Nós começamos este ano de 2019 com um um novo curso no site, dessa vez dedicado ao pensamento de Lutero.
Estávamos ainda indecisos sobre que tema tratar para darmos início ao módulo de História da Igreja Moderna, e a opção de estudar como Lutero ditou os rumos da sociedade atual tornou-se, aos poucos, muito empolgante.
A razão fundamental desta aula é apresentar uma obra que está entre os inúmeros livros consultados e estudados pelo Padre Paulo Ricardo para este curso: trata-se de um volumoso livro chamado The Unintended Reformation: How a Religious Revolution Secularized Society (“A Reforma não pretendida: como uma revolução religiosa secularizou a sociedade”, sem tradução para o português). Ao longo de 500 páginas, Brad Gregory mostra como a revolução protestante gerou, mesmo “sem querer”, um mundo em cujo centro Deus não está mais presente.
Em primeiro lugar, Brad faz questão de desfazer o equívoco de uma visão histórica que se baseia num modelo hegeliano de substituição. Tal concepção sugere que a Idade Média foi apenas superada pelo Renascimento, e assim sucessivamente, como se não houvesse uma causa motriz por trás dessas mudanças epocais. Haveria então uma tese (cristandade) e uma antítese (protestantismo), ambas suprassumidas pela síntese posterior (iluminismo). Essa visão acaba reivindicando para si o sentido da história, dando a impressão de que ela mesma já possui o script de tudo.
Mas Deus não nos revelou nenhum roteiro, nem é verdadeira a afirmação de que uma época teria superado totalmente a outra. Por exemplo, a Igreja Católica está ainda hoje no meio de nós, mesmo após a suposta vitória de Lutero sobre o mundo medieval. O que podemos afirmar, no entanto, é que essa Igreja, embora seja substancialmente a mesma de outrora, sofreu também as influências de um pensamento ideológico, cuja origem se acha na revolta de Lutero. Houve, portanto, uma causa real e concreta para isso, e não simplesmente o progresso da história. Olhando para essa genealogia dos fatos, temos a condição de entender como chegamos ao estado atual — e como somos livres para mudar, também, a situação em que nos encontramos.
Das muitas revoluções “não pretendidas” por Lutero, Gregory chama a atenção para a nova exegese bíblica. Com a tese da sola scriptura, Lutero abriu uma fissura na rocha magisterial da Igreja Católica, expondo as Sagradas Páginas às mais torpes distorções. Em nosso curso, mostramos como isso desencadeou um processo de revoltas camponesas das quais o próprio Lutero se afastou. Ele não queria aquele movimento todo, mas não havia mais um Concílio para segurá-lo. A autoridade do Papa havia sido posta em xeque pelo poder estatal. O resultado: cem mil mortos.
Depois da Reforma, a Europa tornou-se um continente confessional, tendo cada nação a sua própria religião, segundo o credo do Rei. A fé não estava mais sob a vigilância da Santa Sé, mas do Estado Absoluto. Na prática, os príncipes se converteram em “pontífices”, e os seus deveres de monarca se confundiram com os de pastores. Eles agora tinham de resolver problemas de doutrina, heresias, cismas etc. E, em vez dos tribunais da Inquisição, tão injustamente demonizados, o que eles usaram foi a força das armas, punindo e matando quem deles discordasse. Ora, os tribunais do Santo Ofício existiam justamente para segurar a mão secular. Mas aqueles já eram outros tempos, já existia uma nova teologia.
A “confessionalização” foi, sem dúvida, um desastre, seja porque os reis assumiram o lugar do Papa, seja porque a religião católica não é simplesmente uma confissão. Por sua própria natureza, o cristianismo implica um modo de ser na sociedade como um todo: deve-se ser católico na cultura, na política, na universidade e até debaixo d’água. Nas mãos do Estado, porém, a confessionalização da fé transformou-a em um assunto privado, que em nada deve perturbar a ordem pública. E essa transformação desencadeou um paradoxo desconcertante para o mundo moderno, cujos frutos estamos colhendo hoje. Brad Gregory descreve a situação deste modo:
Uma característica importante e paradoxal do liberalismo moderno é que ele não prescreve o que os cidadãos deveriam crer, como eles deveriam viver, ou com o que deveriam se importar. Apesar disto, para que haja coesão social e vitalidade política, os regimes liberais dependem da aceitação voluntária de crenças, valores e prioridades que sejam partilhados pela maior parte das pessoas e motivem as suas ações. Caso contrário, os Estados liberais terão de se tornar cada vez mais legalistas e coercitivos para assegurar estabilidade e segurança.
No Ocidente, muitas destas crenças, valores e prioridades fundamentais — incluindo autodisciplina, abnegação, autossacrifício, responsabilidade ética pelos outros, deveres com a própria comunidade, compromisso com o próprio cônjuge e com os filhos — têm sua origem principalmente no Cristianismo e foram comuns às várias confissões na Europa do início da era moderna (op. cit., p. 375).
Notaram o problema? Temos hoje uma democracia que, para funcionar, depende de valores cristãos, os quais, todavia, são fortemente rechaçados pelas mesmas instituições democráticas do Estado. As universidades promovem secularismo, e a única coisa que são capazes de produzir é um grupo de militantes. O Brasil, por exemplo, hoje vive um estado caótico de brigas entre partidos, mas poucas pessoas estão interessadas na busca da verdade, algo fundamental para a coesão de um país. Desse modo, padecemos sob a autoridade da opinião própria, que não dá a mínima para a realidade das coisas. Sobre esse aspecto, Gregory chega à seguinte conclusão:
A Modernidade está falindo, em parte, porque a sola ratio da filosofia moderna se demonstrou tão incapaz quanto a sola fide em discernir ou descobrir respostas às Questões da Vida que encontrassem algum consenso. Por outro lado, as ciências naturais encontraram um tremendo sucesso; mas é exatamente por causa dos limites, que estas ciências impuseram a si mesmas e as fizeram tão bem-sucedidas, que elas se demonstram incapazes de dar respostas a qualquer uma destas Questões da Vida (op. cit., p. 377).
Em outras palavras, tanto o racionalismo iluminista quanto o fideísmo protestante falharam e não foram capazes de dar sentido à existência humana. No fim das contas, restou à humanidade a conclusão bem pouco consoladora de Wittgenstein: aquilo que é certo cientificamente é irrelevante para a vida, e as verdadeiras questões para a vida são incertas. Sem entrar no mérito desse pensamento, o fato é que as verdadeiras questões do coração humano, que só podem ser respondidas pela Revelação e pela filosofia perene, foram banidas do debate público. Tal é a encruzilhada de nossa época, cujas raízes se alongam até os berços de Martinho Lutero e Guilherme de Ockham, ainda que, por honestidade, não seja justo culpá-los por todo o estrago do secularismo.
O propósito de um curso sobre Lutero torna-se claro agora para nós, diante da urgência de um remédio para a cisão entre fé e razão. Se não recuperarmos a unidade entre essas duas asas que levam o homem para a verdade, o pêndulo do mundo continuará oscilando entre duas ideologias, e a humanidade estará pronta para dar seu aval ao primeiro ditador da hora presente.
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