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Texto do episódio
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Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus
(Mt 8,23-27)

Naquele tempo, Jesus entrou na barca, e seus discípulos o acompanharam. E eis que houve uma grande tempestade no mar, de modo que a barca estava sendo coberta pelas ondas. Jesus, porém, dormia.

Os discípulos aproximaram-se e o acordaram, dizendo: “Senhor, salva-nos, pois estamos perecendo!” Jesus respondeu: “Por que tendes tanto medo, homens fracos na fé?” Então, levantando-se, ameaçou os ventos e o mar, e fez-se uma grande calmaria. Os homens ficaram admirados e diziam: “Quem é este homem, que até os ventos e o mar lhe obedecem?”

Quando Jesus acabou de dizer estas palavras, as multidões ficaram admiradas com seu ensinamento. De fato, ele as ensinava como quem tem autoridade e não como os mestres da lei.

A Igreja celebra hoje a memória de Santo Irineu de Lião, bispo, mártir e Doutor [1] do séc. II que combateu sem descanso o gnosticismo. Sua obra mais conhecida, Adversus Hæreses (“Contra as heresias”), permanece atual não só por seus argumentos contra erros que, de um modo ou de outro, continuam espalhados pelo mundo, ainda que com diferente roupagem, mas também por nos lembrar que não é próprio do católico seguir as modas “intelectuais” do tempo, travestidas de erudição para desqualificar a tradição bimilenar da Igreja, acolhida por santos e Doutores, defendida e aprofundada pelo Magistério eclesiástico, regra próxima da fé para todo cristão.

Um fiel, para se manter no caminho seguro da fé ortodoxa, tem de dar ouvidos não aos homens, mas à Igreja, pois é Cristo quem fala por ela: “Quem vos ouve, a mim ouve” (Lc 10,16). Na época de Irineu, os modismos se apresentavam muitas vezes como “misticismo”, prometendo uma salvação seletiva e puramente intelectual graças a doutrinas arcanas, acessíveis a poucos iniciados. Hoje, os erros se travestem de “ciência”, exibindo-se, a fim de garantir sua presumida respeitabilidade, em revistas especializadas, salas universitárias, livros mal escritos e de péssima digestão.

Que, a exemplo de Santo Irineu, fortalecido pelo Espírito Santo para poder derramar o próprio sangue em defesa da sã doutrina, possamos também nós, fiéis ao Magistério perene da Igreja, preservar incontaminada a única fé pregada pelos Apóstolos e, por eles e seus sucessores, transmitida a nós sem perda nem acréscimo.

* * *

Explicação do texto. — V. 23. Naquele tempo, após ter contado ao povo várias parábolas, Jesus entrou na barca (εἰς τὸ πλοῖον), i.e. no pequeno navio que costumava usar em suas viagens, e seus discípulos o acompanharam (ἠκολούθησαν αὐτῷ οἱ μαθηταὶ αὐτοῦ), i.e. os doze Apóstolos, que o seguem como fiéis acólitos.

V. 24ss. E eis que houve uma grande tempestade no mar (καὶ ἰδοὺ σεισμὸς μέγας ἐγένετο ἐν τῇ θαλάσσῃ), i.e. eis que se deu em pleno mar de Tiberíades uma grande agitação e um tremor tão forte, que a barca estava sendo coberta, a ponto de não ser mais visível, pelas ondas (ὥστε τὸ πλοῖον καλύπτεσθαι ὑπὸ τῶν κυμάτων); Jesus, porém, dormia profundamente (αὐτὸς δὲ ἐκάθευδεν) sobre um travesseiro na popa do navio (cf. Mc 4,28), a fim de descansar de seus trabalhos e pôr à prova a fé dos discípulos [2]. Estes, com efeito, temendo o perigo iminente e pouco confiantes no poder do Mestre, apesar de a terem constatado antes inúmeras vezes, aproximaram-se dele e o acordaram, dizendo: Senhor, salva-nos, pois estamos perecendo! (Κύριε, σῶσον, ἀπολλύμεθα). Mas Jesus, sabendo que aquele medo não tinha outra razão senão a pouca fé deles, repreende-os: Por que tendes tanto medo, homens fracos na fé?, ou, segundo o texto grego: Por que sois tão covardes, homens de pouca fé? (Τί δειλοί ἐστε, ὀλιγόπιστοι;). Então, levantando-se, Jesus, com a autoridade de quem se sabe Rei de toda a criatura, ameaçou os ventos e o mar, e fez-se uma grande calmaria (καὶ ἐγένετο γαλήνη μεγάλη), em contraste com o grande sismo (σεισμὸς μέγας) que pouco antes se fizera sentir [3].

