A coisa mais bela que existe na vida de um santo não é, obviamente, a sua humanidade, mas a intervenção divina que o ajuda a agir sobrenaturalmente nas circunstâncias mais adversas e contraditórias. Todavia, a tendência naturalista dos últimos anos tem ressaltado o “lado humano” dos santos e negligenciado a dimensão sobrenatural da perfeição cristã. E o resultado disso é que as pessoas já não sabem distinguir entre uma vida verdadeiramente piedosa e algo simplesmente natural.
Essa tendência se verifica, por exemplo, em algumas biografias recentes de Santa Teresinha do Menino Jesus. Para desmistificar a pequena carmelita de Lisieux, os biógrafos procuram descrevê-la segundo a lógica da psicologia e da sociologia, quase que excluindo a sua eminente piedade e devoção. Desse modo, a imagem que fazemos de Santa Teresinha é daquela menina mimada que dormia durante as orações comunitárias.
A realidade de Teresinha do Menino Jesus, no entanto, é infinitamente maior do que a apresentada pelos biógrafos modernistas. Nos escritos dela, disse São João Paulo II, “podemos vislumbrar um esclarecido testemunho da fé que, enquanto acolhe com amor confiante a condescendência misericordiosa de Deus e a salvação em Cristo, revela o mistério e a santidade da Igreja” (Divini Amoris Scientia, n. 7). De fato, obras como História de uma alma, a autobiografia de Teresinha, colocam-nos frente a frente com a força de Deus que santifica o coração humano.
A primeira versão de História de uma alma saiu poucos anos depois da morte de Teresinha. Os manuscritos estavam agrupados em capítulos e com algumas correções de Madre Inês, irmã mais velha de Teresinha, que considerava o francês de sua santa irmã pouco adequado para uma publicação. Logo após o lançamento do livro, Teresinha se tornou imensamente popular e vários relatos de milagres surgiram de todos os cantos do mundo: curas de câncer, aparições etc. Tratou-se mesmo de um grande fenômeno.
Depois da morte de Madre Inês, os manuscritos originais de Teresinha foram finalmente publicados. A situação, por conseguinte, gerou um clima tal de revisionismo, de maneira que alguns começaram a questionar a veracidade dos fatos até então conhecidos sobre Teresinha. Assim se desenvolveram as primeiras biografias teresianas com uma conotação excessivamente naturalista. Na verdade, os biógrafos queriam descobrir a “Teresinha histórica” por trás da “Teresinha da fé”.
Uma dessas biografias que fez bastante sucesso foi a do teólogo Jean-François Six, publicada no Brasil em 1982, com o título Os últimos dezoito meses de Santa Teresinha. Nessa versão, Teresinha é descrita a partir da psicologia do desenvolvimento, dos traumas de adolescência entre pais e filhos etc. O acontecimento milagroso do Natal de 1886, que Teresinha descreve como uma verdadeira mudança interior na sua alma, é visto apenas como um choque familiar, causado pela oposição do pai à infantilidade da filha.
Uma visão mais moderada é a do padre André Combes, no livro Uma santa na era atômica (tradução para o Brasil). Trata-se de um trabalho científico e rigoroso, mas que não se aprofunda verdadeiramente na espiritualidade de Teresinha. Combes era padre diocesano e, como tal, descreveu Teresinha a partir de uma perspectiva muito geral da mística cristã.
Atualmente, o melhor intérprete de Santa Teresinha do Menino Jesus é, sem dúvida, o bem-aventurado Maria Eugênio do Menino Jesus, cuja obra famosíssima Quero ver a Deus mostra com todo vigor a profunda espiritualidade de Teresinha, como uma legítima filha de São João da Cruz. Frei Maria Eugênio faz a seguinte descrição:
Revelar Deus-amor às almas é ponto central e essencial da missão de Santa Teresinha do Menino Jesus. Esta mensagem tem como fundamento a graça mais importante e mais profunda de sua vida: um conhecimento experiencial muito profundo de Deus-amor (2015, p. 1077).
Em primeiro lugar, Frei Maria Eugênio mostra como o toque da graça permitiu que Santa Teresinha compreendesse, pouco a pouco, os desejos íntimos do Coração de Jesus: a justiça a partir da misericórdia de Deus, que pretende se derramar sobre todos os seus filhos, como meio para uma união entre o Amor e a criatura amada. No seu progresso espiritual, diz Maria Eugênio, Teresinha entendeu que o “Amor não quer limitar sua ação a algumas almas privilegiadas”, mas “aspira a difundir-se por toda a parte e a conquistar o mundo inteiro” (2015, p. 1079).
Esse desejo de Deus, porém, não é compreendido por todos igualmente. Frei Maria Eugênio explica que Teresinha experimentou as decepções de Cristo pelo desprezo dos homens, para que ela se transformasse numa autêntica apóstola do Amor divino. E, a partir de São João da Cruz, ela procura tornar-se “vítima de amor para aliviar o bom Deus”, explica o Frei, uma vítima que oferece a sua pequenez, o seu nada, e entrega-se de mãos vazias para aquele que é o Tudo, pois já sabe que agrada a Deus amando a própria pequenez: “É a esperança cega que tenho em sua misericórdia… Eis aí meu único tesouro” (Teresinha do Menino Jesus, Carta 197, 17 de setembro de 1896).
A chave de leitura que Frei Maria Eugênio oferece para o entendimento de Teresinha é, no fim das contas, a da infância espiritual, a partir do reconhecimento da própria indigência e de uma confiança absoluta na misericórdia divina. Os verdadeiros devotos da santa carmelita devem, pois, imitar o seu caminho, tornando-se crianças nos braços do Pai. Foi por meio dessa entrega que ela se tornou também a santa da Sagrada Face, enxugando o rosto de Cristo com a própria alma. Na enfermaria, Teresinha assumiu as dores de Jesus, suportando a agonia da sua doença, algo que nenhuma tese psicológica, por mais refinada que seja, pode sozinha explicar. Ela só aguentou esses sofrimentos porque estava apoiada na graça divina. Do mesmo modo, procuremos sempre essa graça, a fim de que Deus faça do nosso nada uma obra totalmente santa.
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