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Dedicar tempo a Deus: uma necessidade humana

Cristo é o Senhor do sábado: Ele tem direito a que lhe consagremos o nosso tempo; e nós, a necessidade de estar com Ele, em oração íntima e amorosa, porque não há amizade sem convivência nem investimento de tempo.

Texto do episódio
11

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas
(Lc 6,1-5)

Num sábado, Jesus estava passando através de plantações de trigo. Seus discípulos arrancavam e comiam as espigas, debulhando-as com as mãos. Então alguns fariseus disseram: “Por que fazeis o que não é permitido em dia de sábado?”
Jesus respondeu-lhes: “Acaso vós não lestes o que Davi e seus companheiros fizeram, quando estavam sentindo fome? Davi entrou na casa de Deus, pegou dos pães oferecidos a Deus e os comeu, e ainda por cima os deu a seus companheiros. No entanto, só os sacerdotes podem comer desses pães”. E Jesus acrescentou: “O Filho do Homem é senhor também do sábado”.

No Evangelho de hoje, vemos, num dia de sábado como hoje, Jesus discutir com os judeus a respeito do preceito sabático. Jesus estava passando por plantações de trigo, e os discípulos arrancavam e comiam as espigas “debulhando-as com as mãos”. Era um gesto de trabalho proibido no sábado. Jesus, no entanto, se revela como o Senhor do sábado.

Na realidade, por trás de toda a polêmica, o que Jesus está querendo realmente nos mostrar é o seguinte: os preceitos que Deus havia dado no Antigo Testamento, os quais tinham sua razão e seu fundamento, haviam sido transformados pelos fariseus e doutores da Lei numa série de observâncias externas cujo espírito se tinha perdido.

Qual é a finalidade do mandamento do sábado?

Hoje, graças à Ressurreição de Jesus, nós guardamos o domingo. Ora, o Mandamento de guardar e santificar o domingo e as festas tem seu fundamento no direito natural, na realidade objetiva de que todo ser humano, por sua própria natureza, precisa dedicar tempo a Deus.

Ou seja: nós precisaríamos pagar uma espécie de “dízimo” do nosso tempo a Deus, porque faz parte da realização intrínseca do ser humano ter um relacionamento com Ele, Aquele a quem verdadeiramente devemos adorar, amar e servir.

Como seria possível ter um relacionamento verdadeiro, interior e de amizade com Deus, sem dedicar tempo a Ele?

Façamos um exame de consciência de nossa atitude na vida de oração. Passamos horas no telefone falando com um amigo, mas quando vamos falar com Deus, que é a razão de ser da nossa existência, queremos ser rápidos, porque temos “outras ocupações”. Daí as orações apressadas de quem não quer fazer o grande sacrifício de entregar a Deus o seu tempo. Sim, entregar a Deus o tempo, porque não é possível ter um verdadeiro relacionamento sem dedicar tempo. Isso é constitutivo da condição humana.

Pois bem, Deus, no Antigo Testamento, revelou a Moisés a realidade — a qual não “precisava” ser revelada, pois já está inscrita no próprio ser das coisas, na própria natureza do ser humano — de que, de sete dias da semana, um dia fosse dedicado a Deus, para melhor amá-lo e servi-lo. Esse tempo, no Antigo Testamento, era o sábado; agora, no Novo Testamento, é o domingo, o oitavo dia da semana, devido à Redenção de Cristo, que se consumou no domingo da Ressurreição.

Mas mesmo a realidade de reservar um dia da semana para ser o dia do Senhor é uma prescrição externa, porque o espírito da lei está no fato de que deveríamos dar a Deus o nosso tempo (no caso, um dia por semana, um sétimo do nosso tempo); precisamos dedicá-lo a Ele; portanto, Deus pede a você o seu tempo.

Não faça suas orações rapidinho, de forma a se livrar de Deus; antes, reze com amor, com devoção, piedade e generosidade de tempo. Terminada a oração, recorde-se dele e vá preparando o coração para a próxima, vá ansiando e desejando encontrar-se com Ele no próximo momento de oração.

Sinta-se incomodado por ter de gastar tempo com outras coisas, enquanto se espera o tempo verdadeiro, o tempo de estar com Deus na oração.