V. 27. Os discípulos então se perguntaram uns aos outros, numa clara manifestação de que ainda era pequena e superficial a fé que tinham em Cristo: Quem é este homem, que até os ventos e o mar lhe obedecem? [4]. Ora, quem ameaça o mar e suas ondas é Javé no Antigo Testamento, a cuja onipotência essa prerrogativa é atribuída uma e outra vez (cf. Sl 17,16; 103, 7: À tua ameaça, essas águas fugiram; 105,9: Ameaçou o Mar Vermelho, e ele secou-se; 88,10: Tu dominas o orgulho do mar, amansas as suas ondas entumecidas; Na 1,4: Ele ameaça o mar e torna-o seco; Is 51, 10: Porventura não secaste tu o mar, as águas do grande abismo?) Do domínio de Cristo sobre o mar e a tempestade poderiam, pois, ter entendido facilmente que seu poder era divino, como diz o cardeal Caetano: “Usou de uma ordem sensível para que conhecessem os presentes que com uma só ordem Ele muda as criaturas, e assim reconhecessem que é verdadeiro Deus, de quem é próprio fazer as coisas com uma só ordem” [5].

Sentido simbólico. — A barca em que está Jesus é figura da Igreja, acossada de todos os lados enquanto navega pelo mar deste mundo, entre as vagas de tantas perseguições e tentações, que a atingem por fora e por dentro, na forma de infidelidade de muitos membros seus. As ondas (i.e. as tribulações) podem chegar às vezes a tais proporções, que se torne quase impossível a um olhar carnal discernir onde no mundo está a Igreja, oculta em meio a tantos tormentos: A barca estava sendo coberta pelas ondas. O Senhor, entretanto, permanece “adormecido”, não por indiferença, mas por paciência, até que, estimulado pelas preces insistentes dos santos, resolva em sua Providência dar fim às tribulações e devolver-lhes a tranquilidade desejada (cf. Tertuliano, De bapt. 12: ML 1,1321). Assim, a) na barca de Pedro temos figurada a Igreja Católica; b) na procela do mar vemos uma imagem das perseguições e crises pelas quais tem de passar neste mundo a Esposa de Cristo; c) a calmaria, por fim, é símbolo da vitória que apenas em Cristo podemos encontrar.

Sentido espiritual. — Além disso, o texto admite uma leitura espiritual. 1) Procelas espirituais: Com efeito, a) a barca sujeita à violência das ondas é símbolo da alma que luta contra a força das más paixões e resiste às tribulações e dificuldades da vida presente. b) Enquanto isso, o Senhor parece dormir, quando, esquecido de nossas misérias, nos permite ser atribulados pelos ventos e tempestades, não para nos fazer perecer, mas para nos estimular a rezar com fé mais sincera e confiança mais firme. c) Quando são aceitas as súplicas dos fiéis, que clamam: Senhor, salva-nos, pois estamos perecendo, o Senhor bondosamente se levanta, increpa os ventos e restabelece a paz em nossas almas. — 2) Causas e utilidades das tentações: Deus permite muitas vezes que sejamos atribulados por um tempo mais ou menos longo: a) a fim de exercitar nossa humildade; b) para que tenhamos ocasião de descobrir se é grande ou não a nossa fé; c) como estímulo à virtude; d) para que, na bonança que se segue à tempestade, se manifeste a sua glória; e) a fim de trabalhar mais o caráter do justos e f) lhes reservar no céu um prêmio ainda maior, por sua paciência e confiança [6].

