia. Por exemplo: o seu sócio traiu você. Como médico de sua própria vida, é preciso pensar no que tem e no que não tem cura. O que não tem cura? O transtorno. No entanto, há quem gaste uma energia enorme apenas se perguntando, incessantemente: “Mas como que ele foi fazer isso? Por quê!? Ele não devia, não podia ter feito isso!”. Então, o que é mais sensato fazer? Procurar resolver o prejuízo, seja conversando com o sócio, ou contratando um advogado para processá-lo na Justiça. Lembre-se: da parte de Deus, Ele quis — seja por permissão ou por deliberação — que você passasse por isso. Deus permite que soframos transtornos ou bondosos castigos, porque quer tirar dali um bem maior. Qualquer bom pai ou mãe faz isso.

Você pode, por exemplo, lutar para não cair em tentação, mas, uma vez que a tentação está à sua frente, saiba que isso é uma permissão divina. Os demônios só têm poder na medida em que Deus permite que tenham. Portanto, se você está sofrendo uma tentação, esta é uma graça que o Deus de bondade e misericórdia permite, na medida em que Ele, Pai bondoso, sabe que vai tirar uma grande coisa, boa e positiva, para a sua alma. Então, que grande alegria saber que Deus sempre quer o nosso bem! Se acontece algo inesperado e desagradável comigo, dentro de mim as tendências naturais estão escoiceando, mas a minha alma deve dizer: “Opa, cavalinho! Opa, opa!”, sabendo que há ali uma permissão divina. É uma luta dura. É difícil segurar essas rédeas! Jesus suou sangue no Horto das Oliveiras para que, naquela vitória, nos desse a graça de vencermos, nós também, essas tendências naturais ordenadas e desordenadas.

Há tendências ordenadas que nos fazem sofrer porque estamos num mundo desordenado, e há também tendências desordenadas dentro de nós que por si próprias nos fazem sofrer. Jesus, que não tinha tendências desordenadas, sofreu no Horto das Oliveiras porque ali estava o homem mais ordenado que já existiu, diante de um mundo desordenado. As tendências humanas, naturais e ordenadas, de Cristo, estavam esperneando contra aquela desordem que estava ali diante dele: injustiça, traição, morte, pecados, isso se chama sofrimento.

O sofrimento é uma colisão entre a ordem e a desordem ou, às vezes, entre duas desordens. Estou aqui gastando esse tempo com essas comparações simplesmente para que, através dessa meditação, tenhamos a oportunidade de entender: leve isso para a oração. A totalidade da vida espiritual é renunciar às nossas vontades e caprichos para realizar a vontade de Deus, em tudo e nos mínimos detalhes.

“Mas, padre, qual é a vontade de Deus?”, você pode se perguntar.

Lembremo-nos da metáfora do médico: primeiro, precisamos distinguir o que não tem cura — esta é a vontade de Deus manifesta. Agora, para aquilo que tem solução, então vamos combatendo para, aos poucos, enxergarmos o que Deus quer.

Os santos, como verdadeiros doutores espirituais, são como médicos experientes que nos ajudam muito a saber o que tem e o que não tem solução. Tem gente que vem ao confessionário querendo que eu lhe dê a receita para não sofrer tentações. Então eu digo: “Meu filho, isso não tem cura”. Há alguns dias, uma adolescente — muito pura e santa, por sinal — pediu-me:

— Padre, o que eu faço para não ter mais tentações sexuais?

— Minha filha, isso não vai acontecer  — respondi . Eu posso ensinar a evitar as ocasiões, posso lhe instruir sobre a melhor forma de lutar contra essas tentações, a como tirar da cabeça os maus pensamentos, como não alimentar ou cair em ocasiões de pecado, de que forma você possa usar os meios espirituais nesse combate — a água benta, a invocação do seu anjo da guarda, de Nossa Senhora, dos santos que morreram pela castidade. Enfim, eu posso te ensinar a lutar, mas se você está querendo que eu te ensine a como não ter lutas, isso não vai acontecer. Não tem cura. Deus decretou que devemos lutar.

A nossa vida nesta terra é assim: Deus quer que lutemos. E por que é assim? Ora, porque do jeito que este mundo é, se você não luta por nada, é porque não ama nada. Depois que Adão e Eva caíram em tentação e pecaram pela primeira vez, o que sobrou é este mundo cheio de dores e aflições, não tem como criarmos uma terra sem males. Este é um sonho utópico, revolucionário e insano. Qualquer um que tenha tentado criar o Paraíso neste mundo acabou matando milhões de pessoas, causando atrocidades, ditaduras  e genocídios.

Portanto, cuidado se você tem a ilusão de que vai transformar a sua família num pequeno paraíso — não vai dar certo! Sua família não é o Paraíso na terra, sua família é uma luta de amor, como é uma luta toda a vida do homem sobre a terra.

Vejamos sempre, portanto, o que tem e o que não tem cura. O que tem cura? Eu posso lutar contra a tentação para não cair no pecado. Isso sempre tem cura: toda tentação tem a cura da luta e da vitória de Cristo. O que não tem cura? É o desejo de vivermos sem tentações, sem problemas, contrariedades ou transtornos, sem o “cavalinho” das nossas tendências naturais ficar escoiceando, ao reagir diante de situações contrárias à nossa natureza, mas próprias da desordem deste mundo.

Cristo nos deu a vitória: vamos com Ele! Nosso Senhor faz a vontade do Pai em tudo e em cada detalhe — mas não sem luta. Então, lembre-se: “não procuro fazer a minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou”. Cristo Santíssimo jamais pecou, mas embora a sua vontade humana estivesse perfeitamente em sintonia com a vontade divina, na hora de sua Paixão Ele permitiu— porque tinha perfeito domínio disso — que as paixões humanas seguissem o seu curso natural. Ele “soltou as rédeas dos cavalinhos” para sofrer as paixões seguindo o seu curso natural, em colisão contra  o mundo antinatural, suando sangue por isso, mas alcançando-nos a vitória Ele permitiu, para que, com essa permissão, do seu suor de sangue, Ele alcançasse a vitória.

A vitória da nossa luta é muito mais complicada: não temos somente paixões naturais que colidem com o mundo desordenado, temos também paixões naturais desordenadas. Vamos então agradecer a Deus, que quer nos dar a graça dessa vitória — e a graça de lutar, de podermos dizer a Ele: “Eis-me aqui, Senhor, honrado por ter sido escolhido para lutar por amor”. E lembre-se sempre: se você não luta por nada, é porque você não ama nada. Deus quer que você ame e, por isso, quer que você lute!

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