COMENTÁRIO

Os discípulos arrancam espigas (Mt 12,1-8; cf. Mc 2,23-28; Lc 6,1-5). — De acordo com Lc, esta cena teve lugar em dia de sábado ou, segundo alguns códices, incluindo o texto da Vg, no “sábado segundo primeiro” (lt. sabbato secundo primo, gr. δευτεροπρώτῳ), expressão que deu origem a infinitas discussões. Omitidas as demais, vejamos a mais provável e comum: sábado δευτεροπρῶτον era o que caía depois do segundo dia da Páscoa [1]. Com efeito, como a Lei (cf. Lv 23,15) mandava contar sete semanas a partir do segundo dia da Páscoa, é provável que tenham surgido as denominações δευτεροπρῶτον, δευτεροδεύτερον etc. para significar cada uma delas. Outros pensam que este nome designava o sábado após o grande sábado (Magnum Sabbatum), i.e., o que vinha depois do sábado da semana da Páscoa (cf. Jo 19,31); logo, entre os dias 23 e 30 de Nisan. Seja como for, a narração nos leva certamente a um tempo posterior à Páscoa, talvez em fins de maio ou no início de junho, uma vez que nos arredores de Cafarnaum (onde a cena provavelmente transcorre) as colheitas já estavam maduras por essa época.

V. 1s. Como Jesus estivesse atravessando algumas plantações, os discípulos, esfomeados, começaram a arrancar espigas e a debulhá-las com as mãos, o que na verdade era lícito, já que a prescrição da Lei vetava apenas colher espigas com foice em seara alheia (cf. Dt 23,25). 

V. 3ss. Aos fariseus, que censuravam essa suposta violação do sábado, equiparando o ato à colheita [2], Jesus responde com dois fatos: a) se a Davi e seus companheiros, por necessidade, se permitiu comer, como narrado em 1Sm 21,1-6, dos pães da proposição, que segundo a Lei só podiam ser comidos pelos sacerdotes (cf. Lv 24,9), por que não seria lícito aos meus discípulos, por justa causa, transgredir vossas tradições? (Subentende-se, logicamente: eu, que sou filho e o Senhor de Davi, cf. Mt 22,42ss.) — b) Não lestes na Lei (cf. Nm 28,9s etc.) que, nos dias de sábado, os sacerdotes transgridem no Templo o descanso do sábado, por fazerem muitas coisas referentes aos sacrifícios e ao culto divino, e no entanto não se tornam culpados? [3] Logo, a lei sabática não é per se inviolável.

N.B. — No texto de Mc (v. 26), há uma dificuldade histórica. Com efeito, a cena de Davi é posta em tempos de Abiatar, príncipe dos sacerdotes, ao passo que em 1Sm se fala de Aquimelec. Para solucionar essa aparente discordância, basta notar o seguinte: no tempo em que se deu o fato narrado, Aquimelec era de fato o sumo sacerdote em exercício, mas seu filho, Abiatar, que o sucedeu na função, também estava presente no santuário (cf. 1Sm 22,20). “Assim compreendemos por que a tradição não vinculou este fato ao nome quase desconhecido do pai, mas ao do filho, conhecidíssimo na história do rei Davi” (Holzmeister, VD [1928] 268, n. 3) [4].

V. 6ss. Poderiam os fariseus ter respondido que era lícito, sim, aos sacerdotes realizar, mesmo em dia de sábado, os ministérios do Templo, por serem sagrados e destinados à honra de Deus; mas Jesus se adianta à dificuldade e a desfaz com uma tríplice razão: a) Eu vos declaro que aqui (ὧδε = neste lugar) está quem é maior (μεῖζόν, gên. neutr. = algo de natureza superior) que o Templo, i.e., não menos sagrado, pois é mais excelente o ministério dos discípulos que me seguem que o dos sacerdotes que servem no Templo. — b) Em Mc 2,27, dá outra e mais alta razão: O sábado foi feito para o homem, i.e., foi instituído para proveito do homem, tanto (e sobretudo) espiritual quanto corporal, e não o homem para o sábado; por isso deve ser observado de modo tal, que não prejudique a saúde nem da alma nem do corpo, como lemos terem feito muitos santos varões (Js 6,15s; 1Mc 2,41). Em seguida, repreende-os por acusarem os discípulos não por zelo e obediência à Lei, mas por rivalidade e dureza de coração: Se compreendêsseis (ou seja, entendêsseis corretamente) o sentido destas palavras: Quero a misericórdia, e não (i.e., mais do que) o sacrifício (cf. Os 6,6), nunca condenaríeis os inocentes, i.e., os meus discípulos, que transgrediram o descanso sabático não por desprezo à Lei, mas por necessidade. — c) Como se não bastassem esses argumentos, desfere outro, ainda mais forte, baseado em sua própria autoridade: O Filho de homem é Senhor também do sábado; logo, quando for preciso, pode dispensar de sua observância. Em Mc, a frase é introduzida a modo de conclusão (ὥστε) a fortiori (καί) de um silogismo entimemático cuja premissa maior implícita é: [O Filho de homem é Senhor do homem]; ora, o sábado foi feito para o homem; logo, o Filho de homem é Senhor a fortiori (καί, também) do sábado.