Referências

  1. A Igreja só recentemente conferiu a Irineu o título de Doutor, por decreto de S. S. Papa Francisco em 21 jan. 22.
  2. Cf. Juan Maldonado, In Matt. VIII, 24: “Três coisas parecem ter acontecido aqui, não por casualidade ou natureza, mas por desígnio e providência de Cristo. a) Primeiro, que Cristo tenha subido à barca somente com os discípulos […], para que lhes pudesse repreender mais livremente a desconfiança: Por que sois tão covardes, homens de pouca fé? — b) Segundo, que tinha rebentado uma tempestade. De fato, às vezes Ele deixa rebentar tempestades sobre nós com o fim de nos provar, assim como fez com Jó. — c) Terceiro, que Cristo tenha dormido, cujo sono, embora se deva considerar verdadeiro e natural, e não simulado, como pensam alguns, é possível, não obstante, que tenha sido também voluntário e procurado, para que a tempestade rebentasse enquanto Ele dormia e como que sem o seu desígnio” (ed. Paris, 1668, col. 192). — No entanto, “que devamos presumir que o vento foi impelido por milagre, nem os fatos nem o modo da narração o sugerem, nem se requer qualquer outra coisa senão que Cristo, sabendo que à noite, segundo o curso normal da natureza, rebentaria uma tempestade tenha mandado os discípulos subir à barca e se entregado ao sono. Assim costuma Ele servir-se dos elementos da natureza para cumprir desígnios mais altos” (R. Cornely, J. Knabenbauer, Fr. de Hummelauer et al., Cursus Scripturæ Sacræ. 3.ª ed., Paris: P. Lethielleux, 1922, p. 385).
  1. Cf. Id., In Matt. VIII, 26: “Cristo fala aos ventos, à tempestade, às doenças e a outras coisas semelhantes como se falasse a maus espíritos. Com efeito, não damos ordens às coisas naturais, mas às racionais. Isso porque, como creio, as doenças e tempestades são muitas vezes enviadas por maus espíritos, como diz Davi: Immissiones per angelos malos (Sl 77, 49), e assim como Satã mandou um vento forte vindo da banda do deserto, abalando os quatro cantos da casa em que viviam os filhos e filhas de Jó, de modo que a casa, caindo, os esmagou (cf. 1, 19)” (ibid.).
  2. Cf. R. Cornely, J. Knabenbauer, Fr. de Hummelauer et al., op. cit., p. 386: “Não os chama incrédulos, mas de pouca fé; pois, pelo fato de que dizem: Salva-nos, mostram ter fé; mas o que dizem depois: Perecemos, não vem da fé. Com efeito, nada deveriam temer, se com Ele estavam navegando (Teofilacto). Denunciam também ter pouca fé pelo fato de esperarem ser salvos pelo Senhor acordado, mas não adormecido (Eutímio)”.
  3. In Matt. VIII, 26 (ed. Lyon, 1639, vol. 4, p. 45). O cardeal complementa em seguida: “A evidência do milagre é comprovada pela calmaria súbita, não pequena, mas grande: naturalmente, com efeito, [o mar] se tranquiliza pouco a pouco após uma tempestade”.
  4. Cf. Cornélio a Lapide, In Matt. VIII, 24: “Deus quis manifestar a força da tempestade e o maior poder de Cristo para sufocá-la. Assim Cristo permitiu ou, antes, Ele mesmo excitou e mandou esta procela por causas naturais, como ventos e vapores, com elas cooperando naturalmente. a) Primeiro, para manifestar sua potência e seu senhorio sobre terras e mares […]. — b) Segundo, para treinar os discípulos a suportar as perseguições dos homens […], que haviam de experimentar grandes e frequentes, ao partirem evangelizando mundo afora […]. — c) Terceiro, para que os discípulos e demais tripulantes, pelo milagre da tempestade acalmada, cressem nele, isto é, que Ele é Deus onipotente” (ed. Nápoles, 1854, vol. 2, p. 200)

Notas

  • A segunda parte do texto (a partir dos três asteriscos) é uma tradução levemente adaptada, com alguns acréscimos e omissões da Equipe CNP, de H. Simón, Prælectiones Biblicæ. Novum Testamentum. 4.ª ed., iterum recognita a J. Prado. 3.ª ed., Madrid: Marietti, 1930, vol. 1, p. 357s, n. 246.

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