Nota doutrinal.Em que consiste o preceito dominical? 1) Trata-se, em primeiro lugar, de um preceito de direito natural porque, tendo o homem a natural inclinação a dedicar tempo às coisas necessárias à vida (e.g., ao sono, à alimentação, ao descanso etc.), a natureza mesma das coisas exige que se reserve tempo ao culto divino, não só interno e privado, mas também externo e público, já que Deus, que nos criou como entes políticos, deve por nós ser honrado tanto individual como socialmente. — 2) Trata-se, além disso, de um preceito de direito divino positivo, na medida em que Deus mesmo determinou que ao menos em um dia de cada semana deve o homem abster-se de trabalhos e negócios ordinários para louvá-lo dignamente. — 3) Trata-se, por último, de um preceito de direito eclesiástico porque foi a Igreja que especificou em que dias e de que modo deve o cristão prestar culto público a Deus [5]. Eis por que diz o Angélico: “A observância do dia do Senhor, na Nova Lei, sucede a observância do sábado, não por força de preceito legal, mas graças à prescrição da Igreja e ao costume do povo cristão” (STh II-II 122,4 ad 4), que assumiu “como festivo o primeiro dia depois do sábado, porque nele se deu a ressurreição do Senhor” (João Paulo II, Carta apostólica “Dies Domini”, de 31 mai. 1998, n. 18).

Notas

  1. De acordo com Santo Epifânio (cf. Hær. LI 31), o vocábulo δευτεροπρῶτον significa δεύτερον σάββατον μετὰ τὸν πρῶτον, i.e., o segundo (sábado) após o primeiro em alguma série (de sábados).
  2. Lavrar ou ceifar era explicitamente proibido aos sábados (cf. Ex 34,21). Os rabinos posteriores, no entanto, querendo definir ainda mais o assunto, estabeleceram, entre outras coisas, o seguinte: “Quem ceifa, ainda que só um pouco, é culpado. E debulhar espigas é uma espécie de ceifa. E quem quer que colha algo de seu plantio é culpado como ceifador” (Maimônides, Shabb. 8). Esta norma, embora seja atribuída pela primeira vez aos filhos do rabi Hiyya, o Velho (c. 200 d.c) na Mishna (cf. Shabb. VII 2), parece já ser conhecida na época de Cristo (cf. *Strack–Billerbeck, Kommentar…, I, p. 617, d).
  3. Que em 1Sm 21,1 Aquimelec diga a Davi: Como vens tu só, e ninguém vem contigo?, mas Cristo afirme que os companheiros do rei comeram com ele dos pães da proposição, tampouco cria dificuldade. Com efeito, nos primeiros vv. de 1Sm 21 vê-se claramente que os criados, sim, estavam presentes e comeram, o que se depreende tanto do número (cinco, ao todo) de pães que Davi pediu (v. 3) como da pergunta feita a ele pelo sacerdote (v. 4b). Noutras palavras, Davi entrou sozinho no santuário, enquanto os criados o esperavam em certo lugar não longe dali (v. 2).
  4. Na Misha lê-se com frequência este princípio: “O trabalho [no Templo] sobrepõe-se ao sábado” (cf. *Strack–Billerbeck, op. cit., I, p. 620).
  5. Cf. D. M. Prümmer, Manuale Theologiæ Moralis. Roma: Herder, 1958,3 vol. 2, p. 385s, n. 465.

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